"Zé Gonçalves", e o homem estende a mão para se apresentar aos forasteiros. No fim da jorna de trabalho veio desaguar a este café, é empreiteiro e anda a recuperar uma casa no Alegrete, aldeia de Portalegre. "Estamos quase no fim dos trabalhos, agora só falta caiar as paredes de branco e recuperar uma fachada de xisto." Tem toda uma teoria para a reabilitação urbana: "Há aí uns patos-bravos que não respeitam a arquitetura alentejana, são uns criminosos. Então não é muito melhor preservar as tradições da nossa terra?", pergunta com um ligeiríssimo sotaque. É o acento das vogais que o denuncia - Zé Gonçalves é na verdade José González, espanhol de La Codosera, mas isso não significa que o outro lado da raia não seja também território seu..Naquele município encostado à fronteira vivem 2119 almas, oficialmente habitantes da região espanhola da Extremadura, na verdade profundamente raianos. Como a maioria dos seus conterrâneos, José aprendeu primeiro a falar português - ou uma versão de português, que o seu crioulo parte da língua de Camões, tem até o som do s no lugar do z e do x, mas depois acrescenta-lhe uma certa entoação castelhana. "Espanhol só comecei a falar quando entrei na escola, tinha já 6 anos. É língua em que raramente penso. Ou sonho.".Os povos da raia estão habituados a dançar uns com os outros - sempre se trocou amor, gíria e contrabando entre os dois lados da fronteira. La Codosera tem uma peculiaridade: é povo espanhol que se define como português. Se os galegos têm uma proximidade inquestionável com o norte do país, a verdade é que nunca ninguém os viu apresentarem-se como minhotos ou transmontanos. "Pois nós identificamo-nos como alentejanos, tanto como extremenhos. Juridicamente, pertencemos à província de Badajoz, mas estamos sem dúvida mais ligados a Portalegre", diz o alcaide de La Codosera, Joaquín Terreso Barroso..O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, escolheu precisamente Portalegre para acolher as comemorações do Dia de Portugal, depois de Cavaco Silva já as ter levado à mais populosa cidade do distrito em 2013 - Elvas. Não é coincidência. Estas são as terras onde o despovoamento se faz sentir com maior força em Portugal. Não há capital de distrito menos habitada do que esta, tal como não há distrito mais desertificado de gente..Hoje não vivem na cidade mais de 15 mil habitantes, quase metade do que há 30 anos. É, juntamente com Beja, a única capital de distrito onde a autoestrada não chegou. O comboio ainda chega, sim, mas apenas uma vez por dia. Nas aldeias do distrito, vão desaparecendo transportes, escolas, correios e cuidados de saúde. E, claro, vai sumindo a gente..Dificilmente o palco do Dia de Portugal poderia ter melhor vista para um país onde só se desinvestiu. Portalegre bem podia ser a capital do Portugal esquecido. Ainda assim, no meio de tantas contas de subtrair, há uma que é de somar: a dos espanhóis que vão salvando este canto esquecido do território. Em abono da verdade, nenhuns o parecem fazer de forma tão convicta como as gentes de La Codosera..Portugal, Espanha.Não há dúvidas de que isto é Espanha: há edifícios de tijolo vermelho, slot machines em cada cafetaria, depois de almoço a vila inteira parece desaparecer para dormir a sesta. Mas também não há dúvidas de que isto é Portugal: a cerveja de serviço nos cafés é a Superbock, todos os tascos têm a sua especialidade de bacalhau, o café vem bem servido e com uma colher de tamanho adequado..Mesmo no centro de La Codosera fica o La Cabaña, que é simultaneamente bar e casa de petiscos. Atrás do balcão, Manoela González brinca com as evidências: "Porque choram vocês por Olivença se nos têm a nós?" Como todos aqui, a mulher sabe que os portugueses nunca se conformaram com o facto de a vila ter sido integrada em Espanha no início do século XIX, em clara violação dos acordos que os dois países celebraram. Ainda hoje o assunto é objeto de litígio - mas um litígio silencioso, que Portugal deixou cair da agenda diplomática..Fosse Olivença portuguesa e Portalegre juntaria 12 mil aos seus 118 mil habitantes. Nem assim deixaria de ser o distrito mais despovoado do país. "Está bem que os de Olivença têm nomes de ruas portuguesas, mas é cada vez mais raro ouvir alguém falar a língua." La Codosera pode nunca ter pertencido a Portugal, mas mantém-se como sempre: próxima..Quando chega o 25 de Abril, Juan Ángel Martínez enche a casa de cravos vermelhos e vende-os num instante aos clientes dos dois lados da fronteira. É simultaneamente florista e livreiro, além de presidir à associação de empresários de La Codosera, que congrega 60 estabelecimentos do município - na maioria cafés, restaurantes, pequenos comércios e empresas de construção civil. "Portugal é sem dúvida o nosso mercado preferencial e o mais importante cliente", diz ele. "Mas o contrário também acontece, é no outro lado que gastamos mais dinheiro.".O alcaide tem plena consciência disso e, por estes dias, anda em negociações para que se abra uma estrada mais direta entre a sua vila e Portalegre. "Está a revelar-se muito complicado por causa das autoridades portuguesas", diz Joaquín Terreso Barroso. "Há problemas em construir no Parque Natural da Serra de São Mamede, o que até pode ser compreensível. Mas a verdade é que Portugal, ao contrário de Espanha, nunca foi regionalizado. É difícil atender às necessidades das pessoas quando se tem de esperar por decisões de Lisboa.".Entre autarcas locais sobram conversas. Durante anos acreditaram que o TGV poderia ter nestas terras alentejanas a paragem entre Espanha e o porto de Sines. "Mas isso não aconteceu. Aliás, os meus colegas dos municípios portugueses queixam-se constantemente de que nada acontece." Diz não lhe caber criticar governos, mas há evidências que não pode negar: "Nos últimos 20 anos vi Portalegre cair muito, em população, em investimento, até no movimento que se nota nas ruas. O potencial económico desta nossa relação não está nem por sombras a ser explorado. Continuamos ligados, sim, mas é uma ligação cultural. E podia ser muito mais do que isso.".Ao bar La Cabaña chegou entretanto Daniel, 28, filho de Manoela, com um enorme saco preto. Lá dentro traz um acordeão e, quando o saca, começa a dedilhar os acordes de uma música de Quim Barreiros. "É o meu ídolo", confessa, e nisto aproxima-se outro rapaz chamado Román Matador, que puxa da voz para cantar (sem ponta de sotaque que o denuncie) A Garagem da Vizinha..Os dois amigos têm uma banda chamada Ritmo Pimba, correm as festas dos dois lados da raia a tocar canções portuguesas. "Em Portugal os músicos pimba estão em extinção, foram sendo substituídos por camiões-palco com bandas que tocam um pouco de tudo", diz Daniel, que afiança ter ca da vez mais trabalho nas freguesias pequenas, onde o despovoamento encolheu os orçamentos das comissões de festas. "Co mo já não encontram assim tantos grupos no país, vêm buscar-me a mim a La Codosera.".Aprendeu a tocar o instrumento numa escola de música em Portalegre, é lá que se dirige quando quer renovar o stock de CD - de ouvido, saca os acordes, na internet as letras. "Sinto-me melhor em Portugal do que em Espanha. Nacionalidade é uma coisa, pátria é outra." Explica a sua ideia com um argumento simples. "Quando me perguntam de onde sou e não sabem onde fica La Codosera, eu digo que sou de Arronches. E pronto, assim já está.".Os dias terríveis.Além da vila, o município de La Codosera acolhe duas aldeias transfronteiriças - o Marco e o Rabaçal, que do lado da Extremadura se chamam El Marco e Rabazal. Foram, até aos anos 1980, os grandes centros de contrabando da região, mas hoje estão quase desabitadas. A história da sangria populacional do interior podia contar-se toda a partir daqui. Em El Marco vivem hoje sete almas, metade das que estão do lado português. José Manuel Trindade, 88 anos, vive na metade espanhola, mas como o sobrinho tem as portas abertas de um comércio no outro lado, passa os dias para cá e para lá, atravessando a mais pequena ponte internacional de que há registo no mundo, mesmo no centro da povoação.."Quando eu era gaiato passava-se de um lado ao outro por um carreirinho de pedras", conta ele agora na loja. Aqui vende-se um pouco de tudo, de mata-moscas a tesouras, de lamparinas a caramelos - sinais faltassem de que o Marco parou no tempo. "Mas nos anos da Guerra Civil em Espanha subia-se o rio para se levar comida à outra banda." Para e suspira: "Tanta fome que os espanhóis passaram.".A ligação de La Codosera ao distrito de Portalegre pode contar séculos, mas é de 1936 a 1939 que se reforça como nunca antes. As terras portuguesas da raia serviram de esconderijo aos que lutavam contra Franco. "O meu pai bem me contava de como escondia trigo nas colmeias para que os guardas não o apanhassem. Depois vinham os de La Codosera à noite buscá-lo, para terem o que comer. Alguns eram mortos no caminho.".Na aldeia de Esperança, que pertence ao concelho de Arronches e fica uns quilómetros acima, esses anos foram de pesadelo também. "As mulheres e crianças da Codosseira", e é assim que Elias Charas, 94, e Jorge Correia, 91, tratam a vila espanhola, "mudaram-se todas para aqui. Encheu-se a escola de crianças", recorda o mais velho. "Só que muitas perderam os homens na guerra e uns anos depois viam-se aqui sem saber o que fazer." Para muitas, acrescenta o mais novo, "o único caminho foi a prostituição.".Nesses anos, e nos seguintes, a aldeia encher-se-ia de informadores da PIDE. "Mas quase todas as famílias acolhiam alguém à socapa, pois se eram nossos vizinhos", diz Elias. Recorda-se com incrível pormenor de uma noite em que os carabineiros lhe entraram na propriedade da família para caçar uma vintena de republicanos que haviam pedido pão e guarida. "Eram disparos atrás de disparos, ficámos com as paredes da casa todas esburacadas. Quem acha que a guerra civil foi só espanhola está muito bem enganado.".Manuel Florentino, 90, assoma à porta de casa e recorda os anos seguintes, quando o pão era racionado e ele tentava enganar as mercearias para duplicar a dose. "Quando conseguíamos, metíamo-nos pelo rio até Espanha e dávamos-lhe sem cobrar nada. Toda a gente fazia alguma coisa por eles na Esperança, até os homens da Guarda às vezes ajudavam." Décadas depois, quando Portugal entrou na guerra colonial e milhares de portugueses tentavam fugir para França, os espanhóis de La Codosera saldariam de certa maneira as contas, apoiando a passagem a salto de centenas de alentejanos..Os olhos para leste.Há uma opinião hoje bastante consensual em Portalegre. Se não fosse a existência de um Instituto Politécnico e da Escola Prática da GNR, a cidade já não seria sequer cidade. Bem pode comemorar-se o 10 de Junho aqui, que os seus habitantes sabem hoje que são paisagem cada vez mais esquecida para Portugal. E por isso viram-se para Espanha..Juan Ángel, o florista de La Codosera, tem essa impressão precisamente. "Os cartazes dos espetáculos culturais, os restaurantes, até os supermercados portugueses têm cada vez mais oferta que interessa o público espanhol." Dá um bom exemplo: o protocolo que os hoteleiros de La Codosera estão a firmar com a Escola Profissional de Hotelaria e Turismo de Portalegre.."Em setembro, abrimos formações específicas para os empresários espanhóis, mas também é do nosso interesse receber cada vez mais alunos do outro lado da fronteira. Até porque a província de Badajoz não tem este tipo de formação", diz Maria Grilo, diretora da instituição.Neste momento, a escola tem 157 alunos e 60% são originários do distrito. "Então temos de ensiná-los a servir a clientela que lhes interessa, e aqui a clientela é cada vez mais espanhola." Maria Grilo especifica: enchem-se os restaurantes de mesas altas, loiça e talheres pequenos, porque os do outro lado da fronteira preferem fazer da refeição partilha. "É isso que está a acontecer hoje em terras como Portagem, Arronches, Elvas, mesmo Portalegre. A nossa indústria morreu, a nossa economia está completamente destruída, não soubemos - também por culpa nossa - colocar-nos no mapa de Portugal. Mas quando vamos a lugares como La Codosera vemos que eles olham para nós. Então é para eles que temos de nos virar."