Mercado de Setúbal: "Na Semana Santa, isto estaria a bombar"

Na praça de Setúbal, que está na lista dos melhores mercados de peixe do mundo, a semana da Páscoa costuma ser de grande procura, só igualável ao verão. Mas a pandemia tem prejudicado o negócio, sobretudo a quem vende aos restaurantes.
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A semana da Páscoa é, por tradição, de grande azáfama, com muitos clientes a procurarem o melhor peixe fresco na praça de Setúbal - uns para refeições de família, outros porque a crença religiosa os leva a recusar comer carne. Mesmo que nos dias seguintes à declaração do estado de emergência por causa da pandemia do novo coronavírus o negócio até tenha corrido bem, nesta terça-feira não começou da melhor forma: já passa das 11 da manhã e a banca de Ana Paula ainda está repleta de peixe.

"Pensei que a venda era boa, comprei mais de mil euros em peixe e não consegui vender nem metade", diz. Nos dias anteriores vendeu bem, garante, e como a Semana Santa é sempre boa para o negócio, não imaginou que esta fosse ser diferente.

Mas a crise sanitária trocou as voltas a meio mundo e tem causado prejuízos aos vendedores de peixe do Mercado do Livramento, que falam em quebras na ordem dos 50% e até 70%. Não é o caso de Ana Paula, que até tem tido alguns dias melhores do que antes do covid-19, só foi apanhada na curva com este início de semana. E sem ter grande fé de que a procura aumente nos próximos dias: "Vem o feriado e a partir de quinta-feira vão fechar o concelho." "As famílias não se podem juntar para festejar", acrescenta Delcina Frazão, da pedra ao lado.

O que se passou nesta terça-feira Ana Paula não sabe exatamente - "hoje até dá para estar sentada". Na banca há peixe que mete cobiça: douradas que imaginamos escaladas na grelha ou no forno, peixe para uma bela caldeirada, tamboril para o arroz, pescada para cozer com legumes... Peixe não falta e imaginação também não, só faltam os clientes.

E porque é que o negócio estava a correr melhor do que antes da pandemia do novo coronavírus? Uma das razões, explicam as duas peixeiras, é que os clientes não compram só para si, levam para os pais e para os sogros. Mas há outra, no ver de Ana Paula: "A procura tem que ver com os restaurantes estarem fechados. Não comem lá, comem em casa!"

Olha-se para o mercado e sente-se falta do habitual ruído de fundo, dos pregões, das conversas dos fregueses. Nos corredores com pedra da calçada anda-se tranquilamente, muito diferente dos dias em que se circula aos encontrões. A distância de segurança nem sempre é cumprida e nem toda a gente traz máscaras ou luvas, mas ainda assim há muita gente que se tenta proteger.

"Uso luvas, mas máscaras não, porque os clientes vão-se embora. Mas há alguns que dão valor", justifica Ana Paula, 15 anos a vender na praça e que ficou famosa pelo pregão no programa Terra Nossa, de César Mourão sobre José Mourinho - "Ah, peixeiras lindas!" Hoje não há pregões, mas mesmo assim deixa escapar: "Miga, eu gosto é de brincar!"

Na banca da Jaquelina estão três de oito peixeiros

Na pedra da Jaquelina vive-se a crua realidade trazida pela crise sanitária. Habitualmente trabalham ali oito pessoas, agora só lá estão três. Porque há quem seja idoso, quem esteja a dar de mamar, quem esteja a recuperar da quimioterapia, quem tenha diabetes... mas também porque a quebra de vendas não exige que ali esteja tanta gente a atender. Ali ao leme do negócio familiar, que remonta a 1918, estão os irmãos Pedro e Valdemar Piedade e o sobrinho Pedro Oliveira.

O espaço da banca da Jaquelina é generoso, mas nos dias que correm consegue ter uma pedra completamente vazia. "É aqui que costumamos pôr as encomendas dos restaurantes. Como estão todos fechados, não há nada...", diz Pedro Oliveira, 25 anos, o mais novo dos três.

"Temos uma venda muito forte para restaurantes e agora não há picos de gente, é uma venda condicionada. A afluência é muito menor, não podemos comprar a quantidade habitual, senão o peixe vai andar aí ao rebolão...", adianta o tio, Pedro Piedade, que estima uma quebra nas vendas na ordem dos 70%. "Noutros anos, na Semana Santa, isto estaria a bombar. O sábado costuma ser uma loucura", acrescenta Pedro Piedade.

Não há esperança de que melhore até ao final da semana: "Sexta-feira é feriado e não há lota, a partir de quinta-feira fecha o concelho...", lembra o sobrinho, numa referência às limitações de circulação.

Os velhotes que vêm aos mandados

Na parte de trás desta pedra familiar está a banca de peixe de Sandra e José Gonçalves. Estão a atender Madalena Sousa, com a cara tapada pela máscara e de luvas: "Tento vir protegida...", justifica, enquanto pega no saco de peixe e sai apressada.

Fica o casal, já com muito pouco peixe para venda. "Não podemos trazer muito, são menos pessoas a comprar. Vendemos para aí menos 50% do que vendíamos... Logo agora que isto estava melhor com o turismo", lamenta-se Madalena.

O casal quer manter-se a trabalhar, mesmo que venda pouco, pelo menos para pagar as despesas. Ao mesmo tempo garante serviço aos seus clientes habituais: "Durante a semana é à base de velhotes, vêm aos mandados, levam meio quilinho de peixe..."

Das pedras de mármore onde o peixe nos faz sonhar com as mais saborosas receitas culinárias, passamos à banca de Anabela Julião, onde sobressaem cores e aromas - os verdes dos legumes de toda a variedade, o vermelho dos morangos, o laranja dos citrinos, das mangas e da papaia... apetece escolher, cheirar, meter no saco e levar para casa...

Sem luvas não mexe... mesmo que já traga umas

Mas nesta banca ninguém toca em nada sem calçar luvas... mesmo que já venha equipado com umas. Paulo Martins acabou de chegar, de luvas azuis metidas nas mãos, achou que assim podia mexer nos produtos. Mas não. "Já vêm de outro lado, já mexeram noutras coisas", explica Anabela que aponta o balde onde cada cliente deve depois depositar as luvas que ali usou. Precisamente para evitar aquilo que não deixa fazer na sua banca.

O cliente concorda com a estratégia. "Acho bem. As minhas luvas já estão usadas e assim se houver possibilidade de trazer o vírus não contamino aqui nada", diz Paulo Martins, também protegido com máscara.

Os vendedores do Mercado do Livramento não usam máscaras e a maioria dos clientes também não. Vê-se mais gente com luvas. Fernanda Oliveira chama a atenção. Usa uma viseira que lhe tapa o rosto até ao queixo. Com uma particularidade: foi construída a partir de um balde de azeitonas. Cortou-se o plástico, colocou-se elástico para prender, um pouco de fita nos bordos para não magoar e pele... e voilà!

Fernanda está preocupadíssima, sempre a chamar a atenção para as distâncias recomendadas, mostra o frasco do desinfetante quase como se fosse um escudo, chama-nos a atenção por não usarmos máscara...

Voltemos à banca colorida de Anabela Julião, que há cerca de 32 anos vende no Mercado do Livramento. O marido, Carlos, ex-construtor, juntou-se a ela depois da crise da construção civil em 2010. Depois veio o filho Bruno, que acabou o 12.º ano e não quis ir para a universidade. "Agora está mais calmo. No início foi difícil, as pessoas queriam mexer em tudo da mesma forma que faziam antes. Neste momento só acontece com as pessoas mais de idade, mas compreende-se..."

Levar as compras aos mais velhos

É também aos mais velhos que esta família dá uma atenção especial. Aos clientes que não têm ninguém que lhes vá fazer as compras, vão levar-lhes o avio a casa depois de encomendarem por e-mail. Anabela repara igualmente na solidariedade que estes novos tempos fizeram brotar. "Há pessoas que vêm às compras e levam para os pais, para os sogros, para os vizinhos. É um espírito de entreajuda que há muito não se via e que é bonito. É pena é ser pelo que é..."

Na parte do peixe há cerca de uma dezena de bancas fechadas, de pessoas mais idosas que se querem proteger e de outras em quarentena voluntária. No outro lado também se vê uma ou outra vazia. Esmeralda Pita tem 69 anos e não há covid-19 que lhe meta medo. Todos os dias, às seis e tal da manhã, desce do Bairro Santos Nicolau até à Avenida Luísa Todi para abrir o seu negócio de frutos secos e leguminosas.

Não consegue imaginar certamente a sua vida de outra maneira - desde os 9 anos que ali trabalha, primeiro como empregada, depois com a sua própria banca. Foi o patrão que lha passou logo a seguir ao 25 de Abril, quando passou a ser proibido mais do que uma banca por pessoa - ele tinha cinco.

"Nos primeiros dias isto foi uma barafunda, mas se a praça fechasse na Páscoa não fazia mal nenhum. Se nos viessem perguntar, muita gente aceitava."

A crise sanitária trouxe uma nova realidade à praça setubalense, que ganhou estatuto de um dos melhores mercados de peixe do mundo, mas onde há outros produtos de qualidade: frutas, legumes, pão, queijos, mel, vinhos...

O primeiro edifício do mercado foi inaugurado em 1876 e substituído em 1930 por outra construção. É famoso pelo peixe, mas igualmente pelo painel com mais de cinco mil azulejos novecentistas que, quando a afluência é muita, se custa a ver. Neste dia via-se bem.

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