O Kosovo abriu a embaixada em Portugal no início do ano passado. Como primeiro representante do seu país em Lisboa, que impressão tem da sociedade portuguesa e da forma como esta olha para os kosovares? Há uma canção que ouvíamos com frequência nos primeiros tempos, quando chegámos a Portugal com a minha família, Uma Casa Portuguesa com Certeza. A sociedade portuguesa é a espantosa encarnação de uma rica tradição histórica, absorvendo as tendências da globalização e do dinamismo tradicional que distinguem os povos das regiões mediterrânicas. Estamos a falar dos valores especiais e profundamente humanos que o povo português representa, a par da empatia e do carinho que demonstra com os outros. Devo dizer que encontrei padrões culturais entre os nossos dois povos que são muito semelhantes entre si. A hospitalidade, por exemplo, não é entendida simplesmente como uma necessidade de homenagear alguém. Em ambos os povos, ela representa mais uma tradição, um sentimento que se preserva de boa vontade, que se acredita e se promove entre famílias, instituições e sociedade. No nosso país, por exemplo, a palavra "convidado" e a palavra "camarada" fundem-se na palavra "amigo", e servir num país amigo, como no meu caso, é a melhor coisa que pode acontecer a um diplomata em área profissional. Além disso, quem não gostaria de servir num país ensolarado 300 dias por ano, um dos mais pacíficos do mundo, um dos maiores da história, um dos mais ricos em cultura. Quando cheguei, já ouvido falar, mas cá percebi bem porque é que Portugal é um país de grande turismo. Percebi porque é que Lisboa é chamada a capital cultural da Europa e porque está tão na moda em todo o lado. As pessoas estavam contentes com as suas vidas e a sua economia, do governo ao sistema em geral. As primeiras pessoas que conheci eram todas ex-alunos do Presidente, de quem falavam com admiração sobre a sua personalidade. Isso é algo lindo, é incrível..Como avalia as relações do Kosovo com Portugal, quando hoje passam 12 anos exatos sobre o reconhecimento da vossa independência? Posso dizer que partilhamos os mesmos valores europeus, somos europeus, pertencemos ao mesmo espaço e partilhamos as mesmas opiniões sobre a segurança da economia para o futuro comum. Neste ponto, devo sublinhar que o povo do Kosovo se destaca pela sua forte aspiração euro-atlântica; que no campo político se manifesta através do objetivo de pertencer à UE e à NATO, enquanto no aspeto cultural como uma personificação dos valores humanísticos de direitos humanos, democracia e justiça social. Como um dos países mais pró-europeus da UE, Portugal tem reiterado repetidamente o seu apoio às aspirações europeias dos países dos Balcãs Ocidentais, incluindo o Kosovo, e é disso que a nossa região mais precisa para ver mais dinamizado o caminho para a integração. Há anos que o Kosovo tem lutado e se tem empenhado pelo direito à liberdade de circulação na UE. Apesar de as próprias instituições europeias terem confirmado desde 2016 que o Kosovo cumpre os critérios para a liberalização dos vistos, infelizmente os cidadãos do Kosovo ainda não gozam deste privilégio, ao qual têm acesso outros países da região. Não estamos a falar aqui do acordo do espaço Schengen de 1995 entre os Estados membros da UE, mas sim de viagens sem visto até 90 dias, e não de uma autorização de trabalho ou residência em nenhum dos países do espaço Schengen. Havíamos entendido esse processo, iniciado há mais de uma década, como um verdadeiro indicador da aproximação da UE com o resto do Sudeste Europeu. Deste esforço, todos os nossos países da região beneficiaram, alguns em 2008 e outros em 2009, mas o Kosovo, até hoje, continua a ser o único país isolado. Gosto quando o ministro de Negócios Estrangeiros, o Dr. Santos Silva, nos chama de vizinhos, quando fala dos nossos países, ou seja, os países do sudeste da Europa. Como diz um provérbio, um mau vizinho é uma desgraça, no entanto um bom vizinho é uma grande bênção. As pessoas comuns costumam ter a impressão de que nós estamos em algum lugar a centenas de milhares de quilómetros de distância. Na verdade, neste mundo em que vivemos hoje, a Europa pode até parecer pequena. Um grande escritor nosso, Ismail Kadaré, cujos livros já foram traduzidos também para português, um dos quais tem o título Esse Mortal Caiu e Nós Vimos, faz sentido hoje neste maior desafio deste início de século no confronto global com a crise que trouxe a pandemia. Estamos a testemunhar o que aconteceu com o fornecimento de bens vitais, desde as máscaras até à falta de ventiladores, então acho que é hora de uma maior solidariedade, de uma maior aproximação entre as pessoas, entre sociedades, entre os estados. Viemos para Portugal, refiro-me à abertura da embaixada em Lisboa, porque sentimos que devíamos vir. Há várias razões para isso. Em primeiro lugar, Portugal é um país de especial importância na Europa e não só. Consideramos que Portugal tem uma voz importante nas organizações regionais e internacionais, bem como nos fortes laços políticos e económicos com muitos países e regiões fora do continente europeu. Para além disso, penso que existe uma dimensão e uma moral na razão da nossa presença, com uma missão diplomática permanente, em Lisboa. As pessoas podem esquecer tudo, mas não o perigo da sua dissolução, dos seus feitos, como aconteceu com o povo do Kosovo na última década do século passado. Mais de seis mil soldados de Portugal serviram no Kosovo como parte dos grandes esforços do mundo democrático para estabelecer a paz e a estabilidade regional. Muitas famílias do Kosovo deslocadas pela guerra encontraram refúgio e vieram para Portugal. De facto, Portugal já esteve na presidência da UE três vezes consecutivas em momentos de sensibilidade histórica para a nossa região, como os anos de 1992, 2000 e especialmente em 2007, durante a fase final das negociações em Viena para o Estatuto Final do Kosovo. O seu papel na coordenação de ações globais e coerentes com a UE era insubstituível. Estamos convictos do reiterado sucesso da presidência de Portugal do Conselho da UE a partir de janeiro do próximo ano. Esta presidência chega num momento importante para a UE e para as suas relações com os Balcãs Ocidentais e não só, de muitas formas, e nós expressamos o nosso total apoio ao trabalho e aos compromissos a partir da nossa embaixada em Lisboa. Completam-se hoje 12 anos desde que Portugal reconheceu o Kosovo como um Estado independente e soberano. Estamos aqui também como sinal de respeito e gratidão pelo reconhecimento de toda a contribuição prestada. Nós alegramo-nos com o facto de que o Kosovo e Portugal construíram uma relação estável e amigável e de que há um interesse crescente na intensificação da cooperação bilateral em todas as áreas. Consideramos que a cooperação política, económica e outras entre o Kosovo e Portugal podem ser aprofundadas, no interesse de ambos os países e da nossa região..Mais de cem países reconhecem o Kosovo. Porque ainda é tão difícil ser membro da ONU? A história diz-nos que grandes acontecimentos quase nunca são produto de um único fator. A sua independência e reconhecimento internacional também vieram como resultado de muitos acontecimentos e circunstâncias históricas, políticas e jurídicas internacionais. Reconhecimentos imediatos e fortes consolidaram a Independência do Kosovo e tornaram-na uma realidade e um facto geopolítico irreversível. A declaração de independência veio após dois anos de conversações entre representantes do Kosovo e da Sérvia, com mediação internacional. A proposta foi do enviado especial do secretário-geral da ONU, o presidente Martti Ahtisaari - propôs a independência supervisionada com fortes garantias para as minorias étnicas - e este plano foi posteriormente concretizado na declaração de independência e na Constituição da República do Kosovo. O Tribunal Internacional de Justiça, dois anos depois, a 22 de julho de 2010, confirmou que a independência de Kosovo estava de acordo com o direito internacional. Dada a posição da Rússia sobre esses acontecimentos, isso causou atrasos na adesão do Kosovo à ONU. Apesar disso, devo dizer que o Kosovo sempre mostrou sensibilidade para qualquer opinião e posição a fim de não entrar em conflito com os interesses dos defensores da sua independência. Benefícios táticos em detrimento das relações e interesses estratégicos com os seus aliados nunca foram visados. Afirmo que a adesão do Kosovo à ONU é uma questão de tempo e que, com o Kosovo permanecendo fora da ONU, ninguém beneficia. Isso é o mesmo que recusar emitir uma certidão de nascimento para uma criança já nascida - se me permitem usar o eufemismo..Recentemente, o estabelecimento de novas relações bilaterais com Israel foi uma surpresa. Como explica a diferença na opção de Israel e, por outro lado, um país de maioria muçulmana como o Kosovo tendo boas relações com Israel? Muitos países ainda não reconheceram o Kosovo, mas isso não significa que se oponham à sua independência. Por exemplo, o Kosovo era membro do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial em junho de 2009 quando, até então, era reconhecido apenas por 59 estados e, no entanto, tinham votado a favor da sua adesão mais de cem estados. Ou mais tarde, em 2012, quando o Kosovo se tornou membro do Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento, continuando com o Banco de Desenvolvimento do Conselho da Europa, com a Organização Mundial das Alfândegas, na Francofonia e assim por diante. Assim é também com Israel, que sempre expressou simpatia pelo povo do Kosovo. A comunicação e a cooperação entre Kosovo e Israel não falham desde 2008, quando o Kosovo declarou independência. Isso também tem uma dimensão histórica, visto que as boas relações entre os albaneses e judeus do Kosovo foram fortalecidas durante a Segunda Guerra Mundial, quando os albaneses do Kosovo ajudaram muitos refugiados judeus que fugiam da Europa Central e do Sul, fornecendo-lhes comida e abrigo. E essa ligação foi fortalecida em 1999 quando, durante a limpeza étnica realizada no Kosovo pela Sérvia, Israel acolheu refugiados do Kosovo. Poucos dias depois dos acontecimentos históricos em Washington DC, o primeiro-ministro Netanyahu dirigiu uma carta aos cidadãos do Kosovo em que, entre outras coisas, avaliou as nossas relações estabelecidas como o início de uma nova era da qual os povos dos dois países iriam beneficiar. Por outro lado, o Kosovo é um Estado laico e a sociedade kosovar é um exemplo de consistência e harmonia entre religiões. O Kosovo preserva tanto as tradições muçulmanas como as cristãs, demonstrando ao longo dos anos o seu compromisso de proteger todas as religiões e comunidades, incluindo a sua pequena comunidade judaica. Agradecemos o reconhecimento e a primeira coisa que fiz no dia seguinte foi visitar o embaixador Raphael Gamzou, aqui na Embaixada de Israel em Lisboa, a quem agradeci e manifestei a minha vontade de colaborar. Tivemos uma conversa amigável como se nos conhecêssemos há muitos anos..E com a Sérvia? Como avança o diálogo entre Pristina e Belgrado sobre a necessidade de resolver questões como fronteiras ou direitos das minorias? A decisão do Tribunal Internacional de Justiça, em 2010, impôs a abertura de um novo capítulo nas nossas relações com a Sérvia. Foi também um ponto de viragem na perspetiva da ONU. A Assembleia Geral aprovou a posição do tribunal de que a independência do Kosovo se enquadrava no quadro do direito internacional e, através de uma resolução, transferiu a responsabilidade do mediador de Nova Iorque para Bruxelas. Para a comunidade internacional, o Kosovo deixou de ser visto como um problema. O mundo exortou a Sérvia e o Kosovo a empenharem-se na solução prática dos problemas, encerrando de uma vez por todas as discussões sobre as reivindicações da Sérvia por novas negociações para resolver o estatuto do Kosovo. Por outro lado, o Kosovo implementou reformas abrangentes na economia e no Estado de direito, com especial destaque para a proteção e a garantia dos direitos da minoria sérvia do Kosovo e a preservação do carácter multiétnico do Estado. Nos últimos anos, o Kosovo fez grandes progressos na reconciliação política, procurando ativamente melhorar as relações com a Sérvia através de uma série de acordos alcançados entre os dois países no diálogo mediado pela UE. Os dois países estabeleceram comunicação direta, a região vive em paz enquanto os incidentes interétnicos são coisa do passado. No entanto, é preciso dizer que este diálogo desenvolvido ao longo de vários anos mostrou grandes lacunas no que era o próprio objetivo deste diálogo, a normalização plena das relações através do reconhecimento mútuo. Infelizmente, a reconciliação genuína foi atrasada pela falta de confronto da Sérvia com o seu passado. Recentemente, observamos um novo empenho dos Estados Unidos com o processo, o que facilitou o acordo de normalização económica entre o Kosovo e a Sérvia. Todo este empenho influenciou a criação de um novo impulso na continuidade deste processo..Como descreve as relações entre o Kosovo e a Albânia? É possível imaginar um dia uma unificação das terras habitadas por albaneses? As relações com a Albânia são excelentes e fraternas. Eles são guiados pelo interesse de ambos os países em aprofundar os nossos laços culturais, políticos, económicos e assim por diante, bem como em avançar no processo de integração na União Europeia, sendo este um objetivo comum. Assim, o Kosovo e a Albânia têm como principal objetivo a integração na estrutura euroatlântica, embora consideremos que isso significa relativizar as fronteiras, não concretizá-las ou glorificá-las. Vemos isso como a única forma de garantir a estabilidade e a prosperidade de nossa problemática região..A UE e a NATO ainda são prioridades para o Kosovo? O Kosovo construiu relações sólidas e históricas com a maioria dos países da União Europeia e da NATO. Os cidadãos do Kosovo ambicionavam pela democracia quando a Jugoslávia ainda estava viva e o Muro de Berlim ainda estava em vigor, portanto, a plena adesão do Kosovo às estruturas da UE e da NATO representam um interesse estratégico para nossa nação e, como tal, permanece um objetivo vital e uma aspiração para o nosso Estado..A relação com os EUA poderia ser afetada por uma possível derrota de Donald Trump, um grande apoiante de Kosovo? O Kosovo nunca foi uma "arena de confronto" entre democratas e republicanos nos Estados Unidos. O Kosovo e seu povo sempre contaram com o apoio de todas as administrações dos EUA que apoiaram e promoveram um Kosovo independente, em paz duradoura com os seus vizinhos e membros de instituições euroatlânticas. Foi a administração democrática do presidente Clinton que desempenhou um papel de liderança na intervenção da NATO em 1999 para impedir os massacres sistemáticos e em massa de albaneses do Kosovo pelo regime de ocupação de Slobodan Milošević. Assim como a administração republicana do presidente George W. Bush, que em 2008 reconheceu a independência de Kosovo e apoiou fortemente o progresso do Estado de Kosovo. Para nós, o relacionamento especial com os Estados Unidos da América, desenvolvido ao longo de décadas, é tratado com especial prioridade e é de suma importância para a manutenção da paz e da estabilidade no país e na região.