"What happens in Vegas stays in Vegas", reza um dos mais famosos slogans promovidos pela indústria do turismo à escala global. Para Cristiano Ronaldo, no entanto, o que quer que tenha acontecido naquelas famosas férias de um verão que o elevou ao estatuto de jogador mais caro da história do futebol não ficou enterrado na Sin City. Voltou agora, nove anos depois, para atormentá-lo, sob a forma de uma acusação de violação apresentada por uma professora e ex-aspirante a modelo com quem se envolveu numa discoteca em Las Vegas..Kathryn Mayorga deu entrada com uma ação cível no tribunal do condado de Clark, no estado do Nevada, e levou entretanto a polícia de Las Vegas a reabrir uma investigação criminal que tinha ficado esquecida quando Mayorga apresentou pela primeira vez queixa contra Ronaldo, naquele mês de junho de 2009. Agora, este fantasma do passado voltou para atormentar o capitão da seleção portuguesa e o colocar no olho do furacão, perante a mais séria acusação em que já se viu envolvido na carreira, provocando-lhe desde já danos reputacionais difíceis de gerir, com uma imagem pública beliscada e patrocinadores assustados. Isto numa altura em que o avançado tentava encontrar a tranquilidade na sua nova etapa em Turim, como jogador da Juventus - depois de ter saído de Madrid, onde já tivera de passar os últimos tempos a defender-se em tribunal, por causa de questões fiscais..Cristiano Ronaldo tem agora várias frentes de batalha para se livrar do fardo que representa esta acusação. Dos tribunais ao relvado, da opinião pública ao círculo familiar, o futebolista português cinco vezes eleito o melhor do mundo pela FIFA vai ter de ir a jogo num desafio de múltiplas dimensões..As teias da justiça americana.Os primeiros sinais de que a noite passada na penthouse do Palms Place Hotel de Las Vegas, de 12 para 13 de junho de 2009, poderia voltar a cruzar-se na vida do internacional português surgiram em maio de 2017, quando a revista alemã Der Spiegel revelou ter tido acesso a documentos obtidos pelo site Football Leaks sobre um pagamento de Cristiano Ronaldo para abafar um suposto caso de violação. Na semana passada, a publicação voltou à carga, desta vez com uma entrevista a Kathryn Mayorga, a mulher que acusa o jogador e que diz ter recebido 375 mil dólares (cerca de 325 mil euros), em 2010, para não apresentar queixa contra ele..O que Cristiano Ronaldo e os seus representantes começaram por tratar como "ficção jornalística" e responder com uma "ação legal" contra a Der Spiegel materializou-se a 27 de setembro último com a queixa cível apresentada pela norte-americana, atualmente com 34 anos, num tribunal do condado de Clark. .Kathryn Mayorga quer ver anulado o acordo de confidencialidade assinado em 2010 e os seus novos advogados, a sociedade Stovall & Associates, liderada por Leslie Stovall, apontam 11 crimes (que vão desde violação sexual e tentativa de assédio sexual a coação para fraude e abuso de pessoa vulnerável) a Ronaldo e à equipa de negociadores que por ele terá acertado o acordo - que o português nunca admitiu publicamente, mas o qual terá procurado para evitar as repercussões públicas de uma acusação de violação numa altura em que tinha assinado com o Real Madrid o maior contrato do futebol mundial..Potencialmente mais grave do que a ação cível apresentada por Mayorga - que pede uma compensação financeira entre 200 mil e um milhão de dólares - é a investigação criminal reaberta entretanto pela Polícia Metropolitana de Las Vegas, que em 2009 não tinha dado seguimento à queixa da então aspirante a modelo que acabara de terminar um casamento de cerca de um ano com um cidadão albanês..Se no caso da ação cível o mais provável é que ela resulte num acordo antes de chegar a julgamento (é o que acontece com mais de 95% dos processos cíveis nos EUA), a investigação policial, num contexto social que ganhou sensibilidade extra desde o eclodir do movimento #MeToo (invocado agora por Mayorga, também, como fator propulsor para ter vindo a público apontar o dedo a Ronaldo), faz projetar, em última instância, cenários inquietantes: poderá Cristiano Ronaldo vir a ser acusado de um crime de abuso sexual que, no estado do Nevada, é punível até com prisão perpétua? E, se isso vier a acontecer, podem os EUA requerer a extradição do jogador português?.Apostado numa defesa célere e eficaz, o capitão da seleção nacional contratou na última semana os serviços de um dos mais conceituados advogados de Las Vegas, David Chesnoff, especialista em direito penal e com uma carteira de casos e clientes famosos que inclui Paris Hilton, Mike Tyson, David Copperfield e também o produtor de Hollywood Harvey Weinstein, o nome que fez espoletar o movimento #MeToo, acusado de assédio e abuso por várias mulheres da indústria cinematográfica..O cenário de uma ida a julgamento é descrito por vários juristas norte-americanos como improvável - muito tempo passou, as provas recolhidas e os depoimentos de testemunhas perdem eficiência e, ainda para mais, há já um arquivamento inicial da polícia de Las Vegas sobre o caso, escreve o analista e professor universitário Michael McCann, na Sports Illustrated..Ao DN, o advogado Pedro Marinho Falcão considera que mesmo que o caso chegue a julgamento não seria possível a extradição, ao abrigo da convenção de 1908 que estabelece o acordo bilateral entre Portugal e EUA nessa matéria e que foi ajustada por um instrumento ratificado em julho de 2005. "Portugal não é obrigado a entregar um cidadão do seu país e não o faz relativamente a infrações puníveis com a pena de grandiosidade não prevista no direito penal português", refere, sobre o crime de que é acusado Ronaldo, violação, que no estado do Nevada é punível até com prisão perpétua..No entanto, como Ronaldo vive e joga atualmente em Itália, "não está protegido atualmente por essa convenção", diz o jurista portuense, lembrando que a justiça italiana poderia aceitar um eventual pedido de extradição do jogador da Juventus por parte dos EUA..Nesta fase, falta perceber ainda, em relação à sua estratégia de defesa, se Ronaldo irá cooperar com a investigação policial reaberta em Las Vegas. Para já, o mais provável é que o internacional português evite viajar até território norte-americano, sob pena de poder ser detido para interrogatório - ele que até admitira gostar de viver nos Estados Unidos na fase final da carreira..A justiça dos EUA pode, contudo, "requerer que sejam feitas diligências em Portugal (ou na Itália) para obrigar Cristiano Ronaldo a ser ouvido" no âmbito de um eventual processo, frisa Pedro Marinho Falcão, ao abrigo dos tratados de assistência legal mútua (MLAT) assinados entre os Estados Unidos e os países membros da União Europeia..Patrocinadores assustados, milhões em risco.Se no campo judicial os desenvolvimentos deste caso ainda são difíceis de prever, no campo mediático Cristiano Ronaldo já pouco poderá fazer para se ver a salvo das repercussões desta acusação. Os advogados do jogador anunciaram procedimentos legais contra a Der Spiegel pelas matérias publicadas na revista alemã, mas agora, em face da queixa apresentada por Kathryn Mayorga nos EUA, o controlo da cobertura noticiosa nos media torna-se "praticamente impossível", anui o advogado.."Nos Estados Unidos, os advogados gozam desta liberdade mediática", diz, apontando como exemplo a conferência de imprensa dada pelos representantes de Kathryn Mayorga na última quarta-feira. "A partir do momento em que o assunto é público, não vejo como se possa intentar uma providência cautelar para impedir a cobertura noticiosa.".Assim, Cristiano Ronaldo terá de se habituar a ver o seu nome associado, nos próximos tempos, a um caso de repercussões tão fortemente negativas quanto uma acusação de violação e às previsíveis futuras notícias que dele ainda emergirão desde um país onde a exposição mediática da justiça é tão exacerbada quanto os EUA..E aqui os efeitos podem ser nefastos para Ronaldo sobretudo ao nível dos patrocinadores - e dos contratos milionários que fazem do capitão da seleção nacional o principal embaixador de diversas marcas à escala global. "Estando em causa um crime de violação, há um fator de choque acrescido junto da opinião pública, como acontece com os crimes de sangue. Isso pode pôr em causa a imagem do Ronaldo e afetar irremediavelmente os contratos que ele tem", admite Pedro Marinho Falcão..Os primeiro sinais de alerta já se fizeram sentir, com a Nike, com a qual Ronaldo assinou um contrato vitalício de valor estimado em cerca de mil milhões de euros, a manifestar-se "preocupada" com "as inquietantes acusações". Tal como a EA Sports, empresa de videojogos que voltou a escolher Cristiano Ronaldo para ser a imagem do novo FIFA19 e já escondeu o português das imagens de entrada no site..Para Daniel Sá, diretor do IPAM e especialista em marketing desportivo, "ainda é prematuro estimar qualquer tipo de impacto", diz, realçando que Cristiano Ronaldo "tem uma marca bastante forte e consolidada". "Ao longo de 15 anos de carreira ao mais alto nível, fabricou uma imagem positiva de robustez, dedicação e profissionalismo extremos", acrescenta..Mas, admite, "há um risco, é lógico que há". E recorre ao exemplo de Tiger Woods, o golfista que até há uma década era a mais forte e apetecida "marca" do mundo do desporto e "de repente se viu envolvido em polémicas de adultério e adições sexuais, entre outros, que o fizeram perder todos os patrocinadores à volta dele", numa espiral de declínio da qual só neste ano voltou a sair..Segundo a revista Forbes, o avançado de 33 anos fatura cerca de 40 milhões de euros anuais apenas em contratos de patrocínio. Num cenário extremo, tudo isso está em risco. "As marcas globais vão acompanhar seguramente isto com muita atenção. Têm equipas que monitorizam de perto o impacto destes processos na reputação da marca e, se virem que estão a ser prejudicados, acionam cláusulas de quebra do contrato. Mas julgo que estamos longe dessa fase", diz Daniel Sá, concordando que "quanto mais tempo durar isto na agenda mediática pior para a imagem do Cristiano Ronaldo"..Juventus e seleção protegem o maior ativo.Ao nível desportivo, este caso atinge o avançado português numa fase sensível da carreira, quando Cristiano Ronaldo acaba de se mudar para a Juventus, onde passou a ser o jogador mais caro da história do futebol italiano e pretende comprovar que, aos 33 anos, pode continuar a lutar pelo estatuto de melhor do mundo noutro contexto que não o do Real Madrid e da liga espanhola, onde passara os nove anos anteriores. Agora, este é um fator de distração de consequências imprevisíveis no rendimento desportivo..Para o clube italiano, as notícias também trazem um fator de preocupação evidente, pouco tempo depois de ter feito o seu maior investimento de sempre (117 milhões de euros), contando, em grande parte, com o valor da marca Cristiano Ronaldo como uma forma de rentabilizar um negócio que engloba ainda um salário de 30 milhões de euros anuais até 2022. .Depois de se remeter a um "no comments", como aquele que enviou ao DN nas primeiras horas após a queixa de Kathryn Mayorga se ter tornado pública, a Juventus saiu em defesa do jogador português nas redes sociais, na quinta-feira: "O Cristiano Ronaldo mostrou grande profissionalismo e dedicação nos recentes meses, algo apreciado por todos na Juventus. Os alegados eventos de há dez anos não mudam esta opinião, partilhada por todos os que entraram em contacto com este grande campeão." Mas o clube já viu as ações tombarem 10% em bolsa na última sexta-feira..Uma defesa pública seguramente muito apreciada pelo internacional português, que decidiu sair do Real Madrid no final da época passada precisamente por não sentir o apoio do clube espanhol em matérias tão diversas quanto o seu valor de mercado ou as acusações de fraude fiscal das quais teve de se defender em tribunal..No contexto da seleção nacional o apoio foi imediato. Cristiano Ronaldo, o maior ativo também da Federação Portuguesa de Futebol, foi libertado de todos os compromissos competitivos de Portugal no que resta deste ano e recebeu a confiança pública do selecionador Fernando Santos e do presidente Fernando Gomes.."Nesta fase é importante sentir o apoio dos que lhe são próximos, mesmo no âmbito profissional, o que nem sempre terá acontecido em Espanha e o deixou incomodado", realça o psicólogo Jorge Silvério, com mais de duas décadas de experiência no trabalho com desportistas. O que nos leva a entrar numa outra dimensão deste caso. A dimensão mais próxima a Ronaldo, ao seu contexto pessoal e familiar..Uma pop star com família a proteger."Muitas vezes esquecemos essa dimensão óbvia e tão importante que é o facto de os jogadores que nos habituamos a ver como ídolos e super-heróis, quase, são também, por baixo dessa pele, seres humanos como quaisquer outros. Por mais que achemos que eles vivem numa bolha, eles também são suscetíveis de ser afetados pelas coisas em seu redor. Sejam as mais simples, como uma constipação de um filho, ou as mais graves, como esta acusação", lembra Jorge Silvério..Abstrair-se de um caso com estas repercussões públicas e manter-se focado num rendimento desportivo de excelência é, pois, nesta altura, o desafio que enfrenta pessoalmente Cristiano Ronaldo, "em quem todas as coisas ganham uma dimensão exacerbada, justificada pelo facto de ele personalizar a figura de grande pop star do futebol mundial"..Mas é precisamente esse contexto, considera Jorge Silvério, que o ajudará a lidar da melhor forma com esta acusação: "Ele já se habituou a ter de lidar com todo o mediatismo, positivo e negativo, ao longo da carreira. Teve de criar a capacidade de se abstrair, de se superar perante reações dos media ou da opinião pública. E essas competências vão ser úteis para se manter isolado deste caso.".Mais delicado, considera, é o contexto familiar. Não porque Cristiano Ronaldo não tenha uma família forte e unida em seu redor. Pelo contrário. Pela primeira vez desde que está em Itália, o jogador recebeu na última semana a visita da mãe, Dolores, e já teve o apoio público da companheira, Georgina, nas redes sociais. Mas é precisamente a proteção da família em relação aos estilhaços públicos deste caso que mais pode preocupar o avançado..Cristiano Ronaldo é hoje um pai de família, com quatro filhos, e se três ainda são bebés, sem perceção imediata do que afeta o pai, o mais velho, Cristianinho, já será inevitavelmente confrontado com a repercussão negativa do caso em redor de Ronaldo. "É importante haver uma proteção em relação à família", sublinha Jorge Silvério. "A nossa maior fragilidade é a família. E por vezes preocupamo-nos mais com a forma como os nossos filhos, mulher, pais, etc., podem ser afetados do que propriamente com nós próprios", acrescenta..Por isso, ressalva o psicólogo, "é importante criar mecanismos de defesa em relação aos familiares", aos quais a melhor forma de explicar o caso "é falar abertamente do que está em causa - com o devido enquadramento em relação às idades de cada elemento, naturalmente - e dar-lhes todo o apoio perante os comentários com que possam vir a ser confrontados no dia-a-dia"..Resumindo: o desafio é sério, o maior da carreira de Cristiano Ronaldo. E precisa, da parte dele, de respostas tão capazes e certeiras como as que se habituou a dar(-nos) com uma bola perante as balizas adversárias.