Se alguém tinha dúvidas de que o PCP é um partido distinto dos outros, a forma como o país soube, sábado à noite, da saída de Jerónimo de Sousa e da sua substituição em breve, como secretário-geral, por Paulo Raimundo diz quase tudo: os comunistas apresentaram o novo líder como consensual, nada se conhece de eventuais rivais para o cargo, evitaram fugas de informação para a imprensa, trocaram por completo as voltas aos comentadores que há anos apostavam em certos militantes com destaque mediático como sucessor. Goste-se ou não, os comunistas portugueses são mesmo diferentes..É a história e a ideologia que explica esta singularidade do PCP. Basta pensar que na edição de 7 de março de 1921 o DN deu a notícia da fundação da seguinte forma: "Estava convocada para ontem, na sede da Associação de Classe dos Empregados de Escritório, uma sessão de propaganda promovida pela comissão organizadora do Partido Comunista. Esta sessão não se realizou devido a ter sido proibida pela autoridade superior, mas, no entanto, a assembleia ainda sancionou os nomes dos indivíduos indigitados para os corpos dirigentes do partido e que serão junta nacional, conselho económico e comissão de propaganda." Começou, pois, de forma atribulada este percurso de mais de um século na vida do país, atribulação que passou a perseguição com a chegada da ditadura, dando ao PCP os seus mártires (entre eles o secretário-geral Bento Gonçalves, que morreu em 1942 preso no Tarrafal) e também um prestígio como resistente que valeu votos depois do 25 de Abril, até de muitos portugueses que não partilhavam da ideologia, muito menos da obediência ao Kremlin..É inegável que houve no PCP um antes e um depois da saída de Álvaro Cunhal, substituído como secretário-geral em 1992, um ano depois do fim da URSS e após um conturbado período de dissidências e quebra de votação. Os historiadores concordam, em regra, no papel-chave de Cunhal na consolidação da democracia, por ter aceitado a derrota no 25 de Novembro. Nem todos o teriam feito, sabendo que boa parte do Sul do país e a cintura industrial de Lisboa apoiava o partido. Mas o resultado nas Constituintes de 1975 tinha revelado que o prestígio da luta antifascista tinha limites eleitorais e o máximo que o PCP obteve numas legislativas não chegaria aos 20%..À derrocada do bloco soviético seguiu-se a da votação do PCP, que se reafirmou, entretanto, como partido nacional, com uma luta essencialmente no quadro do combate às injustiças sociais em Portugal. Na sua década, Carlos Carvalhas fez o que pôde para travar a erosão eleitoral, com o partido a manter-se forte nas autarquias e a assegurar um razoável grupo parlamentar. E nestes 18 anos de Jerónimo de Sousa como secretário-geral até começou por se dar uma gradual recuperação eleitoral, desfeita nos últimos tempos, provavelmente em consequência do apoio a governos do PS (vulgo "geringonça"), mas também por causa da própria demografia, com os votantes admiradores da luta do PCP que vão desaparecendo a não serem substituídos nas novas gerações, por muito ativa que seja a JCP..Não conheço Raimundo, mesmo que tenhamos idades próximas e Setúbal como cidade e até frequentado no 12.º ano a mesma escola. Ele cresceu no Faralhão, que, apesar de tudo, é longe do Bairro da Reboreda, mas nas últimas horas não faltou quem me descrevesse um homem sério, trabalhador e simpático. São tudo características positivas, mas, só por si, não chegam para inverter o rumo eleitoral do partido - basta pensar na popularidade, mesmo entre os apoiantes de outros partidos, do camarada Jerónimo, o antigo operário que chegou a ser deputado na Assembleia Constituinte..Mas provavelmente são estas as características de base num secretário-geral - mais jovem do que Jerónimo, claro - que o PCP precisa para se reinventar sem se refundar, sem renegar o passado. Portugal continua a ter demasiados pobres e muita desigualdade social. E o elevador social, admita-se, deixou de funcionar, depois de algum sucesso nas primeiras décadas da democracia. A precariedade no emprego tem de ser combatida, a falta de acesso à habitação também, a qualidade na escola e na saúde públicas defendidas e, se há mais partidos capazes de o fazer, é inegável que o currículo do PCP nestas matérias fala por si. Deixe, pois, o partido de se envolver em polémicas geopolíticas que nada o beneficiam e centre antes a sua ação na luta contra as injustiças dentro de fronteiras. A quebra dos PC na Europa Ocidental é geral, sobrevivendo em Espanha e em França numa posição subalterna, em movimentos esquerdistas como o Podemos e a França Insubmissa. E por isso a tal reinvenção cá ser bem-sucedida não é fácil. Mas todas as democracias, mesmo as de perfil liberal na economia, precisam de uma espécie de grilo falante que seja a voz da consciência e lembre os que vão ficando para trás. Nenhum outro partido, até pela sua implantação nos meios sindicais, está em melhores condições do que o PCP para desempenhar este papel. Sem populismos..Diretor adjunto do Diário de Notícias