Vinho da talha: beber como um romano

Mais conhecidos pelas conquistas militares ou pelos ócios exuberantes, os romanos foram também dedicados agricultores. Criaram uma autêntica civilização do vinho e levaram-na a vários pontos do seu império, incluindo a Península Ibérica. Em Vila de Frades, no Centro Interpretativo do Vinho da Talha, prestes a inaugurar, é-nos possível saber ao que sabe e como ainda hoje se produz vinho à maneira dos antigos.

"In vino, veritas", diziam os romanos, atribuindo a essa bebida que transportavam de um extremo ao outro do Mediterrâneo a função de soro da verdade. O vinho revelava, acreditava-se, a essência de quem o bebia, mas também servia de identificador do cidadão romano (qualquer que fosse o seu lugar de nascimento) por oposição ao bárbaro, bebedor de cerveja.

Dois mil anos depois de Jesus Cristo, segundo os evangelhos, ter transformado a água em vinho, e não em cerveja, nas Bodas de Caná (demonstrando assim que a Judeia estava já perfeitamente romanizada), Vila de Frades, aldeia de aproximadamente 800 habitantes, "colada" à sede do concelho, a vila da Vidigueira, é um dos poucos lugares do mundo que nos dá a beber um vinho em tudo semelhante, no fabrico e no sabor, ao que ia à mesa tanto de Cristo como de Júlio César.

Uma especificidade a que o município quer dar uma dimensão internacional, primeiro com a candidatura do vinho de talha à classificação como Património Cultural Imaterial da Humanidade da UNESCO (apresentada em 2018) e, agora, com o Centro Interpretativo, que será inaugurado na próxima quarta-feira, Dia de São Martinho.

"O objectivo", diz Rui Raposo, presidente da Câmara da Vidigueira, "é mostrar ao mundo este nosso saber milenar, transmitido de geração em geração, que durante muito tempo foi apenas um vinho para os amigos, mas aos poucos tem envolvido um número crescente de produtores e adquirido grande qualidade".

Ao entrar no novo espaço, o visitante viaja até às origens da cultura vinícola na região: um punhado de grainhas de uva fossilizadas e outros achados arqueológicos, oriundos das vizinhas ruínas de Cucufate, remetem-nos para o princípio da Era Cristã, quando os romanos que um dia viveram e morreram aqui iniciaram a produção de vinho pelos mesmos processos e com utensílios em tudo semelhantes aos aqui utilizados. Lá estão as talhas de barro, herdeiras das tinalia romanas, gigantescas, com capacidade para mil litros de vinho cada, impermeabilizadas com cera de abelha e resina natural, as prensas em que se esmigalham as uvas, os canecos, os batoques, os rodos com que o líquido é mexido duas vezes por dia, ao longo dos 40 em que fica a fermentar sob apertada vigilância de dois homens, que, afinal, são um pouco amas do vinho.

"É um produto muito natural, já que em nenhum momento do seu fabrico ou conservação são utilizados químicos", assegura Rui Raposo enquanto aguardamos pelo ritual, de muita expectativa e alguma solenidade, de abertura da talha. Como em todos os processos naturais, nada está garantido à partida e só agora podemos conhecer verdadeiramente a qualidade do vinho ali depositado. Junto à base do recipiente, dois homens procedem à abertura, mas - aí está o fator surpresa a funcionar - constatam que a rolha rebentara com a pressão do líquido em fermentação. "Casos há", explica-nos ainda o autarca, "em que são as próprias talhas a não aguentar, sobretudo quando são muito antigas. E temos aqui algumas com centenas de anos." Mas nada está perdido. "Quando isso acontece, transportamo-las cuidadosamente para cima das dornas que recolhem o líquido derramado." O importante é combater o desperdício.

Retirados os pedaços de cortiça, há que introduzir ráfia na talha para calafetar antes da inserção do batoque. Quando o vinho começa a jorrar para os alguidares inicia-se um processo de vários dias em que ele se liberta de toda a matéria em suspensão, nomeadamente grainhas e cascas. Apesar de não estar ainda pronto para ser consumido, José Miguel Almeida, presidente da Adega Cooperativa da Vidigueira, arrisca a prova e garante "que será frutado". No Dia de São Martinho, como manda a tradição, depois de ter voltado à talha várias vezes, o líquido correrá límpido e poderá ser devidamente saboreado, a acompanhar a indispensável castanha assada.

Neste centro de interpretação, onde o presidente da Câmara da Vidigueira sonha ter sempre "umas garrafas reservadas à degustação pelos visitantes", vai ser possível acompanhar todas as fases da produção do vinho de talha, desde a cuidadosa lavagem dos recipientes ao consumo final. No jardim adjacente a este espaço não faltam, aliás, os pés de videira de algumas das principais castas da região: Aragonês, Antão Vaz, Roupeiro, Alicante Bouschet... E encontramos também a reconstituição de uma velha taberna, com os bancos baixos e as mesas com tampo de mármore, onde, ao final do dia, os homens, derreados pela jornada do trabalho ao sol do Alentejo, encontravam o consolo do chamado "vinho do trabalho".
A visita ao Centro Interpretativo do Vinho de Talha deverá ser complementada com uma incursão ao referido sítio arqueológico de Cucufate. Construída originalmente no século I d.C., esta foi uma vila de alguma dimensão (é o maior conjunto habitacional romano preservado na Península Ibérica), com vestígios de termas, jardins e um templo posteriormente adaptado ao culto cristão (já na Idade Média daria lugar ao Convento de São Cucufate, mártir executado em território hoje espanhol, no ano 304).

Para os arqueólogos, Cucufate poderá ter sido também a sede de uma importante casa agrícola, dedicada à vinha, já que os romanos, tantas vezes celebrados pela exuberância dos seus prazeres ou pelas suas conquistas militares, souberam também ser dedicados agricultores. Como escreve Pedro Abrunhosa Pereira no livro O Vinho na Lusitânia (edição Afrontamento, 2017): "O conhecimento dos agrónomos romanos sobre a plantação da videira não se limita aos aspectos formais. Nos tratados de agricultura, propõe-se aos leitores diversos tipos de cepas a plantar, com relação directa com os tipos de terreno, exposição solar e tipo de plantação. A finalidade da produção, seja a de produzir vinho ou, simplesmente, uvas para consumo imediato, ou ainda as exigências comerciais de determinadas plantações marcam também as obras de agronomia latina."

Em São Cucufate, Torre de Palma e Quinta das Longas não faltam, aliás, os vestígios arqueológicos e arqueométricos quer do cultivo da vinha quer de antigas olarias, especializadas no fabrico das indispensáveis talhas. Como escreve ainda Pedro Abrunhosa Pereira, os romanos criaram "uma "civilização do vinho", pelo papel central que assumiu na conformação das diferentes culturas que desenvolveram as margens do Mediterrâneo antigo. Diz um ditado alemão que o homem é aquilo que se come. E o vinho, em particular, é muito mais do que bebida, ou alimento. Os antigos consideram-no, ao mesmo tempo, como bebida divina, remédio poderoso, alimento especial, instrumento de sociabilidade, fonte inigualável de prazer e vício, símbolo de status, mas também de degradação."

O Império Romano caiu, outros povos passaram pelo Alentejo, mas o cultivo da vinha criara raízes profundas. Nesta zona em particular, os gestos passaram de pais para filhos, criando aquilo a que o escritor Fialho de Almeida (1857-1911) chamou O País das Uvas. Mais conhecido pelas suas sátiras Os Gatos ou mesmo pelas suas crónicas urbanas reunidas no livro Lisboa Galante, o escritor, natural de Vila de Frades, nunca esqueceu os rituais e os ritmos da vinicultura da sua infância, nem a angústia e a expectativa dos seus agricultores, registando-os com uma riqueza de vocabulário que nos desconcerta: "Agosto passa. E o mês da sazão dos grandes frutos, em que as debulhas terminam, os pêssegos turgescem, abeberam os figos e enfim se decide a abundância ou a escassez das nossas vindimas."

Em tempos em que poucos sabem o que seja isso de turgir os pêssegos, Vila de Frades faz questão de manter os rituais vinícolas tal como o escritor, e os romanos muito antes dele, o conheceram. Para orgulho dos locais e deleite dos visitantes.

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