Não estorvar quem nos salva

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Numa das suas consequências maléficas, o vírus que causa a atual epidemia é chamado pelos imbecis da informação como "vírus da China". Nem em coisas simples, como um nome, eles acertam. Vá lá, eles chamam-lhe "vírus", que o é, mas cansados com a verdade na primeira de três palavrinhas, logo erram nas duas palavras seguintes: "da China". O vírus é de todo o mundo, como se confirmou nesta semana. Depois de dar volta ao mundo, chegou também a Portugal - e vai continuar pelo mundo. Em matéria tão grave, é prudente os leigos respeitarem os que sabem.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) acordou em dar à doença o nome de covid-19. Curto onde está condensado tudo o que há para saber num nome científico. "Coronavírus", do vírus em causa, "disease", de doença, e "19", de 2019, quando se iniciou o surto, epidemia, ou lá o que é. E ao vírus a OMS batizou-o de Coronavírus da Síndrome Respiratória Aguda Grave 2 (SARS-CoV-2) - chato. Felizmente, nós (os leigos, em casa e nos jornais) podemos recorrer ao nominho coronavírus. Não diz tudo mas não atrapalha fora dos laboratórios.

Nem sempre podemos ter um Galileu Galilei que chamou "aurora boreal" a certos efeitos luminosos nos céus noturnos das regiões polares. Galileu era sábio, até matemático, e, apesar de ser de Florença, não deu aqueles nomes para boicotar lojas de romanos e gregos. Foi para homenagear Aurora, deusa romana do amanhecer, e Bóreas, deus grego dos ventos do norte... Para o coronavírus não tivemos quem inventasse um nome bonito, mas quem quer nome bonito no que nos assusta? Não pode é ser dado nome errado, como esse tão apregoado "vírus da China." Mal apregoado, insisto, porque o coronavírus é universal. E essa é mesmo uma das suas característica científicas mais importantes.

A prudência da OMS, ser picuinhas no nome, não é filha do politicamente correto. É filha da experiência. Sem fugirmos do assunto, doenças contagiosas, falemos do maior surto da história e aproveitemos a data (quase) redonda: a gripe espanhola, de 1918-19, há (quase) um exato século. Apareceu num lugar (que não foi a meseta ibérica) e embarcou num porto (que não foi Vigo, nem Barcelona). E, no entanto, gripe espanhola! Sigamo-la. Nasceu num quartel do Kansas, Estados Unidos, onde soldados americanos se preparavam para a I Guerra Mundial. Embarcou em Boston, no verão de 1918, e logo chegou às trincheiras. Em meses, pelo mundo fora, iria matar 50 milhões.

Em Espanha, aqui ao lado, a gripe também por lá andou e forte. Mas porquê gripe espanhola, especificamente espanhola? Porque em Espanha, neutra durante a I Guerra Mundial, as notícias da epidemia não se escondiam - eram mais um azar com terríveis consequências mas sem causa politicamente incómoda evidente. Em França, nos dois últimos meses de guerra, a gripe matou cem mil soldados aliados e 400 mil civis! Ora, a gripe fora trazida por aqueles que, por outro lado, mudaram o curso da guerra, vencendo-a. Como imputar a aliados salvadores a mais violenta, rápida e mortal epidemia que o mundo conheceu? Não se salvaram vidas, mas batizou-se falsamente uma causa: gripe espanhola.

Sim, ao que tudo indica, a doença Covid-19, causada pelo Coronavírus da Síndrome Respiratória Aguda Grave 2 (SARS-CoV-2), começou em Wuhan, cidade chinesa. Mas chamar-lhe "vírus da China", por esse facto, vale o mesmo que chamar espanhola à gripe que nasceu no Kansas. Nada. Isto é, os nomes podem esconder (1918-19) ou atiçar consequências inconsequentes (março de 2020, na minha rua fecharam duas lojas chinesas). Fora do assunto. Porque do que estamos a falar, e a viver (pois não é conversa), é de uma doença universal.

Deixem os especialistas dar os nomes complicados que eles quiserem - o que queremos deles é que nos salvem. Entretanto, não os estorvemos.

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