Quem ouvisse o tom ríspido entre António Costa e Catarina Martins no último debate quinzenal, na passada quinta-feira no Parlamento, estava longe de imaginar que seria por causa dos professores que uma crise política se precipitaria. A contagem integral do tempo dos professores nem foi tema de debate nesse plenário..Horas depois do debate, foi uma traquitana diferente aquela que fez o primeiro-ministro socialista esticar a corda e ameaçar com uma demissão se a lei passar no Parlamento. Entretanto, PSD e CDS recuaram e fazem agora depender a reposição integral do tempo dos docentes de duas condições difíceis de aceitar pela esquerda do PS: a sustentabilidade financeira e o crescimento económico. E nem o desafio de Mário Nogueira, secretário-geral da Fenprof, para bloquistas e comunistas se absterem convenceu estes dois partidos. O BE já recusou, o PCP também..António Costa terá ficado aparentemente sem espaço para manter a demissão mas mantém sobre a mesa essa intenção, à espera da votação final global. No fim de semana, a coordenadora bloquista, Catarina Martins, bem alertou para o facto de o anúncio do socialista pôr em causa vários dossiês, que mantêm a esquerda sob tensão. "Agora é que começou a crise para o governo. Chama-se Lei de Bases da Saúde, Código Laboral, PREVPAP, Habitação. Pensavam que fugiam...", ironizou o deputado bloquista Luís Monteiro, numa publicação nas redes sociais..Saúde: um beco sem saída à esquerda.É um beco aparentemente sem saída aquele em que se encontra a discussão entre os parceiros da geringonça da nova Lei de Bases da Saúde, depois de os socialistas terem dado o dito por não dito ao fim das parcerias público-privadas (PPP) e das taxas moderadoras nos cuidados primários..As votações indiciárias já começaram no grupo de trabalho, na sexta-feira, quando o país fervilhava com a ameaça de Costa - e os deputados só chegaram até à Base 7 (seguindo a numeração da proposta de lei do governo), num registo muito semelhante ao dos orçamentos do Estado: as propostas da esquerda são chumbadas pela direita; a direita vê as suas chumbadas à esquerda..Na terça e na quarta-feira, há novas reuniões do grupo de trabalho e mais votações. As batatas quentes na geringonça devem acontecer só na quarta-feira. O PS e António Costa têm dramatizado também aqui, desafiando BE, PCP e PEV a viabilizarem uma árvore, que é a possibilidade de existência de PPP, numa floresta muito maior que é o Serviço Nacional de Saúde. Bloquistas e comunistas permaneceram irredutíveis aos cantos de sereia socialistas e este é um ponto em que o PS poderá encontrar conforto à direita..Um dos pontos já votados foi o de garantir na lei de bases uma referência aos cuidadores informais, o que não invalida que se continue a fazer a discussão do estatuto do cuidador informal em simultâneo - e onde o PS também tem travado a vontade dos seus parceiros parlamentares em avançar de forma mais rápida com a legislação..Leis laborais. Mais uma fotografia do Bloco Central?.Desde o início da legislatura que as leis laborais têm dado sucessivas fotografias do... Bloco Central. Verdadeiro calcanhar de Aquiles da geringonça, as leis do trabalho têm deixado repetidamente o PS de um lado e o Bloco de Esquerda e o PCP do outro. Tem sido assim com o aumento dos dias de férias (dos atuais 22 para 25), com a reposição das indemnizações por despedimento nos valores que vigoravam antes da troika (um mês por cada ano de trabalho), com a contratação coletiva ou a reposição do princípio do tratamento mais favorável. E ameaça ser assim no capítulo final desta legislatura..Em cima da mesa está o acordo firmado pelo governo em sede de concertação social, subscrito pelas quatro confederações patronais e pela UGT - um documento que passa várias linhas vermelhas de bloquistas e comunistas que, aliás, votaram contra o texto em julho do ano passado. Foi a abstenção do PSD que viabilizou a proposta, face ao voto favorável dos socialistas..Há cerca de um mês, o PS avançou com propostas de alteração ao texto do executivo, mas ficou longe das exigências de BE e PCP, que querem ver expurgados da lei vários pontos do acordo..A começar por duas normas que alargam o tempo de período experimental dos atuais 90 para 180 dias, para jovens no primeiro emprego e desempregados de longa duração. Para os dois partidos mais à esquerda do hemiciclo esta é uma via de precarização do trabalho que tem de sair da lei. Mas não foi isso que fez o PS - os socialistas integraram no texto uma disposição antiabuso, a aplicar a situações em que, por mais de três vezes, se verifique a dispensa de trabalhadores em período experimental..Uma divergência que está longe de ser caso único e que ameaça colocar novamente o PS e os partidos à sua esquerda em campos opostos. Rui Rio, por seu lado, já admitiu aprovar o acordo firmado na concertação social desde que as propostas do PS não desvirtuem o documento..Lei de Bases da Habitação na lapela da esquerda.A Lei de Bases da Habitação é uma forte candidata à aprovação pela esquerda, embora o PS, nomeadamente pela voz do líder parlamentar, Carlos César, venha dando sinais de querer um entendimento mais alargado..Há pouco mais de uma semana, o PS entregou no Parlamento um novo texto que substitui a proposta original redigida pela deputada Helena Roseta, uma versão que fica mais afastada dos projetos de lei do Bloco de Esquerda e do PCP. Um exemplo: a nova versão dos socialistas deixa cair a possibilidade de requisição temporária de casas devolutas, uma norma que constava dos três textos da esquerda entregues na Assembleia da República no ano passado (PSD e CDS optaram por não apresentar textos próprios e deverão avançar agora com propostas de alteração ao texto dos socialistas)..Mas, apesar de algumas notórias divergências, os três diplomas enunciam princípios comuns, trazendo para a Lei de Bases o que já está disposto na Constituição, pelo que os pontos de discordância não deverão impedir um voto conjunto da esquerda para aprovar a primeira Lei de Bases da Habitação - o único dos grandes direitos sociais previsto na Lei Fundamental que não tem uma lei de bases própria..Em vésperas de entrar em votação na especialidade (artigo a artigo), a Lei de Bases da Habitação deverá subir a votação final global a 31 de maio..Comissões de inquérito. Tancos e Caixa ficariam apeados.Um fim abrupto da legislatura, caso o governo se demitisse, poderia pôr em risco a conclusão, ainda nesta legislatura, dos trabalhos das comissões de inquérito de Tancos e da Caixa. Só a das rendas excessivas, que já está na fase de discussão do seu relatório, poderia ainda acabar em tempo útil..Governo de gestão não pode negociar reposição de carreiras."O que a Constituição diz é que um governo em gestão só pode assegurar a gestão pública de atos correntes. Portanto, não pode tratar de assuntos urgentes ou assuntos que possam mudar substancialmente aquilo que já está estabelecido", explica o constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia..Quer isto dizer que um executivo de gestão "não pode estar a negociar reposicionamento de carreiras que tenham um impacto óbvio no Orçamento do Estado que está em curso", continua o jurista. Na área da saúde, por exemplo, os técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica, médicos e enfermeiros ficam "com as negociações suspensas". Independentemente das reivindicações destes profissionais, deixa de ser possível alterar as condições nas carreiras.