Num Algarve vazio, junho é "o grande teste" à pandemia

Uma das zonas mais populares do Algarve, Monte Gordo, não está habituado a tamanho silêncio. Os comerciantes, dependentes dos locais e dos portugueses que timidamente chegam de outras localidades, temem pela pobreza. A segunda semana de junho pode mudar tudo.
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Quem o viu e quem o vê, este Algarve dos outros que os portugueses esperam ver florescer todos os anos, nesta altura. Por estes dias, não se receia perder uma palavra estranha cantada na rua por um estrangeiro, porque quase tudo se dita na língua de Camões. Quando a noite se esbate sobre a cidade ou quando o sol nasce, nada inunda as maiores avenidas. O Algarve conta-se a vazios.

Em Monte Gordo, uma das zonas mais concorridas da costa algarvia, já não há toalhas empertigadas nos varandins a secar para o dia seguinte, ou boias ao alto. A vasta maioria das varandas junto ao mar tem as persianas fechadas, fazendo adivinhar que ali não mora habitualmente ninguém senão o turista, que este ano não chegou. Antes de o vírus assolar o país, dizem os comerciantes que, pelas 18:00, quando o sol de verão ainda ia lá no alto, a ondulação do mar era silêncio entre o barulho de dezenas de talheres que batiam contra os pratos, nos jantares de esplanada. A pandemia trouxe voz ao mar, tornou silencioso o comércio. Nada neste cenário é, contudo, romântico. Por detrás de um Atlântico mais vivo ao ouvido está a miséria iminente de tantos.

Monte Gordo retrocedeu 55 anos

Depois de um investimento de um milhão na requalificação da zona marginal ao mar da praia de Monte Gordo, no âmbito do Plano de Ordenamento da Orla Costeira (POOC), esperava-se que este fosse "o verão", aquele pelo qual os comerciantes ansiavam, para colher os frutos do novo rosto e do dinheiro gasto durante anos. "Era o ano para ficarmos mais folgados de contas", diz Rosa, 52 anos, comerciante da zona.

Atrás de si, ergue-se um contentor improvisado, onde tem expostos artigos de praia - ferramentas para fazer castelos na areia, boias, toalhas, bonés, entre outros. À frente do negócio há 40 anos, estende-se aqui provisoriamente, enquanto aguarda pelas obras no seu espaço físico. Em tantos anos de profissão, nunca viu Monte Gordo assim. Faz até "lembrar a altura em que o [seu] pai aqui se instalou, por volta de 1965", vindo do Norte para dar formação num hotel: ruas à espera de gente que não vinha.

Não muitos anos daí em diante, esta freguesia de Vila Real de Santo António tornar-se-ia numa atração turística. Em maio, já seria de esperar "os hotéis esgotados e os restaurantes pelo menos a 50%". O que se vê atualmente, "não tem comparação". "Abri no dia 6 de maio, depois de ter fechado antes do Estado de Emergência, e vi logo o que seria a minha vida, com estas ruas desertas". Quase um mês depois do choque com que se cruzou, o espanto no rosto de Rosa continua intacto. O tempo confirmou as suas piores previsões. "Eu venho por vir. Faço cinco euros por dia, no máximo, tem dias que faço zero, e as despesas, atrasadas, continuam a ter de ser pagas", lembra.

Não é a única que sofre este vazio. Nas ruas circundantes, "já se encontra muita casa fechada", que não aguentou tempo suficiente para ver desaparecer a pandemia. "Acho que vai haver muita comidinha a faltar na mesa de muita gente." Para aqueles que continuam abertos, aguarda-se com ansiedade os próximos dias. Especialmente a segunda semana de junho, semana de feriado, que Rosa não tem dúvidas de que "vai ser o grande teste" ao Algarve.

As unidades hoteleiras mostram-se preparadas para a prova que aí vem e o país parece querer contribuir. Caminhamos em direção ao areal. Os longos passadiços de madeira para lá chegar fazem adivinhar poucos junto ao mar. Confirma-se: a areia é de muito poucos, mas portugueses sobretudo. Começam a chegar, pouco a pouco, cumprindo o desconfinamento fora das suas cidades de residência. Com vista para o mar há cerca de 60 anos, o Hotel Vasco da Gama, um dos mais antigos do Algarve, prepara a reabertura no dia 8 de junho. Mal se mostraram disponíveis, o telefone não parou de tocar. Na primeira semana desde o encerramento de portas, espera receber já mais de 150 pessoas.

"O que nos leva a outra preocupação", Rosa levanta o debate. Com uma lotação de 12 mil pessoas na praia de Monte Gordo, "onde fica o resto quando os hotéis começarem a encher?". Numa época normal, não tem dúvidas, "isto leva, normalmente, o dobro".

Nos bares, só os locais

Esquerda. Direita. A postura dos funcionários dos vários restaurantes à margem do mar faz lembrar o atravessar de uma passadeira na estrada. Cautelosos quanto ao perigo, mas esperançosos para atravessar para o lado de lá, aguardam melhores dias. Estes têm sido de esplanada e salas de refeição vazias. "Está muito fraco. Só ao fim de semana é que algumas pessoas arriscam a vir" e, ainda assim, nenhum cenário se compara "ao de há um ano", diz-nos Nuno, o funcionário de um destes restaurantes.

Se antes servia "umas 200 refeições por dia", agora contabiliza um total de dez. Suspira, olha em volta e conta que destes "muitos são locais". Embora, "também vai chegando muita gente de Lisboa e do Porto com casa aqui". "Há ainda aí uns italianos e ingleses que ficaram retidos em Portugal", diz.

Para cada regra, a sua exceção. Enquanto os bares da zona eram invadidos pelo vazio, no fundo do passadiço de madeira, um bar mostrava não ter mãos a medir. Cruzavam-se conversas com rapidez, enquanto Manuela Faria, 65 anos, dona deste bar, lavava as chávenas de café e voltava a servi-las. O passado é o que ajuda a entender a afluência a este espaço.

Filha de pescador, mulher de pescador e ainda mãe de pescador, há anos que a vista da vida e do trabalho de Manuela é o mar. Durante cerca de 40 anos, era o rosto por detrás de um pequeno quiosque de gelados no areal. "Estávamos cá durante os meses de verão" e "no resto do ano era empregada de andares nos hotéis daqui da zona", conta. Por isso, "toda a gente me conhece, na praia e fora dela." O ambiente que a rodeia não deixa margem para dúvidas. Do Vítor ao "senhor João", os nomes soam sem que seja preciso perguntar por eles antes. "Vítor, queres algum bolinho?", cumprimenta-o Manuela. "Quero, de amêndoa. Não pode ser outro que dão-me a volta à barriga" - desabafam-se os hábitos.

Há um ano, largou a tenda na areia por um bar junto ao passadiço, ao abrigo do investimento feito na praia. Saltou uns metros para longe do mar, mas continua com a mesma clientela, que lhe é tão fiel - a comunidade local de Monte Gordo. Agora, está aberta todo o ano, por isso, é também a "dona Manuela" dos turistas, embora não seja deles que depende nesta altura. "De inverno recebemos muito holandeses, a partir de junho são mais portugueses. Agora, estou a trabalhar mais com pessoal da terra. Mas graças a Deus, por causa desta gente, não temos tido problemas nenhuns na clientela", conta.

Mas a maré pode estar a mudar. Com o desconfinamento a avançar em Portugal e no mundo, nos aeroportos portugueses começam a aterrar estrangeiros prontos para dias de descanso nas praias do país. Também algumas fronteiras terrestres com Espanha avançam devagar na reabertura. Um despacho conjunto dos ministros dos Negócios Estrangeiros e da Administração Interna define "a título excecional e temporário" determinados horários para atravessar as fronteiras com Espanha nas localidades de Rio de Onor (Bragança), Tourém (Vila Real) e Barrancos (Beja), a partir do dia 1 de junho. Às quartas-feiras e aos sábados, entre as 10:00 e as 12:00, "Rio de Onor, ponte de fronteira da Rua da Costa, caminho rural, é ponto de passagem autorizado na fronteira terrestre". Em Tourém e Barrancos, o ponto de passagem decorrerá às segundas-feiras e quintas-feiras, entre as 06:00 e as 08:00 e das 17:00 às 19:00.

Aos poucos, o Algarve pode voltar a encher as ruas, areais, lojas e restaurantes. Mas se é certo que é isso que os comerciantes pedem para conseguir segurar o seu negócio, também admitem temer o que uma avalanche na região poderá significar. Rosa guarda vários receios e não os esconde. "Se isto corre mal, vamos todos para casa outra vez."

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