Não é assim tantas vezes que a expressão corrente "morreu um dos grandes" faz pleno sentido. O desaparecimento, nesta quarta-feira, de Kirk Douglas, nascido Issur Danielovitch, homem de longa vida (103 anos), ator de sangue quente e moral de ferro, deixa um irremediável sentimento de vazio. Se excluirmos Olivia de Havilland (irmã de outra atriz, Joan Fontaine), ainda viva e com a mesma idade que Douglas, ele era a última grande estrela da chamada época dourada de Hollywood - não venceu os dois Óscares que ela venceu, mas o seu carisma internacional, a marca que deixou na história do cinema e a paixão inigualável das suas interpretações são valores para a eternidade..No comunicado de confirmação da morte, o filho Michael Douglas sublinha a ideia: "Ele deixa um legado no cinema que perdurará pelas gerações vindouras." Pesam-se as palavras. E, ainda assim, não haverá ninguém como ele..Filho de "imigrantes judeus russos analfabetos", como se lê na autobiografia The Ragman's Son (publicada em 1988), Douglas cresceu em Eagle Street, o bairro mais pobre da cidade de Amsterdam, Estado de Nova Iorque, e nesse lugar, lê-se, "onde todas as famílias lutavam para sobreviver, um trapeiro estava no último degrau da escada social". Issur Danielovitch era o filho do trapeiro. Sendo o irmão do meio numa casa cheia de mulheres (seis irmãs), fez-se homenzinho tentando ajudar a ganhar o pão, e foi entre a sinagoga e a escola que descobriu o gosto de representar. Tudo começou com um poema lido no jardim-de-infância, onde se sentiu orgulhoso pelos aplausos, depois veio o teatro na escola e, já com trinta anos, apanhou o comboio e desceu em Los Angeles: Hollywood era o destino, o "sonho de milhões"..Ator de palco, estreou-se no grande ecrã em O Estranho Amor de Martha Ivers (1946), de Lewis Milestone, com uma intimidante Barbara Stanwyck por perto. Contudo, o seu primeiro momento de notabilidade acontece em O Arrependido (1947), filme noir de Jacques Tourneur protagonizado por Robert Mitchum, num icónico papel, em que o contraste dos dois faz saltar à vista o perfil controlado que Douglas foi desmontando ao longo do tempo: ao lado de um estiloso e despreocupado Mitchum, ele é a ameaça de fato e gravata engomados, cigarro na boca e ironia elegante. Quantas mais vezes o veríamos assim? Contam-se pelos dedos de uma mão..Kirk Douglas cresceu pela força da expressão do olhar, despenteou o cabelo, ofereceu o corpo às convulsões da alma e isso é logo evidente no início do seu percurso cinematográfico, tanto em O Grande Ídolo (1949), de Mark Robson, como em Duas Mulheres, Dois Destinos (1950), de Michael Curtiz, respetivamente, nos papéis de um pugilista e de um trompetista. A escalada das suas personagens impetuosas prosseguiu com O Grande Carnaval (1951), de Billy Wilder, tremenda parábola sobre o jornalismo, a abrasadora História de Um Detetive (1951), de William Wyler, Cativos do Mal (1952), de Vincente Minnelli, chegando ao ponto altíssimo de A Vida Apaixonada de Van Gogh (1956), também de Minnelli, que lhe deu o mais belo e doloroso papel da sua carreira, esse do artista holandês cuja história se lhe colou à pele e da qual demorou muito tempo a libertar-se: "Às vezes tinha de me controlar para não levar a mão à orelha, a fim de me certificar de que, realmente, ela continuava ali", escreveu na autobiografia, referindo-se à orelha cortada de Van Gogh..Douglas era mesmo assim, um ator de entrega total e compromisso. Algo que se atestou igualmente em obras que produziu, caso de Horizontes da Glória (1957), um assumido incentivo direto ao talento de um jovem realizador chamado Stanley Kubrick - de quem tinha apreciado muito Um Roubo no Hipódromo -, que lhe valeu a personagem inesquecível do coronel Dax, e o caso também do emblemático Spartacus (1960), segunda colaboração com Kubrick, já em plena era das grandes produções que tentavam fazer frente à popularidade do pequeno ecrã, e que se tornou uma obra de forte simbolismo histórico: pela primeira vez, numa mão-cheia de anos, o argumentista Dalton Trumbo, personalidade da indústria marcada na famosa Lista Negra de Hollywood, saiu da sombra com o seu nome visível na grande tela. Kirk Douglas atreveu-se a "rasgar" essa lista negra - facto que recordou quando, em 2018, apareceu na cerimónia dos Óscares, de cadeira de rodas, acompanhado no palco pela nora Catherine Zeta-Jones, perante uma assembleia de aplausos. Mais, muito mais do que aqueles que recebeu quando leu o poema no jardim-de-infância... E, no entanto, ficou a faltar-lhe pelo menos um Óscar no bolso, para além do honorário recebido em 1996..Entre cowboys, figuras míticas como Ulisses e Doc Holliday, ou outras literalmente bigger than life, Douglas viveu uma vida no grande ecrã a que a idade de 103 anos dá uma certa dimensão. O seu favorito de todos esses papéis foi o cowboy solitário do filme, raramente visto, Lonely Are the Brave (1962), de David Miller. Uma personagem angustiada com a modernidade - também ele o era - que, pela via da integridade masculina, se pode fazer corresponder ainda com outra de Céu Aberto (1952), a magnífica obra naturalista de Howard Hawks. Essa personagem, a certa altura, referindo-se à paisagem americana, comenta: "Claro que é um país grande. A única coisa maior é o céu." É para lá que segue..Dez filmes para recordar Kirk Douglas.Lust for Life/A Vida Apaixonada de Van Gogh (1956), de Vincente Minnelli.Na autobiografia The Ragman's Son, Kirk Douglas classificou a experiência deste filme como "maravilhosa e sofrida" ao mesmo tempo. Foi a sua interpretação mais complexa e profunda, nos trilhos da alma atormentada do pintor Vincent van Gogh. No mesmo livro biográfico escreveu que não seria capaz de voltar a esta personagem que quase o consumiu... Baseado no romance homónimo de Irving Stone, Lust for Life é um drama supremo sobre a vida do artista que se pode dizer protagonizado pelo ator perfeito. Esta foi a segunda vez que Douglas trabalhou com o realizador Vincente Minnelli (a primeira foi em Cativos do Mal), e a terceira em que esteve à beira de receber um Óscar. Só lhe viria a ser entregue o honorário, em 1996..Ace in the Hole/O Grande Carnaval (1951), de Billy Wilder.Até onde se chega para conseguir uma boa história? É a pergunta que atravessa O Grande Carnaval, filme de Billy Wilder com Kirk Douglas na vertigem da resposta. Aqui ele interpreta um jornalista com uma carreira moribunda, que se depara com o caso que a poderá relançar: um homem preso numa cave após um colapso, sem maneira de sair. Para isso manipulará a ação de resgate, de forma a prolongá-lo, gerando um autêntico ambiente de feira (daí o título português) à volta do local, com uma multidão instalada... Eis o retrato mais duro da decadência moral do jornalismo, que, pela delicadeza do tema, foi recebido com amargura pelos americanos. O filme é baseado numa história verdadeira, e, além de ainda dizer muito sobre os nossos dias, mostra-nos um Douglas no olho do seu furacão interior, intensíssimo..Paths of Glory/Horizontes de Glória (1957), de Stanley Kubrick.Esta primeira colaboração com Stanley Kubrick surgiu depois de Kirk Douglas ter visto Um Roubo no Hipódromo (1956). Na faceta de produtor, quis conhecer o jovem por detrás desse filme, e acabou por ficar a par do seu próximo projeto: a adaptação do romance antibelicista de Humphrey Cobb, Paths of Glory. Douglas decidiu desde logo apostar nesta história sobre a tirania de um general francês durante a Primeira Guerra Mundial, ficando com o papel do coronel que defende os seus soldados. O resultado é uma inequívoca obra-prima, com Kubrick (28 anos apenas) a alinhar uma virtuosa realização com a sabedoria performativa de Douglas. O rosto deste último é lapidar para a iconografia do filme..Champion/O Grande Ídolo (1949), de Mark Robson.Foi a primeira nomeação de Kirk Douglas para um Óscar, no seu também primeiro papel realmente físico: um pugilista com um percurso de ascensão moralmente controverso. Esta personagem pouco agradável, um assumido anti-herói - que a princípio levou os agentes de Douglas a desaconselharem o papel - foi a sua verdadeira rampa de lançamento para o estrelato, deixando registada no grande ecrã uma fremente persona, imagem de marca de muitos dos filmes vindouros. Aqui está o desafio que Douglas fez questão de aceitar na altura certa da carreira, precisamente porque até aí não tinha tido um papel que lhe enchesse as medidas e o entusiasmo. O Grande Ídolo é um dos mais célebres filmes de boxe da década de 1940, traduzido num sucesso comercial..The Bad and the Beautiful/Cativos do Mal (1952), de Vincente Minnelli.Eis mais uma personagem sem escrúpulos - definitivamente, Kirk Douglas gostava deste tipo de papéis. Jonathan Shields é um produtor cujo retrato humano nos chega pelas memórias de um realizador (Barry Sullivan), de uma atriz (Lana Turner) e de um argumentista (Dick Powell). Em flashbacks são reveladas as facetas desse homem, do charme e génio inventivo ao carácter obsessivo e ditatorial, como um apurado olhar sobre os bastidores de Hollywood. Douglas, assegurando o enorme magnetismo da figura do produtor, obteve aqui a sua segunda indicação para a estatueta dourada (depois de O Grande Ídolo). Já o maior incómodo foi de David O. Selznick, produtor cujo nome surgiu nas comparações com o protagonista, assim como Orson Welles e Val Lewton... A ficção a iluminar a realidade..Detective Story/A História de Um Detetive (1951), de William Wyler.Adaptação de uma peça de Sidney Kingsley, A História de Um Detetive é um filme com a ação concentrada num só dia e uma performance de Kirk Douglas tão veemente quanto a densidade temporal da narrativa. Tudo anda à volta do detetive de Nova Iorque por ele interpretado, que está prestes a chegar ao fim de uma investigação e descobre um segredo sobre o passado da esposa (magnífica Eleanor Parker). Ao lado de O Grande Carnaval, esta é a outra brilhante e memorável interpretação de Douglas no ano de 1951. Uma personagem definitivamente mais merecedora de simpatia do que a do filme de Billy Wilder, é certo, mas concebida na mesma linha de desassossego, com muita margem para as belas e pujantes fúrias de Douglas..Lonely Are the Brave/Fuga sem Rumo (1962), de David Miller.Kirk Douglas dizia que este era o seu favorito, de entre os filmes que fez. Um western moderno, com um cowboy em fuga na paisagem, a simbolizar a recusa do novo mundo. Desde a primeira sequência, em que Douglas atravessa a cavalo uma estrada onde estão a passar carros e camiões, até à última, em que vai dar a essa mesma estrada, com o animal novamente desorientado pelo trânsito, este é o filme da beleza de um anacronismo. Figura solitária e corajosa (como o título original indica), o ator carrega aqui uma invulgar serenidade, convertendo-se na admirável silhueta de um inadaptado à procura de uma sombra para descansar. Um apontamento também para a atriz Gena Rowlands, a musa de Cassavetes, que surge neste filme num dos seus primeiros papéis no cinema..Spartacus (1960), de Stanley Kubrick.É a segunda - e grande - empreitada de Kirk Douglas e Kubrick. O filme em que o ator e produtor decidiu colocar abertamente o nome do argumentista Dalton Trumbo nos créditos, depois de este figurar durante 10 anos na lista negra de Hollywood, vítima do macartismo. Spartacus é puro Douglas, no auge da demonstração física e carácter instintivo. E aqui temos um elenco assombroso para um filme colossal: além do protagonista, surgem Laurence Olivier, Charles Laughton, Jean Simmons, Tony Curtis e Peter Ustinov (que venceu o Óscar na categoria de ator secundário). Baseado no romance homónimo de Howard Fast, esta é a saga de um escravo romano que lidera uma revolta; um épico celebrado e um enorme sucesso de bilheteira em todo o mundo..Gunfight at the O.K. Corral/Duelo de Fogo (1957), de John Sturges.Foi o filme que apertou os laços de amizade entre Kirk Douglas e Burt Lancaster, depois de se terem cruzado 10 anos antes em Lábios Que Sangram, de Byron Haskin. Eles formam a sugestiva dupla que tornaria Duelo de Fogo num dos mais populares westerns da fase tardia do género. De resto, a história do duelo de O.K. Corral faz parte da mitologia americana e foi muitas vezes levada ao ecrã, sendo esta a versão que mais se pode orgulhosamente aproximar do valioso My Darling Clementine (1946), de John Ford. No papel do lendário jogador Doc Holliday, tuberculoso, Douglas é a justa antítese de Lancaster, o homem da lei, desenhando com ele o belíssimo retrato de um companheirismo discreto mas bem visível na ação de pistolas em punho..Young Man With a Horn/Duas Mulheres, Dois Destinos (1950), de Michael Curtiz.Esta é a história de um trompetista de jazz e suas atribulações amorosas. A grande paixão do protagonista Rick Martin é a música, que persegue desde pequeno, assistindo a concertos noturnos às escondidas. Mas quando adulto, a sinfonia do coração torna-se menos harmoniosa ao conhecer, uma depois da outra, Jo Jordan (Doris Day) e Amy North (Lauren Bacall). Duas mulheres completamente diferentes, começando por sair vencedora a sofisticação de Bacall face à candura de Day. Kirk Douglas personifica aqui o homem preso na armadilha do destino, à procura da redenção. E dir-se-á que poucos como ele nos convenceram tão bem de que tocavam realmente o instrumento musical - na verdade, foi Harry James quem tocou as músicas gravadas para o filme. A garra da performance, no entanto, é toda de Douglas.