Advogados, juízes, procuradores e funcionários judiciais têm falta de formação para lidar com vítimas de violência doméstica e dificuldades em compreender os sinais que denunciam a sua situação de fragilidade. Por isso, muitas vezes, as decisões das autoridades, incluindo as dos tribunais, acabam por não dar a importância necessária às queixas que são na maioria das situações arquivadas..Por exemplo, no caso do duplo homicídio do Seixal ocorrido no início desta semana, a mulher de Pedro Henriques, Sandra Cabrita, apresentou em 2017 queixa à PSP por violência doméstica. A polícia enviou depois ao Ministério Público o respetivo relatório, indicando tratar-se de um caso de risco elevado. No entanto, a denúncia de Sandra foi tratada como ameaça e coação, e arquivada depois de ela, segundo o MP, ter desistido da participação. Os dois homicídios elevaram para dez as mortes relacionadas com violência doméstica: nove mulheres e uma criança (encontrada esta terça-feira morta no porta bagagens do carro em que o pai fugiu depois de matar a sogra). E esta quarta-feira um homem atingiu a ex-mulher com um tiro na cabeça, estando internada em estado grave no Hospital de Viseu..Perante estas situações que causam grande alarme social três ministros (Presidência, Justiça e Administração Interna) vão reunir-se ao início da tarde desta quinta-feira com a procuradora-geral da República, Lucília Gago, e as forças de segurança para se "aperfeiçoar a resposta que é necessário dar" a este problema, como anunciou o primeiro-ministro António Costa, no debate quinzenal realizado esta quarta-feira..Também como forma de contribuir para que estas situações aconteçam cada vez menos, o Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados decidiu que 2019 é o ano em que o combate à violência doméstica será a prioridade das suas ações de formação ao mesmo tempo que defende a criação de um manual de boas práticas no auxílio às vítimas deste tipo de agressões. Em paralelo, a equipa liderada por António Jaime Martins continuará a organizar ações de formação sobre o tema para advogados, mas abertas a todos os elementos do sistema de justiça, como juízes, procuradores e funcionários dos tribunais.."Uma das missões do conselho regional é formar os advogados nas várias áreas do exercício da profissão, além disso temos um lado de intervenção na comunidade judiciária e na própria sociedade civil. Insere-se neste objetivo o termos eleito como nossa prioridade o combate à violência doméstica, seja na perspetiva da prevenção, seja na da repreensão. Queremos utilizar estas conferências do conselho para pôr os intervenientes a debater ideias", explica ao DN o líder do maior conselho regional de advogados do país, em que estão inscritos cerca de 50% dos cerca de 30 mil advogados reconhecidos pela Ordem..E é no âmbito da intervenção na sociedade que surge o projeto de elaborar um manual que possa servir de guia para todas as profissões que têm de lidar com as vítimas, e agressores, de forma a poderem ser identificados factos que mais tarde podem resultar em situações de homicídio, como aconteceu com o caso que esta semana chocou o país quando no Seixal um homem matou a sogra, a filha e depois suicidou-se e sobre o qual tinha sido apresentada pela ex-mulher uma queixa na PSP de violência doméstica, que a polícia classificou como de "risco elevado" e que acabou por ser tratada pelo Ministério Público como um crime de coação e ameaça e que foi arquivado em 2017, segundo o MP por desistência da queixosa.."O manual tem de ter em conta que há vítimas muito diferentes, as situações com crianças devem ser tratadas de uma forma, as referentes às mulheres de outra e no que diz respeito aos idosos de outra ainda. Faz sentido a existência de um conjunto de práticas harmonizadas entre os intervenientes judiciários e os outros nesta matéria para que todos saibamos o que cada um está a fazer e em que nos podemos coordenar melhor e auxiliar", adianta António Jaime Martins.."Por exemplo, quando existe um processo de regulação de responsabilidades parentais a correr no âmbito de um processo de divórcio e existem queixas-crimes por violência doméstica seja do homem contra a mulher ou da mulher contra o homem não existe qualquer comunicação entre o tribunal criminal e o de menores, o que leva muitas vezes a que não se saiba o que está a ser feito num tribunal e no outro", sublinha, dando um exemplo do que esta falta de comunicação pode resultar: "Recentemente um estudo mostrou que houve um homicídio de uma mulher porque o homem e a companheira se encontraram para prestar depoimento e foi isso que desencadeou a morte. É importante que exista uma coordenação. Todos reconhecemos que não é fácil, mas é preciso melhorar.".Na violência doméstica o "juiz tem de ter ferramentas específicas"."Todos têm dificuldades. Magistrados do Ministério Público, magistrados judiciais, psicólogos, psiquiatras, este tem de ser um trabalho multidisciplinar. Por exemplo, o Dr. António Castanho [psicólogo e membro da equipa de Análise Retrospetiva de Homicídio em Violência Doméstica] vai falar no dia 20 numa conferência no Seixal sobre como deve um advogado identificar uma vítima de violência doméstica ou um agressor quando chega ao seu escritório. Quais são os sinais?", adianta ao DN João Massano, vice-presidente do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados e responsável pela organização das ações de formações..Atualização de conhecimentos e formas de lidar com uma realidade cada vez mais presente e mediática - este ano já houve em Portugal dez vítimas mortais de violência doméstica e no ano passado foram registadas 28 - é o que se pretende com estas ações formativas, até para tentar mudar a imagem que a sociedade tem da Justiça, frisa, acrescentando: "O facto de haver poucas condenações em situações de violência doméstica tem que ver com vários fatores. Por exemplo, a desconfiança que existe por parte da vítima. Se vê poucas condenações prefere ficar resguardada, não vai denunciar. Nós temos de dar essa confiança às pessoas. Passa quer por advogados quer por magistrados saberem lidar com as situações de uma forma eficaz, mas o que sinto é que muitas vezes nas conferências os colegas dizem: 'como é que ele [juiz] não viu que a testemunha/vítima estava a falar a verdade?'".Este é um dos desafios que os advogados e os magistrados enfrentam e que os leva a procurar formação específica sobre o tema, a qual também devia ser aprofundada nos respetivos cursos. Nesta procura de atualização, o conselho regional tem efetuado diversas ações e no ano passado conseguiram ter mais de 12 mil pessoas a assistir às várias conferências - "sensivelmente o dobro do melhor ano dos últimos dez", frisa João Massano..Os assuntos tratados têm variado - a conferência que reuniu mais pessoas foi sobre o Regulamento Geral de Proteção de Dados e contou com 900 inscrições -, mas é a violência doméstica o foco principal para este ano: "Já tivemos uma [ação] em que participaram cerca de 250 pessoas, outras sempre com perto de 200 pessoas.".Uma procura de informação e de experiências que o vice-presidente do CRL da Ordem dos Advogados realça e que mostra a ausência de conhecimentos sobre como lidar com as vítimas sentida por quem trabalha na Justiça. "É completamente diferente estar a inquiri-lo a si numa situação normal da execução de um contrato de trabalho, por exemplo, ou estar a inquiri-lo na qualidade de vítima de violência doméstica ou de agressor. O juiz tem de ter ferramentas específicas que lhe permitam fazer a interpretação do depoimento da forma mais adequada e que não é igual em todas as situações", sublinha.."Por isso a nossa ideia, lançada na conferência que organizámos a 24 de janeiro, de se fazer um manual de procedimentos que fosse acessível a todos os operadores e que têm de analisar situações de violência doméstica. Um guia sobre o que têm de fazer advogados, magistrados, psicólogos. A secretária de Estado da Cidadania e Igualdade [Rosa Monteiro] mostrou-se disponível", garantiu, frisando que vai ser marcada uma reunião para falar sobre o assunto..Violência no namoro.Um outro lado da violência doméstica é o que se passa durante o namoro. Um fenómeno cada vez mais presente na sociedade, ampliado pelas redes sociais e que é também uma das questões a analisar nas conferências organizadas pelo conselho. "No dia 27 vamos ter uma conferência em Rio Maior e o Observatório para a Violência no Namoro vai apresentar os novos dados sobre este tema. Há muitas crenças e mitos e eu próprio tinha uma ideia de que era uma certa geração, a dos meus pais, por exemplo [mais atingidas], mas infelizmente já não é assim. Há muita gente na adolescência e de pessoas que estão na universidade que acham que a violência no namoro é uma forma de namoro. E consideram desculpável por isso: ele faz isso porque gosta de mim", diz João Massano..Outro tema que já foi motivo de uma conferência é a saúde mental e a legislação existente é muito contestada, nomeadamente pelo psiquiatra Fernando Vieira, que até tem propostas para a sua alteração. "A saúde mental é uma questão social, mas as pessoas parecem que querem esquecer. Se se faz o desmantelamento dos grandes hospitais psiquiátricos que havia em Lisboa perde-se a noção de que isto é um problema de todos e parece que é de um nicho. Não é", conclui.