A memória da Guerra Colonial portuguesa (1961 a 1974) tem sido em grande medida "privada", "difícil de constituir" e as "comemorações oficiais olhadas com desconfiança". Esta é a realidade que suporta uma das mais recentes investigações sobre a Guerra Colonial, publicada sob o título Sinais de Vida - Cartas da Guerra 1961-1974, e que tem como base a análise da correspondência que os militares enviavam ou recebiam durante o conflito..A autora, Joana Pontes, consultou muita da correspondência reunida no Arquivo Histórico Militar, que nos últimos anos recebeu vários espólios através do Projeto Recolha. Segundo o ex-diretor do Arquivo, esta correspondência de guerra reporta ao período entre 1961 e 1974, altura em que "todos os portugueses, homens e mulheres, crianças, jovens, adultos e velhos, viram as suas vidas condicionadas durante 15 anos pela Guerra Colonial", designadamente os nascidos entre 1940 e 1954, e estiveram sujeitos à mobilização militar para cumprir serviço militar em Angola, Moçambique e Guiné. Na introdução a Sinais de Vida, Aniceto Afonso considera que "todos os portugueses acabaram por ser envolvidos pelo ambiente social resultante da guerra"..O facto de esse esforço de guerra ultramarino ser até à Revolução do 25 de Abril uma causa nacional para o governo e de ter sido um desígnio patriótico eliminado de um dia para o outro fez que, segundo a autora, "passasse a ser encarado como ilegítimo" e a narrativa histórica que seguiu excluir ex-combatentes, retornados e famílias que tiveram filhos e maridos no cenário de África, fazendo que os almoços de confraternização entre antigos combatentes sejam os "principais momentos de rememoração deste passado comum"..A morte sempre à vista.Esse envolvimento nacional é bem visível nas cartas que recheiam as 400 páginas do livro e verifica-se a todos os níveis - e nos dois sentidos -, como se pode ver na troca de correspondência entre uma madrinha de guerra e um militar (p. 113) em que ela descreve os horários de trabalho numa fábrica, cartas em que a noiva reclama por não ter um coração desenhado na missiva (p. 54) - o noivo responde que não queria ser gozado pelos outros -, ou o militar que dá notícia que vai para frente de combate (p. 228) - "a sorte não me bafejou pois vou para a zona mais apoquentada que é Nambuangongo" -, e aquele que não vê guerra a acontecer (p. 278) e escreve : "Chego a perguntar a mim próprio se estou no Ultramar ou numa festa ou então numa companhia de malucos porque todos riem brincam pulam"..A ameaça da morte é também um dos temas recorrentes do livro (p. 324): "Há dias no Quiterajo uma mina reforçada limpou 11 soldados !!! em segundos"; ou "A minha companhia continua com azar e ontem lá se foi ao ar mais uma viatura. A atividade dos turras tem aumentado muito"; e dramas: "Há 2 dias morreram 2 capitães de uma assentada. Um aliás bem meu conhecido, e tinha cá a esposa. A desgraçada da senhora quando soube da notícia tentou suicidar-se (estava grávida ainda por cima).".As críticas aos altos superiores hierárquicos ou responsáveis pela estratégia colonial surgem muitas vezes referidas na correspondência, como Kaúlza de Arriaga por exemplo, e são feitas muitas vezes com irritação e palavrões pouco abonadores. A mesma situação de linguagem tão crítica como popular verifica-se repetidas vezes nas queixas sobre a eternização do conflito (p. 352): "Não há meio de eu acabar esta merda.".Não falta nesta correspondência palavras de esperança também, como é o caso dos militares que estão para regressar (p. 222): "Começo por te dizer que é esta a última carta que te escrevo de Angola: pois em breve me encontrarei em Lisboa se Deus quizer." Ou na página seguinte, um outro militar a informar: "Voute dar um mumento de alegria pois tenho te a dizer que è o nosso embarque no dia 30.".Cada vez mais refratários e desertores.Para a autora, a correspondência de guerra passa por vários níveis de consciencialização política. Se nos primeiros anos de conflito após as sublevações e massacres indiscriminados em Angola de centenas de pessoas, habitantes e colonos de todas as raças e idades, os primeiros militares a regressarem da guerra ainda estavam imbuídos da visão de defesa de um império. Na primeira fase de correspondência, refere, existe um retrato de um "país uno, pluricontinental e multirracial, do Minho a Timor", mas também uma descoberta de "um mundo diferente do que até aí conheciam", e as histórias que esses primeiros contingentes foram descrevendo irão "influenciar de forma decisiva o futuro do conflito"..Quem estava para ser mobilizado, explica, irá "encarar a sua participação na guerra" através das "histórias que [os primeiros a combater em Angola] contaram por escrito e, mais tarde, de viva voz", tendo essa correspondência antecipado a experiência que iriam viver nos sucessivos embarques para as províncias ultramarinas. Prova dessa perceção, demonstra, é a diminuição das candidaturas à Academia Militar: "Diminuem a partir do ano letivo de 1962-1963 e é também o primeiro ano em que ficam vagas por preencher." O número mais alto desta desistência será nove anos depois, sendo que em 1970 os jovens que nem se apresentaram à inspeção foi de 20,9%, ou seja 18 500..Quanto ao impacto dessas narrativas de guerra, a autora é da opinião de que "terão decerto pesado na decisão de emigrar, provavelmente de forma clandestina, de um número não quantificável de faltosos [à inspeção]", bem como de uma grande importância junto dos refratários e desertores. Explica que a "ideia persistente de que a guerra estava para durar, ligada à ausência de perspetivas futuras, terá contribuído para um clima de cansaço que é central na correspondência"..Uma das conclusões que também é retirada da correspondência é a "reduzida familiaridade e adesão à missão a desempenhar, o que poderá estar associado à ausência de compreensão da questão colonial". Outra, a da cada vez maior contestação à guerra no continente de que os militares mobilizados se apercebem ao ouvir emissões radiofónicas contra o regime português - Rádio Moscovo, a "rádio" Maria Turra (Brazzaville) em Angola e a Rádio Conakry na Guiné, além da imprensa da oposição e de canções como as de José Afonso e Adriano Correia de Oliveira..Entre outras conclusões que a autora retira desta correspondência é a da grande vontade de regressar sem ser ferido, evitando expor-se aos riscos, ou de que a "crença na virtude do sacrifício exigido a todos para defender a pátria se vai esbatendo ao longo do tempo da guerra".