"Vai para o teu país, pá! Lá é que estás bem"
Não sei bem há quantas décadas andamos a aprender, ensinar e perpetuar narrativas mais ou menos enganadoras sobre quem somos e qual o nosso papel na história. A colonização amiguinha e inócua, os brandos costumes, o país inclusivo e quase nada racista e, mais recentemente, a ilha de razoabilidade e moderação política numa Europa rasgada por intolerância, xenofobia, nacionalismos e populismos vários.
Sobre este último ponto ou esta última narrativa que, em bom rigor, o nosso sistema político continua a confirmar, aconselho a leitura atenta dos dados deste quadro, com resultados de um inquérito do PEW Research Center.
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Estes dados estão publicados num estudo sobre "Nacionalismo, imigração e minorias". Foi perguntado a cidadãos de 15 países europeus quais os fatores decisivos para a definição ou a atribuição da identidade nacional. Portugal destaca-se da média em três pontos bastante reveladores - e como é útil e saudável quando a estatística e os estudos de opinião nos revelam algo que não queremos admitir ou que temos, simplesmente, vergonha de assumir.
Em Portugal, 80% dos inquiridos afirmam que é decisivo ter ascendência familiar no país para que alguém possa identificar-se como português (a média do inquérito é de 53%); ter nascido no país é um fator decisivo para 81% dos portugueses questionados (a média dos 15 países é de 51%) e, talvez mais surpreendente, para 62% dos inquiridos em Portugal, ser cristão é essencial para definir a identidade nacional (a média aqui é de apenas 34%). Já agora, se não reparou, convém dizer que o estudo apanha países com enorme pressão de vagas de imigrantes e refugiados, como Itália, França ou Espanha, e esses países não chegam perto dos valores registados em Portugal.
Se não ficou seriamente preocupado com a leitura do quadro, pense outra vez, e fique. O que estes números nos dizem é que há entre nós, na nossa comunidade - sim, essa que conhecemos tão, mas tão bem que nunca sonhámos sequer com números destes -, a matéria-prima necessária e suficiente para que um qualquer populista comece, um destes dias, a capitalizar medos e frustrações. Acredite, isto é uma seara seca em pleno verão, basta uma fagulha.
Lembra-se do caso "Preta de merda, queres apanhar um autocarro, apanhas no teu país" contado aqui no DN por Fernanda Câncio? Quantas vezes viu, ouviu e leu o nome dela, da agredida Nicol Quinayas, seguido de "colombiana" ou "luso-colombiana"? A jovem tem 21 anos, nasceu na Colômbia é certo, mas vive em Portugal desde os 5. Fala português perfeito, com um igualmente perfeito sotaque do Porto. Depois, quantos comentários leu, nas redes, a desculpar a agressão com um "ela também deve ter feito das boas..." ou "passou à frente na fila, estava a pedi-las". Consciente ou inconscientemente, todos esses comentários fixavam-se na agressão, ignorando o discurso racista do agressor. Mesmo entre quem a defendia, quase todos lembravam a desproporção das agressões, o tamanho do agressor e a fragilidade da vítima, e... ignoravam os insultos racistas.
Não nos dá jeito encarar isto de frente, vamos preferindo as tais narrativas confortáveis que nos têm moldado enquanto povo e que raramente questionamos. Uma campanha "Todos diferentes, todos iguais", uns quantos discursos a elogiar a capacidade de inclusão e o caso está arrumado. Dormimos todos mais descansados. Fica o alerta para políticos no ativo e analistas. Um PCP ainda ativo e estruturas sindicais sempre agitadas e alimentadas pelos dois lados da arena podem ser uma salvaguarda, vão enquadrando o protesto e o desalento, são uma útil válvula de escape e evitam fenómenos inorgânicos, mas as respostas que demos, que a nossa comunidade deu a este inquérito, veem para lá desse frágil escudo. É estarmos atentos.