O que pode ter levado um homem entre os 35 e os 40 anos, desempregado, a matar a sogra, a filha e a suicidar-se? O que leva um agressor a passar do amor ao ódio de forma tão brutal? Carlos Poiares, psicólogo forense e professor na Universidade Lusófona, e Ana Vasconcelos, pedopsiquiatra, são unânimes ao afirmar que só "uma mente muito perturbada" ou uma "dor mental medonha" podem levar um ser humano a transformar-se num assassínio..Pedro Henriques estava separado da mulher. No dia 4 de fevereiro, teriam os dois de se apresentar no Tribunal de Menores e de Família do Seixal para ser avaliado e decidido o processo de regulação do poder paternal, o que não aconteceu. Pedro Henriques terá ido a casa da sogra nessa manhã levar a filha, Lara, de 2 anos, à Cruz de Pau, com quem tinha passado o fim de semana, para depois se dirigir à justiça, mas tudo mudou. Há a suspeita de que terá matado a sogra à facada e que terá desaparecido com a filha, que terá matado por asfixia. Nessa manhã, de terça-feira, Pedro Henriques ligou para o INEM a dar indicação de que o corpo da criança estava na bagageira do carro que deixou junto a uma escola, na Cruz de Pau, no Seixal. Pedro terá ainda partido de comboio até Pombal e depois de táxi para Castanheira de Pera, em Leiria, para se matar com a caçadeira do pai. O seu corpo foi encontrado nesta terça-feira, junto à casa dos pais, com quem estava também desavindo. A mãe iria testemunhar contra ele no processo de alienação parental. A confirmar-se que é o autor dos três atos, os especialistas dizem não haver dúvida de que quis deixar uma mensagem. Aliás, e segundo soube o DN junto de fonte policial, Pedro terá deixado uma frase escrita: "A culpa disto tudo é da família.".Para Carlos Poiares, ele "usou a morte da sogra e da filha para agredir a ex-mulher, e de uma forma brutal. Tu não me queres, portanto agora vais ficar sem a tua mãe e sem a tua filha. São homicídios direcionados para agredir o outro. Ele não hesitou em desfazer-se do que estava no seu caminho e que lhe poderia causar embaraços para agredir a ex-mulher. A morte da filha não tem explicação, só pode ter sido por um sentimento de vingança. Quando ouvi as notícias percebi que isto iria acontecer, não é o primeiro caso. Já aconteceu outras vezes em Portugal e no mundo." E acrescenta: "Uma pessoa que faz isto está desesperada e sem tolerância à frustração. Ou seja, sente-se frustrada por não conseguir os seus intentos - ficar com a mulher e com a filha - e a única solução que lhe aparece à frente é a morte.".O psicólogo sublinha ainda a carga simbólica que tem o facto de Pedro Henriques ter ido morrer junto à casa dos pais. "É uma agressão aos próprios pais. Eles nunca mais se vão esquecer. O local está marcado para o resto da vida. Ele poderia ter ido morrer longe dos pais, em Lisboa, no Seixal, mas não. Ele quis dizer a todos: 'Vou continuar a agredir-vos depois de morto.' Isto é brutal." O professor da Universidade Lusófona defende que este é um dos casos em que a justiça deveria decidir pela realização de uma autópsia psicológica - ou seja, pela realização de exames ao cérebro que permitiriam perceber se tinha ou não alguma alteração na zona pré-frontal que interferiria com a sua capacidade de decisão e de ação - para se observar em que "estado mental se encontrava este homem.".O especialista explicou ao DN que este é um método que ainda é pouco utilizado em Portugal, mas que é absolutamente necessário nalguns casos, "para que os intervenientes na justiça, professores, universidades possam aprender mais sobre este tipo de criminalidade. Não estamos a lidar com o mesmo tipo de criminalidade de rua, dos carteiristas, é muito diferente, muito mais violenta. Por isso, temos de saber o que aconteceu para aprender com os casos reais e não com os fenómenos que nos chegam dos Estados Unidos da América, em que os crimes são diferentes e as pessoas também.".Um pai que atua desta maneira não tem afetos, empatia com a filha? Ana Vasconcelos responde prontamente: "Uma pessoa com pensamento paranoico, que é o que parece neste caso, vai buscar as pessoas que mais ama. Vai buscar por norma os filhos, as mulheres, os pais ou aqueles que mais detesta. Há muitas formas de a pessoa falar consigo própria para justificar o que vai fazer. Ou os mata para os livrar de uma situação que considera dolorosa - por exemplo, há mães que dizem que mataram os filhos para eles não passarem o que elas estavam a passar - ou, então, por vingança e pelo pensamento doentio: 'Detesto-te, vou matar as pessoas de quem mais gostas.'".A pedopsiquiatra defende também que uma pessoa que atua desta maneira tem uma mente muito perturbada. "O pensamento paranoico é o que faz uma pessoa pensar em matar o seu semelhante, por motivos de tristeza ou de confusão mental medonha, tanto a nível da realidade objetiva como a nível dos afetos. Não podemos esquecer que os seres humanos são gregários e não predadores, só matam quando estão a viver uma dor mental completamente impensável.".Ainda há justiça permissiva e agressores sentem-se impunes.Sandra Cabrita, ex-mulher de Pedro Henriques, apresentou queixa na PSP por ameaças e coação, em 2017. Fonte policial garantiu ao DN que, na altura, enviou ao Ministério Público (MP) a informação de que se estava perante um caso de "violência doméstica", especificamente de "violência psicológica e social" e de "risco elevado". O DN questionou o MP sobre esta informação, tendo recebido como resposta que foi "encontrado um inquérito de 2017", mas que foi arquivado por desistência da queixosa. No entanto, especialistas explicaram ao DN que se o processo tivesse sido classificado logo como de violência doméstica estaríamos perante um crime público e, mesmo havendo desistência da queixosa, as investigações ao agressor poderiam continuar, o que não aconteceu..A situação para Carlos Poiares é mais uma forma de como a justiça, por vezes, não atua preventivamente. É por não se atuar preventivamente que "ainda há pais que matam um filho". Isto, apesar de tudo o que se tem feito em relação à proteção das vítimas e de combate à violência doméstica. "Ainda há casos em que a justiça atua tardiamente e não preventivamente. De alguma forma temos tido uma justiça permissiva por força da lei e por força das interpretações judiciais. Há casos em que nada acontece aos agressores, o que faz que eles saibam que nada lhes acontecerá, exceto se cometerem homicídio. Ou seja, ainda temos tribunais e interpretações de lei que desvalorizam aquilo que podem ser considerados como sinais, embora pequenos, de violência doméstica. É o caso da coação, do insulto, do stalking [perseguição], do assédio, etc. Estes nem sempre são levados a sério. Os agressores continuam a sentir-se impunes.".Na opinião de Carlos Poiares, os intervenientes na justiça podem ter considerado que os sinais denunciados por Sandra Cabrita não eram suficientemente fortes, que seria um daqueles casos em que cão que ladra não morde, só que, às vezes, o cão ladra e morde ao mesmo tempo. E é nestas situações que os tribunais ainda falham. "Há juízes que têm um cuidado extremo, pedem opiniões de psicólogos e de outros peritos, outros nem tanto. É bom que o Ministério da Justiça se questione sobre esta situação, porque nos casos de violência doméstica, tanto os agressores como as vítimas precisam de apoio psicológico e psiquiátrico. É enorme o sofrimento de uns e de outros. Não podemos continuar a assistir à violência doméstica da forma como continuamos", afirma..É verdade que nos últimos anos houve uma grande evolução a nível legislativo. Ana Vasconcelos reforça que tem assistido a muitas mudanças nesta área, que tem assistido a muitos procuradores e juízes a fazerem de tudo para solucionar situações, mas há que pensar na realidade atual. "A violência doméstica tem aumentado, portanto, tal exige reformulações e práticas novas. Tem de haver acertos." Por vezes, argumenta, "a lentidão da justiça não está de acordo com a urgência que a infelicidade do mundo exige". A pedopsiquiatra insiste: "Vivemos num mundo incendiável a qualquer momento, as pessoas não estão a aprender umas com as outras, não pensam no bem que cada um pode estar a fazer, não se dão tempo a si próprias para refletirem, para ponderarem. Fomenta-se muito a violência e as pessoas reagem atacando.".De acordo com dados divulgados ontem pelo jornal Público, nove mulheres foram mortas desde o início deste ano por violência doméstica. A filha de Pedro Henriques e de Sandra Cabrita "é a décima vítima mortal, uma vítima direta e imediata", diz o psicólogo Carlos Poaires. "Há que fazer alguma coisa. Há que olhar para esta realidade. Como neste ano há eleições, talvez os nossos políticos decidam atuar de outra forma, decidam mudar o que há a mudar.".No caso do Seixal, há outras vítimas, as que ficaram cá. Sandra Cabrita "será uma vítima para o resto da vida. Não só sofreu violência sobre ela como vai ter de lidar para o resto da vida com a violência exercida nas pessoas que amava. Isto é de uma violência brutal". E deve levar a sociedade e os intervenientes nos processos de violência doméstica a estudar este caso, a refletir, a reagir...