Não houve um episódio concreto, os sinais foram-se acumulando. Às vezes lá aparecia um manuscrito, ou alguma partitura perdida de uma compositora portuguesa, num arquivo ou em algum espólio privado, mas eram exceções. Para a pianista, professora e investigadora da Universidade de Aveiro, Helena Marinho, habituada a estudar e a tocar em concerto um repertório criado quase inteiramente no masculino, a pergunta, a certa altura, impôs-se com a força de uma evidência: onde estavam as compositoras portuguesas na música erudita do século XX?.Conheciam-se alguns nomes, claro. Constança Capdeville, Clotilde Rosa, Maria de Lurdes Martins, Elvira de Freitas e algumas mais - oito ao todo, as que estão referenciadas na Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX, coordenada pela musicóloga Salwa el-Shawan Castelo-Branco, e publicada em 2010, que é a grande obra de referência sobre a música portuguesa do último século. Mas não haveria mais compositoras portuguesas no século XX?.Tudo parecia indicar que sim, e Helena Marinho decidiu ir em busca delas. Hoje, quase três anos depois de ter ganho um financiamento de pouco mais de 187,5 mil euros da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) e de fundos comunitários para o projeto que tem o nome da musa da música na mitologia grega, Euterpe Revelada: as Mulheres na Criação e na Interpretação Musical Portuguesas nos Séculos XX e XXI, as suas suspeitas estão plenamente confirmadas. Há muito mais compositoras na história da música erudita portuguesa do que se poderia supor - de oito nomes antes referenciados passou-se para cerca de 40 nesta altura. E a equipa do projeto Euterpe está a resgatar as suas histórias, as suas memórias e as suas obras ao esquecimento... e ao silêncio.."Com este projeto, mais do que quadruplicámos o número de compositoras referenciadas em Portugal desde a primeira década do século XX", conta Helena Marinho. Mas esse número, acredita, não vai ficar por aqui. "Todos os meses estão a ser encontradas novas partituras e manuscritos, todos os meses surgem nomes novos.".Hedwiges Bensabat, por exemplo, é um deles. Até há poucas semanas a sua existência era completamente desconhecida. "Foi João Pedro Mendes dos Santos, que é professor do Conservatório de Lisboa e tem um dos maiores acervos de partituras de música portuguesa desde finais do século XIX, e que tem dado uma ajuda preciosa ao projeto, que encontrou uma partitura dela e ma enviou", conta Helena Marinho..Não se trata sequer de um manuscrito. A obra, um conjunto de valsas para piano, foi editada seguramente na primeira década do século XX, pela casa Neuparth & Carneiro: na capa, a compositora escreveu à mão, com data de 1907, uma dedicatória a Alfredo Keil [pintor e compositor, conhecido sobretudo por ser o autor da música do hino nacional], a quem certamente ofereceu a partitura..A descoberta é tão recente, que a equipa ainda nem teve tempo de analisar as composições - "não as toquei, sequer, ao piano", confessa Helena Marinho. E sobre a história desta mulher nada se sabe igualmente, é preciso ir agora à procura de informação..Mas Hedwiges não é caso único. Há outros, como os de Júlia Oceana Pereira ou Laura Wake Marques, também do início do século XX, cujos nomes emergiram no decurso destes três anos de trabalho, bem como muitas outras.."Encontrei pela primeira vez o nome de Júlia Oceana Pereira numa antiga revista de modas e bordados, num artigo em que se dizia que ela tinha composto uma ópera", lembra Helena Pereira..Ora, uma ópera é uma obra de fôlego, e para uma revista feminina falar de uma compositora ela teria de ser conhecida no seu tempo. Helena Pereira pôs-se em campo e acabou por encontrar o rasto a Júlia Oceana nos arquivos da Biblioteca Nacional. "Encontrei obras impressas da sua autoria, música de câmara para piano e violino e, num primeiro olhar, pareceu-me interessante", conta a pianista e investigadora..Da ópera mencionada na tal revista é que nem sinal. "Não a encontrei, e duvido de que isso venha a acontecer", admite a investigadora. Afinal, estas são histórias que estavam por contar, nomes que andavam arredados da memória coletiva. É possível que muitas das obras destas compositoras possam estar simplesmente perdidas. Mas se há coisa que fica clara após estes quase três anos de trabalho é que há de haver nos arquivos do país um manancial de materiais que só estão à espera de ser descobertos, analisados, publicados e, claro, tocados. Porque a música que não é tocada é como se não existisse..Publicar partituras e fazer concertos.A ideia do projeto, que termina no final deste ano, era fazer um inventário o mais completo possível das criadoras portuguesas no universo da música erudita que ficaram de fora da história oficial, estudar as suas obras e publicá-las, bem como fazer concertos e gravar a sua música. Em suma, devolvê-las ao lugar que de facto têm na história da música portuguesa..Tudo isso já está a ser feito, mas primeiro foi preciso mergulhar nos arquivos. Entre eles, a Biblioteca Nacional, a Coleção Ivo Cruz, que está na Universidade Católica, no Porto, o Museu da Música, no Alto dos Moinhos, em Lisboa, o Museu da Música Portuguesa, no Monte Estoril, o espólio do maestro e compositor Frederico de Freitas, e da filha, também ela compositora, Elvira de Freitas, que estão na Biblioteca da Universidade de Aveiro, e arquivos privados, como o de João Pedro Mendes dos Santos, o da família Moreira Sá e Costa ou o da Fundação António Quadros..O trabalho deu frutos, e a partir do momento em que documentos, referências e manuscritos começaram a emergir, foi como uma meada a desenredar-se. Já ficou claro que "isto é só o início", como diz Mónica Chambel, bolseira de investigação do projeto que está a refazer o puzzle da obra de Constança Capdeville (1937-1992), com muito trabalho ainda pela frente - recentemente descobriu 60 gravações digitais que andavam perdidas das suas obras e tem agora de as estudar, para as encaixar nas respetivas partituras e diagramas..De origem catalã, Constança Capdeville criou inúmeras peças de teatro musicado, mas as fitas magnéticas com a música gravada, destinada aos espetáculos e performances, tinham desaparecido. No decurso da sua investigação, Mónica Chambel acabou por encontrar 60 cópias digitalizadas dessa música, que estavam na posse de uma amiga de infância da compositora. Um tesouro, que vai dar agora muito trabalho..No âmbito do projeto já foram, entretanto, publicados ciclos de canções para soprano e piano de Elvira de Freitas e de Berta Alves de Sousa, duas compositoras que já estavam referenciadas, mas que agora ressurgem na sua real dimensão, depois de terem sido praticamente ignoradas em vida..Elvira de Freitas (1828-2015) filha do maestro e compositor Frederico de Freitas (1902-1980), era sobretudo conhecida por ter escrito música para fados - foram criação sua alguns dos sucessos da fadista Ada de Castro, dos anos de 1970 -, mas o estudo do seu espólio, que se encontra hoje na Biblioteca da Universidade de Aveiro, está revelar uma obra mais rica e mais vasta..Berta Alves de Sousa (1906-1997) é outro caso paradigmático. Pianista, compositora e maestrina, foi uma das primeiras mulheres portuguesas a dirigir uma orquestra sinfónica no país.."Conheci-a no Conservatório do Porto, muito velhinha, já tinha desistido de compor há muito", lamenta Helena Marinho. Uma perda, porque a sua música "é muito interessante, e não teve a exposição que merecia", garante a investigadora..O Euterpe vem agora fazer-lhe justiça, bem como a todas as outras que, no seu tempo, não foram suficientemente reconhecidas. Nessa lista há nomes como os de Francine Benoit, Elisabeth Lindley Cintra, Condessa de Proença-a-Velha, Isabel Mallaguerra, Maria José Trigueiros ou Honorina de Morais Graça, entre tantos outros..Nesta reta final, o projeto tem em preparação cerca de 60 partituras e dois CD com música de diferentes autoras, que estão em fase final de edição, e está a montar também uma base de dados digital com partituras e documentação vária. "A partir do momento em que as partituras estiverem on line, as pessoas podem descarregá-las, tocá-las e cantá-las. A ideia é essa", adianta a coordenadora do projeto..Na Universidade de Aveiro, os alunos de música já incluem, aliás, estas obras nos seus repertórios, como fazem a soprano Beatriz Maia e o pianista Gustavo Afonso, ambos no primeiro ano de mestrado em música.."É muito bom poder sair do repertório habitual e cantar em português, que é a minha língua-mãe. E para o público também é bom porque permite uma melhor compreensão da peça, que além do mais é muito bonita", explica Beatriz Maia, que acabou de cantar, num dos estúdios do departamento de música da universidade, uma pequena canção da autoria de Berta Alves de Sousa, para a reportagem do DN..Gustavo Afonso, que a acompanhou ao piano, concorda, e lamenta que a música portuguesa não seja mais vezes interpretada. "É uma pena, porque temos compositores e compositoras, como neste o caso, a escrever ao nível dos outros, lá fora", garante..Trazer à luz do dia esta parte da história da música portuguesa, que estava na sombra "é completar essa história", e dar também mais visibilidade às mulheres na música, e na composição. "São sementes para o futuro", conclui Helena Marinho..Artigo publicado originalmente na edição de 6 de abril.