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05 SET 2020
05 setembro 2020 às 11h43

Jéssica Silva. A menina das fintas que venceu a Champions

Internacional portuguesa joga numa das melhores equipas do mundo, o Lyon. Começou a dar pontapés em laranjas, nêsperas e jornais enrolados em fita-cola. Tem 25 anos, começou no Ferreirense e jogou ainda no Albergaria, no Linkoping (Suécia), no Sp. Braga e no Levante (Espanha).

Jéssica Silva é "uma pessoa do mundo", uma jogadora "fora da caixa [risos]". "Alguém que sonha ser mãe. Alguém que adora pegar no carro e fazer 300 km até ao Sul do França só para ir à praia. Alguém que gosta de estar na varanda, pegar num livro e beber um copo de vinho e comer um pedaço de queijo. Como eu adoro queijo... e tocar guitarra. Gosto muito de música e vejo muitos concertos, principalmente de artistas portugueses. Tento ocupar-me de conhecimento e arte, acho que é uma boa forma de me abstrair do futebol. O futebol é muito da minha vida, mas não é tudo!" Este é o resumo autobiográfico da primeira portuguesa a vencer a Liga dos Campeões feminina.

Começou a jogar tarde, aos 15 anos, mas o caminho levou-a até uma carreira de jogadora profissional. Hoje é um dos principais nomes da seleção nacional e joga no Lyon (França), uma das melhores equipas do mundo e que no dia 30 de agosto venceu a Champions feminina. Como está a recuperar de uma lesão grave, viu o jogo na bancada. Mas o título também é dela. "Estou muito feliz por termos ganho a Champions, mesmo que eu não tenha jogado a final. A conquista também é minha, também contribuí para chegar à final", diz. Jéssica fez três jogos na liga milionária, antes de se lesionar, e até marcou na goleada ao Fortuna Hjörring.

As laranjas e as nêsperas do quintal da avó, em Vila Nova de Milfontes, onde nasceu há 25 anos (1 de dezembro de 1994), foram as primeiras vítimas: "Nem sempre tive possibilidades de ter uma bola, mas lá arranjava uma forma de jogar. Laranjas, nêsperas, folhas de jornal enroladas com fita-cola, e era bem fixe." Foi assim a dar pontapés na fruta que descobriu o amor pelo futebol. Acha que o herdou do pai, Valter Silva, que foi jogador do Belenenses e morreu num acidente de viação quando ela tinha 2 anos.

O campo de terra batida perto de casa seduzia-a diariamente. "Eu fugia e ia para lá jogar. Voltava sujinha para casa e a minha mãe percebia logo onde eu tinha estado", contou a jogadora ao DN, lembrando que o irmão Evandro era o seu melhor aliado nas brincadeiras. "Fazíamos umas marcas no alcatrão da rua em frente a casa e metíamos umas pedras a fazer de balizas. Jogávamos um contra o outro ou fazíamos equipas com outros meninos. Uns diziam 'ela joga bué, joga bué', e outros fechavam o rosto quando eu fazia um golo, como que a dizer, "ah, não foi nada de especial"." Mas para ela jogar não era suficientemente desafiante: "Um dia resolvi fazer passar a bola por cima dos carros que passavam na rua e fazê-la chegar ao outro lado. Falhei e acertei num carro; era a minha professora Maria João. Ela ficou muito chateada e deu-me um raspanete, disse que eu não podia fazer aquilo."

Do atletismo ao futebol

Com 7 anos, Jéssica, que tem uma irmã gémea e mais quatro irmãos, foi viver para Águeda. Na escola, uma professora de Educação Física convenceu-a a ir para o atletismo. Ela, que "só via equipas de rapazes e nem sabia que havia equipas de futebol feminino", acabou por aceitar. Mas um dia uma colega deu-lhe um pontapé no rabo como quem chama a atenção de um distraído e perguntou-lhe se não queria experimentar ir a um treino de futebol numa equipa da zona, o União Ferreirense, em Anadia. Correu "superbem", a treinadora ficou "encantada". E ela "fascinada" por aquele "enorme peladão". Mais do que isso, ficou "extasiada com a liberdade, que a bola" lhe dava. Um sentimento que ainda hoje lhe custa traduzir em palavras: "Resumindo: Jogar futebol é a melhor coisa do mundo."

A mãe deu-lhe então autorização, e Jéssica teve de dizer ao treinador de atletismo que não ia mais. Perdeu-se uma saltadora, ganhou-se uma jogadora... que chorava quando os adversários lhe chamavam nomes. Depois ainda foi "obrigada" a ficar um ano sem jogar. "O pai dos meus irmãos não gostava muito da ideia de eu jogar. Uma vez acompanhou-me ao treino e deve ter visto algo de que não gostou - acho que viu duas raparigas a beijarem-se à porta do balneário, não sei bem -, e chegou a casa a dizer que eu não voltava. A verdade é que voltei, mas só um ano depois. Agora sei que me apoia e tem orgulho em mim", contou.

A carreira seguiu depois assente em passos seguros, embora duas lesões graves tenham ameaçado retirar-lhe a alegria de jogar. Seguiu-se o Albergaria, o clube do coração onde cresceu como atleta e como pessoa, e a chamada às seleções. Todo um mundo novo! "Sentia que tinha alguma habilidade" e de repente estava entre as melhores jogadoras do país. Nunca faltar aos treinos, fizesse chuva ou fizesse sol, afinal compensava: "Eu olhava para a Carla Couto e a Ana Borges e ficava maravilhada, dizia que queria ser como elas."

Já não era uma miúda e foi percebendo que podia ser jogadora profissional, só que para isso era preciso emigrar. Tinha 19 anos, mas em Portugal o futebol feminino ainda era amador. "Até ir para a Suécia [Linkoping] nunca ganhei um tostão para jogar futebol em Portugal. Fui ganhar 900 euros", revelou. A experiência não correu bem. Jogou pouco e não conseguiu adaptar-se. Custou-lhe "pra caraças", mas ganhou um "sentido de pátria muito grande" e também uma independência que ainda hoje valoriza.

Tinha acabado o 12.º ano e ia entrar para a universidade, no curso de Ciências do Desporto, mas teve de desistir da ideia para perseguir o sonho de ser profissional - agora pensa retomar os estudos e tirar Ciências da Comunicação ou Marketing. O pior foi ficar longe dos irmãos. Ela, "a irmã fixe, que tem de ser mais chata, porque é preciso", queria estar presente, estava habituada a ajudar a mãe na educação deles, ia levá-los à escola, às compras, e ajudava nas lides de casa. Jéssica abriu assim os horizontes à custa de alguns sacrifícios.

Uma finta que deu a volta ao mundo

Sempre foi "a menina das fintas", mas nunca foi de ficar a treinar esses lances: "Eu queria alguém para jogar comigo, nunca fui pessoa de levar a bola e pôr-me a fazer remates à baliza sem parar. Há um ou outro truque que eu treinava, mas a finta é algo inato. Aliás, quando me pedem para recriar as fintas eu nunca consigo [risos]."

Em abril de 2018, no jogo de qualificação para o Mundial 2019, entre Portugal e Bélgica, Jéssica fez passar a bola entre as pernas de Doloose, fez o chamado "túnel" (ou cueca)."Não foi a finta mais bonita que já fiz, mas essa conquistou a internet. E deu a volta ao mundo! Eu via pelos comentários ao lance onde já tinha chegado. "Olha agora deve ter chegado a Marrocos, olha agora chegou à China." Na mesma semana voltei ao clube e fiz um finta com um gesto técnico muito bonito que foi partilhado pela La Liga. Foi uma semana incrível. Pela primeira vez, o Levante teve receitas no Youtube por causa dessa finta", conta, orgulhosa.

Atributos técnicos que não passaram despercebidos ao campeão francês e agora pentacampeão europeu. O Lyon já tinha tentado contratá-la em 2018, mas só em 2019 a transferência aconteceu. Quando soube do interesse passou-se um bocado. Pior foi quando teve de "ficar de boca calada", ou seja, guardar segredo, durante três meses, depois de chegar a acordo. Queria gritar ao mundo que ia jogar no campeão europeu e uma das melhores equipas do mundo, mas não podia. Só três pessoas sabiam que Jéssica ia jogar no Lyon. Chegou lá "algo intimidada e encolhida", perante estrelas como Ada Hegerberg, Nikita Parris ou Lucy Bronze, mas receberam-na tão bem, que rapidamente se sentiu parte do grupo e feliz no balneário. Além disso, sabia que se estava a tornar melhor jogadora, e isso era importante.

Ser a primeira portuguesa a vencer a Liga dos Campeões feminina "é muito especial" e "um orgulho enorme", mas não é só dela. "Acho que esta Champions não é só para mim, é para todas as portuguesas, é um boost para continuarem a trabalhar. Somos um país pequeno, mas somos capazes de grandes conquistas. Temos de ser ambiciosas. Eu quero um dia deixar de jogar futebol e ver mais raparigas a jogar à bola, não quero ser a única a vencer, quero criar uma tradição. Quero ver a jogadora portuguesa crescer e ser respeitada no mundo", confessou a atleta, que, apesar de já ter passado uma semana desde que o Lyon venceu (3-1) o Wolfsburgo na final, ainda recebe felicitações.

Jéssica viu a final ao lado do presidente Jean-Michel Aulas, um líder que "dá relevância à mulher no futebol" e que decidiu oferecer à equipa três dias de férias em Saint-Tropez e equiparar os prémios pela presença nas meias-finais da Champions ao valor pago à equipa masculina, onde joga Anthony Lopes. A igualdade de salários é uma luta que as mulheres têm perdido, mas, para a jogadora do Lyon, mais do que a igualdade salarial, "é preciso criar mecanismos para que as mulheres possam jogar, tenham infraestruturas condignas e dar maior competitividade ao campeonato, para não serem três a lutar pelo título e outros a jogar para aquecer". E na opinião ela, "a Federação tem trabalhado para valorizar o futebol feminino e a jogadora portuguesa".

A lesão grave e o encontro com CR7

A recuperar de uma das piores lesões que se pode ter no futebol - rotura do tendão de Aquiles, sofrida num jogo da seleção, na Algarve CUP, em março -, a internacional portuguesa confessa que deduziu logo a gravidade da situação. "Senti um golpe e virei-me para trás a ver se alguém me tinha dado uma cacetada, mas não, estava sozinha. Quando a médica chegou ao pé de mim, eu pedi para me levantar, e assim que pousei o pé percebi. Parecia que estava numa dimensão diferente, que o pé não tinha ligação ao corpo, e comecei e a gritar: 'O meu tendão, o meu tendão.' Quando cheguei ao balneário comecei a chorar e a interrogar-me porquê a mim. Mas passados 15 minutos já estava a dizer que queria ser operada, recuperar bem e regressar o mais rapidamente possível". Jéssica não suporta muito bem a dor, mas a pandemia até ajudou na recuperação: "Não ver as colegas a jogar fez-me bem. Parece egoísta, mas afinal de contas ninguém estava a jogar e eu não estava a perder nada", confessou a extremo, que em Portugal ainda jogou no Sp. Braga.

A futebolista questionou o azar, mas confiou "nos processos da vida". O ano de 2020 trouxe uma pandemia e uma lesão grave, mas também lhe deu uma Champions e a possibilidade de conhecer... Cristiano Ronaldo. A embaixadora MEO Altice foi a escolhida para a campanha dos novos equipamentos da seleção nacional e teve de gravar e fotografar com o capitão nacional. "O talento e o trabalho de Ronaldo impressionam. Ter conseguido destacar-se a nível mundial vindo de um país tão pequeno. Tive muitas discussões no balneário do Levante por causa disso. Tentarem menorizar-nos pelo facto de sermos portugueses é uma coisa que me revolta, seja em que área for. Falta-nos o reconhecimento que nós damos aos outros", desabafou a atleta, que gosta mais de jogar a extremo do que a avançado.

Apesar de idolatrar Cristiano Ronaldo, Jéssica nunca viu uma jogadora com a capacidade técnica da brasileira Marta. E confessa que gosta de se arranjar antes de entrar em campo: "Podemos e devemos ser femininas em campo." Para 2020 há pelo menos mais uma conquista em mente: "Recuperar a 200% e voltar a entrar em campo. Essa será uma vitória muito importante para mim. Voltar a sentir a relva e a alegria de jogar, porque ainda tenho muito mais para conquistar."