Foi algures nos anos 60. Mário Soares (1924-2017) é preso de novo (foi-o doze vezes durante a ditadura). Aproveita então para ensaiar uma incursão na ficção literária, escrevendo um romance. Intitulou-o Concordata, uma história, utilizando a sua experiência de advogado, à volta da proibição do divórcio que vigorava no Estado Novo para os casamentos católicos. Já fora da cadeia, fez então o teste. Reuniu num serão em Lisboa dois amigos - o escritor Carlos Oliveira (1921-1981) e o historiador Joaquim Barradas de Carvalho (1920-1980) -, para lhes ler um capítulo e perceber a sua avaliação. A qual encarou com bonomia..A leitura acabaria com o escritor e o historiador a... dormirem. Talvez isso tivesse acontecido porque tinham acabado de jantar. Mas para Soares foi o suficiente: com bom humor fez notar que aquela reação fora a suficiente para concluir que ficção literária não era para ele. E arquivou o manuscrito. Disso há praticamente a certeza: não o deitou fora. Porque Soares - cujos dois anos da morte se assinalam na próxima segunda-feira, dia 7 - passou uma vida inteira, desde pelo menos o fim da adolescência, a acumular papéis. Não deitava nada fora..O manuscrito da Concordata estará então algures numa caixa - só é preciso que alguém o encontre. E agora, em 2019, a busca vai iniciar-se, estando isso a cargo de um jovem historiador, Pedro Marques Gomes, que já tem no currículo a experiência de ter ajudado o jornalista José Pedro Castanheira a escrever a biografia de Jorge Sampaio. Quando for encontrado, há uma certeza: o romance será publicado..Isto porque a Imprensa Nacional-Casa da Moeda prepara o arranque, ainda neste ano, da publicação das obras completas do político que foi tudo em Portugal (resistente antifascista, fundador do PS, deputado, ministro, primeiro-ministro, Presidente da República). Obra de Mário Soares - será este o título da coleção..Até ao final do primeiro semestre sairá uma espécie de volume zero: a tese sobre Teófilo Braga que escreveu para concluir a sua primeira licenciatura (Histórico-Filosóficas) e que um professor o proibiu de apresentar (com o argumento de que constituiria propaganda da I República). Depois, ainda neste ano, será lançado o primeiro volume, contendo dezenas de cartas, muitas delas inéditas (ver excertos em baixo), que Soares trocou ao longo de toda a vida com dezenas de personalidades da vida cultural portuguesa (e que tanto podem ser António Sérgio ou José Régio como Beatriz Costa, Herman José ou Pedro Abrunhosa)..Assessor cultural de Soares durante os seus dez anos de Presidente da República (1986-1996) e agora membro da comissão editorial que a Imprensa Nacional escolheu para supervisionar todo o processo, José Manuel dos Santos explicou ao DN como o próprio Soares facilitou a tarefa (embora tornando-a imensa). Não só guardava todas as cartas que recebia como fazia questão de guardar cópias de todas as que enviava. Ou seja: para se perceber o que foi escrevendo a outros não é preciso ir recolhê-los aos outros - ficou tudo em cópia no remetente..Dada a "dimensão monumental" do espólio deixado, José Manuel dos Santos assume que sabe que a Obra de Mário Soares começará a ser publicada neste ano - mas não sabe quando acabará: "Muito está ainda por descobrir." Começando pelo romance com que Soares, algures num serão lisboeta nos anos 60 do século passado, conseguiu adormecer dois amigos..EXCERTOS DE CARTAS.Para Augusto Abelaira.[Entre março de 1968 e março de 1969, Mário Soares esteve deportado em São Tomé. "Dentro de meses ninguém se lembrará de que houve um advogado chamado Mário Soares", disse-lhe um inspetor da PIDE. O político sentia-se então mais isolado do que nunca. Não sabia quando regressaria, não conhecia ninguém, estava permanentemente vigiado. Todas as cartas que escrevia ou recebia eram vistas previamente pela polícia política.].S. Tomé, 2 de Junho de 1968.Meu caro Abelaira: Aqui em S. Tomé não há livrarias. Calcule você, pois, o meu espanto quando, ao entrar no barbeiro da terra, lugar onde se vendem, também, os boletins do totobola, lotarias e alguns jornais com quinze dias de atraso, encontrei à venda o seu último livro - Bolor! [...] O assunto interessou-me enormemente. Acho que está superiormente tratado e que contém páginas duma grande beleza e penetração psicológica - mas, no seu conjunto, desconcertou-me. Com toda a franqueza lhe digo que não entendi as páginas finais nem o que pretendem sugerir. E, entretanto, não conheço na literatura portuguesa romance que toque por uma forma tão original, moderna e desmistificadora o problema das relações amorosas dum casal. [...]...........Para José Cardoso Pires.[O contexto é o mesmo da carta a Abelaira. Uma situação de total isolamento, em São Tomé e Príncipe. Salazar ainda não tinha caído da cadeira. Nada perspetivava uma rápida ascensão ao poder do delfim do ditador, Marcelo Caetano - que já prometera a Soares acabar-lhe com o exílio africano.].S. Tomé, 29 de Julho de 1968.Meu caro Cardoso Pires, Venho agradecer-lhe com algum atraso (mas com vivo reconhecimento) a oferta do seu livro O Delfim e das palavras desvanecedoras e imerecidas que o acompanhavam. [...] Nunca como agora fiquei tão deslumbrado e, por assim dizer, tão rendido com a segurança do estilo, e a sobriedade e limpidez da narrativa, a subtileza e profundidade com que o tema é dissecado. [...] Sinceramente, você escreveu um livro verdadeiramente notável! [...] Mas há ainda uma outra nota no seu livro, esta sentimental, que me tocou: o facto de ser singularmente dedicado com amizade e justiça ao nosso querido Xico [Francisco Salgado Zenha]..........De D. António Ribeiro, cardeal-patriarca de Lisboa.[Esta carta não será publicada no primeiro volume das Obras de Mário Soares mas sim num posterior, de correspondência política. Foi escrita em pleno Verão Quente de 1975, com o país a ferro e fogo, dividido entre "revolucionários" e "contrarrevolucionários". A Rádio Renascença estava ocupada pela extrema-esquerda. Soares sabia que fora o anticlericalismo feroz da I República uma das principais razões da ascensão de Salazar ao poder e agia em conformidade.].Lisboa, 12 de Julho de 1975.Senhor Dr. Mário Soares, tenho acompanhado a recente crise política e, nela, a corajosa e lúcida actuação de V. Exa. em defesa das liberdades do Povo português. Estou-lhe profundamente grato por quanto tem feito e quero garantir-lhe que, nesta hora, pode contar com a minha solidariedade e a da maior parte dos cristãos portugueses. Não são querelas partidárias as que presentemente dividem os portugueses. São, como é bem claro, lutas pela liberdade ou contra ela. E a defesa da liberdade é um valor por que vale a pena sempre lutar..Com os meus respeitosos cumprimentos de elevada consideração e estima, creia-me muito grato e dedicado António, cardeal-patriarca.........Para Saramago.[Governa o bloco central, coligação PS+PSD liderada por Soares. O país está sob tutela do FMI e o PCP, partido de Saramago, está na rua com todas as suas forças a gritar "Soares rua".].7 de Janeiro de 1985.Caro José Saramago, Li, durante as férias, o seu livro sobre o Fernando Pessoa/Ricardo Reis: fiquei verdadeiramente impressionado, embora não surpreendido. Surpreendido fiquei quando li o Memorial do Convento, que, quanto a mim, representa um salto qualitativo importantíssimo na sua obra. [...] Como Você sabe não tenho nenhuma simpatia pelas suas opções políticas, nem Você pelas minhas, presumo. Mas isso não tem qualquer importância. Antes realça a sinceridade do meu entusiasmo..De Saramago.[O escritor tinha sabido neste dia que havia ganho o Prémio Camões. Soares concluía o seu segundo mandato presidencial. Em 2005, o escritor apoiaria a terceira candidatura presidencial de Soares, apesar de o PCP ter avançado com o seu secretário-geral, Jerónimo de Sousa.].23 de Novembro de 1995.Não me faltaram as suas palavras amigas e generosas neste dia de particular contentamento. Agradeço-lhas do coração. Há poucos dias, em duas páginas e meia, exprimi um voto para o seu futuro. Só não disse o que venho dizer-lhe agora: que conte comigo sempre quaisquer que sejam as nossas diferenças porque uma coisa sei eu que nos une: o respeito por uma terra chamada Portugal. Não falo de amor que é lugar-comum, obrigado, falo de respeito, bem mais útil e necessário. Um abraço grato, José Saramago.........De Natália Correia.[A escritora era nesta altura apoiante do PRD, partido que apoiava a candidatura presidencial de Salgado Zenha (durante décadas um dos principais amigos políticos de Soares). A escritora garante aqui a Soares que não apoiará Zenha.].Sem data, 1985.Caro Mário Soares Pesem divergências minhas da sua actuação política, das quais a mais dolorosa foi sobre a Lei de Segurança Interna, quero que saiba que jamais me ligarei a qualquer projecto que vise destruir o PS ou abater o seu líder pela via da deslealdade, infelizmente trilhada por quem se assumia a consciência moral do PS. Pertencendo ao número dos que, mesmo na luta, são leais, tais processos repugnam a minha visão ética dos procedimentos. Creia-me, assim, solidária com o desgosto que essa punhalada vibrada nas suas costas não terá deixado de lhe causar. Com a velha estima da Natália Correia..Para Natália Correia.Lisboa, 6 de Dezembro de 1985.Minha cara amiga, Gostei muito da sua carta, da ideia de a ter escrito, da sua solidariedade. Estamos num momento muito difícil: sei que você já compreendeu tudo. Por mim, apenas lhe direi que continuo igual a mim próprio: determinado, sabendo o que quero, em paz com a consciência e, portanto, bem-disposto, apesar dos dissabores e das dificuldades de todos os dias. Mas isso é a vida. Aceite um abraço do seu velho admirador e amigo Mário Soares.........De Vergílio Ferreira.[Aconteceu de 31 de maio para 1 de junho de 1989. Soares tornou-se no primeiro Presidente da República a pernoitar na ilha do Corvo, a mais remota dos Açores. As notas do repórter do DN Óscar Mascarenhas falam do "inesquecível serão" com que toda a população da ilha o recebeu. Soares fez na ilha uma alocução ao país falando da necessidade de não se deixar "escapar a oportunidade" de Portugal se construir como um "espaço de solidariedade" com "idênticas oportunidades" para todos, "nasçam em Lisboa, no Corvo, em Porto Santo ou na serra mais distante de Bragança".].1 de Junho de 1989.Senhor Presidente, Ainda emocionado com a sua alocução feita a partir da ilha do Corvo, não posso deixar de lhe dizer que o seu gesto de particular deferência para com esta minúscula parcela do nosso país, perdida nos confins do mar, foi um acto de genialidade política. E é tudo. Saúda-o e felicita-o, Vergílio Ferreira.