A Área Metropolitana de Lisboa é lida como um "laboratório" da diversidade religiosa em Portugal. É nesta região do país - que junta 18 municípios, de Mafra a Setúbal - que se concentra um maior pluralismo religioso. E apesar de mais de metade da população da AML ser católica (54,9%), assiste-se a um fenómeno que está a ganhar terreno: o número crescente de pessoas que dizem não ter nenhuma religião. Já são quase 35% aqueles que não se veem representados em qualquer grupo religioso - 22% são não crentes e 13% afirmam-se crentes mas sem religião. E é esta última população, os que acreditam em algo mas não professam qualquer religião, que merece uma certa diferenciação: "Revelam uma posição de maior autonomia, o que responde a grandes transformações das sociedades do Atlântico Norte nos anos 70..Investigações realizadas nos anos 90 mostraram que o principal fenómeno social não passava tanto pela desafetação em relação ao religioso, a um distanciamento desse imaginário, mas mais uma autonomia em relação às instituições religiosas", explica o professor Alfredo Teixeira, coordenador do estudo "Identidades religiosas e dinâmica social na Área Metropolitana de Lisboa", da Fundação Francisco Manuel dos Santos, que será apresentado nesta terça-feira em Lisboa. O professor do Centro de Investigação em Teologia e Estudos de Religião da Universidade Católica sublinha ainda que se trata de pessoas, que sem qualquer exercício de pertença, reclamam para si próprias a gestão da sua crença. "Esta tendência não é apenas de desfiliação religiosa, mas sim conducente a um estado de emancipação religioso.".Quem se assume como não tendo religião - refere o estudo que entrevistou 1180 pessoas com idades superiores a 15 anos - justifica-o com a sua convicção pessoal e pela discordância face à doutrina e aos códigos morais religiosos. Contudo, estas opiniões nem sempre se traduzem no desinteresse por questões religiosas na sua dimensão pública. Significativo é o facto de a maior parte das pessoas sem religião terem nascido em famílias católicas, independentemente de serem ou não praticantes. Entre os principais motivos que justificam a sua posição está a discordância face à doutrina e aos códigos morais religiosos.Na Área Metropolitana de Lisboa, o conjunto de crentes fora do universo católico ascende aos 9,2%. "É então possível afirmar que nesta região se verifica uma diminuição da maioria histórica dos católicos, a progressão dos sem religião e a estabilização, em termos gerais, do conjunto das chamadas minorias religiosas", conclui o documento. Alfredo Teixeira recusa que a perda de espaço dos católicos tenha que ver com as polémicas que nos últimos anos têm assolado a Igreja Católica, como a pedofilia. Acredita que isso terá incidência em contextos nacionais onde ocorrera, o que não é o caso de Portugal. "Estas alterações têm mais que ver com as dimensões das sociedades modernas. São sintomas dessa transformação, de contextos onde a vivência religiosa pode ser mais individualizada, e há mais emancipação religiosa.". Maioria dos católicos a favor da eutanásia com limites.No domínio das crenças e dos valores, o questionário colocava três questões sobre a eutanásia: condenável em qualquer situação, aceitável dentro de certos limites, aceitável em qualquer situação. Sobre esta matéria, o professor universitário Alfredo Teixeira faz questão de referir o facto de as entrevistas terem decorrido entre junho e julho do ano passado, numa altura em que os debates sobre a eutanásia estavam muito presentes na opinião pública, nomeadamente pronunciamentos públicos contrários a esta prática por parte das instituições religiosas.Assim, uma larga maioria dos inquiridos (70,3%) consideram a eutanásia aceitável dentro de certos limites. 18,6% julgam-na condenável em qualquer circunstância e só 5,2% responderam que a aceitam em qualquer circunstância. Há apenas dois grupos em que a maioria condena a eutanásia em qualquer circunstância: 68,7% dos muçulmanos e 62,9% dos evangélicos/protestantes são terminantemente contra. Quanto aos católicos, 67,9% aceitam-na dentro de certos limites enquanto 22% condenam a sua prática em qualquer situação. O estudo não deixa de referir que esta opinião dos católicos, contrária à posição oficial da Igreja, acaba por não surpreender, uma vez que muitos vivem afastados e sem qualquer envolvimento institucional ou comunitário.Já no que diz respeito aos não crentes, a aceitação da eutanásia destaca-se entre os ateus - 90% responderam estar de acordo com esta prática em certas situações. É ainda no domínio das crenças e dos valores, como seria expectável, que se regista um maior contraste entre os não crentes (indiferentes, agnósticos e ateus) e os crentes (incluindo os crentes sem religião). Os primeiros tendem a discordar de afirmações que pressupõem a existência de Deus, mostrando uma inclinação para entender Deus como uma criação humana, ou ainda para identificação de Deus com a natureza. Estes também mostram maior confiança na ciência e na democracia para resolver os problemas..No entanto, os crentes sem religião aproximam-se mais daqueles que pertencem a uma religião do que dos que não acreditam em nada. "No plano do crer, podem subsistir próximos de um universo de religiosos de referência sem que isso se articule a formas de pertença", refere o estudo. As Testemunhas de Jeová - que no fim de semana passado realizaram um encontro que juntou milhares no Estádio da Luz - são os que exprimem uma falta de confiança na democracia enquanto opção política para o futuro.. Os budistas são os que mais acreditam na reencarnação da alma - logo rejeitam fortemente a ideia segundo a qual depois da morte tudo acaba. No entanto, tal como os não crentes, os budistas discordam que o fim do mundo esteja próximo.Se a oração é um dos indicadores mais fortes de religiosidade, este capítulo permitiu concluir que esta prática adquire formas individualizadas e espontâneas - ou seja, a oração é vista como um ato individual, sem necessidade de se deslocar ao templo..De facto, apenas uma ínfima parte dos inquiridos (1,4%) consideram que a frequência de um lugar de culto é uma obrigação. "A crescente autonomia face às instituições religiosas, a par da liberdade crescente no que diz respeito às práticas cultuais comunitárias, faz que as questões religiosas sejam cada vez mais compreendidas como uma opção pessoal e menos como um dever ou obrigação", conclui o estudo. Em temos gerais, 32,3% dos inquiridos não apresentaram indícios de qualquer oração, contra 49,3% que afirmou rezar com frequência.. A minha religião é mais verdadeira do que a tua?.A conclusão é que todos os grupos religiosos são influenciados pelo paradigma pluralista que envolve os 18 municípios da Área Metropolitana da Lisboa. E isso acontece mesmo quando são tidas em conta as religiões de tendência "mais exclusiva"..Senão vejamos: quase 30% dos muçulmanos responderam que todas as religiões são verdadeiras, enquanto apenas 17,7% disseram que só a sua religião é verdadeira, refere o estudo para logo questionar: "Será que isso é indicativo da emergência de um Islão cultural na sociedade portuguesa, à semelhança do que vai acontecendo na Europa?"De resto, um terço dos católicos encontra verdade em todas as religiões e 36,1% em muitas religiões. Apenas 6,5% consideram que só a sua religião é verdadeira. "Mais uma vez se constata uma erosão de um traço próprio das Testemunhas de Jeová, o da rutura com o meio social envolvente", aponta a pesquisa ao constatar que 24,1% consideram que só a sua religião é verdadeira. No entanto, ressalva que é surpreendente que mais de um terço afirme que todas as religiões (16,7%) ou muitas religiões (19,1%) são verdadeiras. Os evangélicos são os menos universalistas, já que apenas 14,5% consideram que todas as religiões são verdadeiras.. Discriminação.Os resultados do inquérito dão corpo à crença popular de que a sociedade portuguesa é tolerante com outra etnias e religiões: 91% responderam que nunca sentiu qualquer tipo de discriminação tendo por base a sua religião. E mesmo os poucos que afirmam já o ter sofrido na pele, explicam que o sentiram entre amigos e familiares. "O facto de ocorrer no contexto amical e familiar diminui o peso do fenómeno, mas trata-se de uma sociedade pouco exposta à diversidade religiosa. A possibilidade de se ser confrontado com a diversidade religiosa é escassa. Não temos grupos religiosos que se afirmem de forma ostensiva, e esse low profile atenua a possibilidades de conflito", afirma Alfredo Teixeira. Acrescentando que também é relevante o facto de o Estado português, depois do período democrático, favorecer a laicidade e o reconhecimento da diferença religiosa.O estudo "Identidades religiosas e dinâmica social na Área Metropolitana de Lisboa" exprime o paradoxo próprio de uma área metropolitana, faz questão de salientar o professor Alfredo Teixeira - por um lado é um espaço integrado, mas ao mesmo tempo fragmentado. "A zona norte mostra alguma vitalidade de diferenciação, é onde acontece o que há de novo. A cidade aparece como um lugar de maior desertificação religiosa, embora algumas zonas da cidade abram espaços de culto evangélico mas que são frequentados por pessoas que não residem nesses bairros, são espaços de confluência para não residentes." Ou seja, há uma certa desarticulação entre os lugares de residência e a prática duplamente metropolitana, que usa a mobilidade correspondente ao chamamento religioso. Objeto de um estudo futuro, preconiza Alfredo Teixeira, é a localização dos locais de culto. Porque se em relação aos católicos e aos muçulmanos isso seja fácil de identificar, o mesmo não se passa em relação a outras religiões minoritárias.