Cartas morais
A brutalidade da pandemia que demonstra ser global, sem distinção de etnias, culturas ou crenças, suscitou a perda como que militar de vidas e o enfraquecimento da estrutura legal da ordem internacional. Todavia conseguindo as organizações científicas chegar à criação das vacinas essenciais para vencer a batalha que envolve todos os seres vivos, o facto, ainda com dificuldades, determinou a reanimação do tema que tornou eternas as Cartas Morais de Lúcio Aneu Sêneca, quando se ocupa das "Vantagens da Velhice" (Carta XIX) sobre a vida breve, com estas palavras dirigidas ao seu amigo Lucílio: "O que vivemos é um ponto, e ainda menos que um ponto, e ainda por cima, esta coisa tão pequena, para maior engano, a natureza a dividiu a fim de dar-lhe aparência de um prolongado espaço de tempo; de uma porção faz a infância, de outra a mocidade, de outra a adolescência, de outra uma certa descida da adolescência à velhice, e de outra à própria velhice."
O padre Vieira escreveu algures que Deus não cria o homem para a vida, mas para a eternidade, e quanto à infância, a representante do secretário-geral da ONU, Radhika Coomaraswamy, num relatório de 21 de julho de 2011 para o Conselho de Segurança, escreveu: "As crianças continuam a ser afetadas de modo desproporcional (...) e a ver os seus direitos fundamentais violados (...) são recrutadas à força, mortas e mutiladas, raptadas, submetidas a violências sexuais, e privadas de ajuda humanitária." Por esse tempo não se prenunciavam com frequência sobre o número de crianças envolvidas e sacrificadas, em África, nos confrontos do sul ao norte. Mas a carta de Lúcio, sobre "Vantagens da Velhice", anotava tais vantagens visitando a Casa Velha a desmoronar-se, apesar dos cuidados, mas suscitando-lhe recordações de um "tempo já vivido".
Voltando a Vieira, lembra ele, tendo em vista as profecias, que o tempo altera a leitura em termos diferentes do que assumiram os antigos, e até o milagre se relaciona com o tempo. Todavia, como já nos despertou a todos a atenção, o tempo, de cada homem, breve ou longo, está condicionado, segundo o valor da vida, por uma adjetivação de tempos felizes, tempos de incerteza, tempos de dores, tempos de esperança, tempos de vitória, tempos de derrotas, tempos de desistência, tempo para esquecer, tempo para lembrar, tempo de vésperas, tempo de solidão, tempo de amores, tempos de ódio, tempos de perdão. Acontece que Vieira, no Sermão da Terceira Quarta-Feira da Quaresma, pregado no ano de 1669, adiantou o conceito - Quod debuimus facere, fecimus: "Quem fez o que devia devia o que fez e ninguém espera paga de pagar o que deve. Se servi, se pelejei, se trabalhei, se venci, fiz o que devia ao rei, fiz o que devia à pátria, fiz o que me devia a mim mesmo: e quem se desempenha de tamanhas dívidas, não há de esperar outra paga."
Esta certeza do padre Vieira deve considerar como objetivos e exigências da vida a mensagem dos cisnes brancos que referiu Ortega sobre a circunstância que desafia a história de cada homem. Mas previu que podem ser os cisnes negros que definem a circunstância, e este século sem bússola é por essa espécie desafiante até do receio expresso no livro coletivo intitulado Un Monde sans Europe?, prefaciado por Pierre Hassener (Fayard, 2011), que se ocupou sobretudo das perigosas relações entre os EUA e a URSS, e concluiu mais tarde que a Europa devia ser um fator de equilíbrio, de coordenação e de conciliação, não de autoridade, confiando então na relação entre Reagan e Thatcher.
A evolução dos Estados que formaram a União Europeia, que acolheu os Estados europeus que recuperaram a liberdade de que o sovietismo os privara possuem hoje o saber de que nenhum Estado isolado pode dispensar a cooperação geral para enfrentar os desafios que incluíram a agressão pelo conflito com a natureza em crise, sem possuir a eficiência pronta das defesas contra a pandemia, e sofrendo esta pequena Europa com o desastre da confiança nos EUA, quando o seu, esperamos que último, presidente fala no respeito pelo constitucionalismo democrático, mas tornou claro que foi alcançar um poder pessoal que o inspirou. A última demonstração desse perturbante exercício, está na determinação de serem executados todos os condenados à morte.
A tradução das Cartas Morais de Lúcio Aneu Sêneca não parece que exista na Casa Branca, onde se destacam os que deviam ocupar-se das "Vantagens da Velhice" (Carta XII) e a que tem que a vida é breve, um aviso especialmente destinado à "geração grisalha", que na última presidência esteve antes ocupada em tentar perpetuar o poder mal exercido. A crise evidente, que atinge também a ordem internacional, vai exigir ao novo eleito uma tarefa de apoio dos seus valores fundamentais da justiça natural e da ordem mundial reposta.