Quando o presidente francês caminhou pelas ruas destruídas de Beirute, poucos dias depois da explosão no porto que deixou 190 mortos e milhares de desalojados, foi recebido com gritos de "Vive la France". Em casa foi apelidado de "neocolonialista" pelos críticos, mas para muitos libaneses surgiu como a única esperança diante de uma classe política que consideram corrupta e que há muito os desilude..Emmanuel Macron dispôs-se então a ajudar, organizando uma conferência de doadores rapidamente, mas não o fez passando um cheque em branco: exigiu reformas políticas. Agora, menos de um mês depois, regressa a Beirute para uma nova ronda de contactos - que inclui o novo primeiro-ministro, Mustapha Adib, confirmado poucas horas antes de chegar - e avaliar em que ponto está a situação. Mas também para assinalar os 100 anos da criação do Grande Líbano..Quando o Império Otomano se desmoronou após o final da Grande Guerra, a Liga das Nações (precursora das Nações Unidas) entregou à França o mandato de administrar o que era então a Grande Síria. A 1 de setembro de 1920, o general francês Henri Gouraud, rodeado de políticos locais e líderes religiosos, declarou em Beirute a criação do Estado do Grande Líbano (oficializando a separação da Síria)..O Grande Líbano incluía a região do Monte Líbano, que já em tempos otomanos tinha autonomia e fora criada como pátria para os cristãos maronitas. Estes eram a maioria no Grande Líbano sob controlo francês, mas com 18 grupos religiosos a conviver no território, o país era visto como um exemplo de pluralismo e coexistência quando conquistou a independência 23 anos depois, a 22 de novembro de 1943..Contudo, o acordo que garantia a estabilidade tornou-se um colete-de-forças, ao estabelecer que o presidente do país tem de ser sempre um cristão (representam 39% da população, a maioria maronitas), o primeiro-ministro um muçulmano sunita (27%) e o líder do Parlamento um muçulmano xiita (outros 27%), com outros cargos igualmente divididos por outras confissões..Guerras e não só.O acordo de partilha de poder não impediu as guerras que dizimaram o país. A primeira ameaça surgiu logo em 1958, quando os muçulmanos com o apoio do Egito e da Síria pegam em armas contra o regime pró-ocidental do presidente Camille Chamoun, que pede a ajuda aos EUA, que enviam tropas norte-americanas para acabar com a revolta..Após a criação de Israel e a derrota árabe na Guerra dos Seis Dias, em 1947, milhares de refugiados palestinianos fugiram para o Líbano e o país tornou-se a base da Organização da Libertação da Palestina (OLP), que lançava desde o território vários ataques a Israel..Em 1975, a tensão entre os palestinianos (eventualmente apoiados pelos muçulmanos libaneses e pela esquerda) e as milícias cristãs acabou por resultar na guerra civil que aos poucos envolveu todos os grupos religiosos e que duraria 15 anos, estimando-se que 150 mil pessoas podem ter morrido..Durante a guerra, o Líbano foi invadido pela Síria - começando 29 anos de ocupação militar que só acabou em 2005 -, assim como Israel em duas ocasiões: em 1978 e depois em 1982. Nesta última, após meses de cerco a Beirute, força o líder palestiniano Yasser Arafat e os seus combatentes a deixar o Líbano..A paz viria em 1990, com a dissolução de todas as milícias à exceção da xiita do Hezbollah - que tinha o apoio do Irão e servia como tampão a Israel na fronteira sul (só em 2000 é que recuou). Em 2006, Hezbollah e Israel envolveram-se noutra guerra, que resultou em 1200 mortes no sul do Líbano. O Hezbollah, que EUA e União Europeia designam como grupo terrorista, transformou-se também num partido político, controlando atualmente junto com os seus aliados a maioria no Parlamento..Pelo meio, dois ex-presidentes e três primeiros-ministros foram assassinados - o último Rafic Hariri, em 2005, na explosão de um camião armadilhado. A sua morte desencadeou a Revolução dos Cedros, que levou ao fim da ocupação militar síria. A investigação aponta o dedo ao Hezbollah, sendo certo que muitos culpam também a Síria (Hariri era contra a ocupação militar), mas ambos negam responsabilidade..O Hezbollah tem atuado nos últimos anos na guerra síria ao lado do presidente Bashar al-Assad, o Líbano a maior concentração per capita de refugiados no mundo e o potencial colapso do país ameaça causar uma nova crise migratória na Europa - além do êxodo que existe há anos dos próprios libaneses (só em França são 250 mil os franco-libaneses)..O acordo para a divisão de poderes fomenta o clientelismo e a corrupção, que ao longo dos anos foram deixando as infraestruturas libanesas completamente fragilizadas. A crise económica rebentou no final do ano passado, sendo exacerbada depois pela pandemia de coronavírus, com a explosão de 4 de agosto a ser para muitos a gota de água final. O nitrato de amónio que terá estado na origem da explosão esteve armazenado no porto durante anos, com o conhecimento das autoridades, sem que algo fosse feito..Influência francesa.Mais de sete décadas depois da independência, a França ainda tem influência no país. Dois dias após a explosão no porto de Beirute, e com os líderes libaneses completamente ausentes, Macron visitou um dos bairros mais danificados da cidade, sendo recebido com gritos de "Vive la France" e quase como um herói - em casa foi considerado pelos críticos como "neocolonialista"..Mais de 60 mil pessoas assinaram uma petição a pedir para o Líbano ser posto sob mandato francês durante uma década, algo que o próprio Macron se apressou a rejeitar. "Cabe a vocês escreverem a vossa própria história", disse à multidão. Mas, durante a visita, o presidente francês exigiu um novo sistema político em troca do apoio direto, tendo realizado dias depois uma conferência de doadores.."A catástrofe não deve ser usada como um pretexto para esconder a realidade que existia antes de um país que está à beira do abismo... e que não se pode reformar sozinho", disse o chefe da diplomacia francês, Jean-Yves Le Drian, na semana passada. "Queremos que as autoridades libanesas deem o salto necessário para um governo que tem o desafio de começar reformas essenciais", indicou, deixando claro: "Não nos cabe a nós substituir o Governo libanês, cabe aos libaneses assumir a sua responsabilidade.".Macron, que aterrou nesta segunda-feira à noite em Beirute para uma visita de 48 horas, está numa boa posição para procurar um consenso. O atual presidente libanês, Michel Aoun, um cristão maronita, esteve exilado em França no final da guerra civil. O líder francês teve um papel essencial no regresso do ex-primeiro-ministro libanês, Saad Hariri, um muçulmano sunita, depois de este ter sido retido e se ter demitido durante uma visita à Arábia Saudita em finais de 2017. E Macron é o único líder ocidental que tem contactos de alto nível com o Hezbollah, através do líder do bloco parlamentar.."O presidente não vai a Beirute para aprovar um acordo entre as partes, ele vai para obter deles um compromisso claro e operacional no âmbito do novo contrato que estabeleceu na última visita", disse um responsável do Palácio do Eliseu ao Politico sobre a atual visita. "Ele vai exigir que estes compromissos sejam implementados de forma a refletir aquilo que os libaneses lhe expressaram", acrescentou..Um mau sinal?.Mas, para muitos, a escolha do sucessor de Hassan Diab, que se demitiu da chefia do Governo após a explosão, é uma prova de que nada vai mudar. O embaixador Mustapha Adib, que foi chefe de gabinete de Najib Mikati (primeiro-ministro entre 2011 e 2014), foi confirmado poucas horas antes de Macron chegar e é visto como alguém pertencente ao sistema instalado, considerado corrupto e ineficaz..No domingo, o presidente Michel Aoun e o seu aliado e líder do Hazbollah Hassan Nasrallah mostraram abertura para alterar a forma como o país é governado. O presidente chegou mesmo a defender a proclamação de um Estado secular. Também o líder do Parlamento, Nabih Berri, defendeu mudanças no sistema confessional, que apelidou de "a causa de todos os males"..Mas muitos temem que sejam só declarações para Macron ver. Estima-se que a reconstrução de Beirute vá custar 30 mil milhões de dólares e os doadores internacionais disponibilizaram o dinheiro, mas em troca querem reformas - as mesmas reformas que França já tinha pedido há dois anos, quando doadores disponibilizaram uma verba de 11 mil milhões para investir em infraestruturas, e que nunca chegaram..Contudo, há quem também defenda que não interesse à França uma verdadeira mudança. "Não vejo os franceses a abraçar verdadeiramente as exigências da maioria da população, que são basicamente afastar toda o sistema político corrupto. Eles têm relações com muitos líderes. E isso iria pôr limites a quanto a França se pode realmente tornar no principal influenciados na região", disse à Deutsche Welle o especialista em Médio Oriente Elie Abouaoun..O regresso à política de De Gaulle?.O general Charles de Gaulle, fundador da Quinta República, acreditava que a França deveria contrabalançar o peso da Alemanha na Europa e do eixo anglo-americano no Atlântico, com um papel no Mediterrâneo. Na prática, isso implicava uma relação especial com os países árabes no Norte de África e no Médio Oriente - uma política que Nicolas Sarkozy pôs em causa, ao apoiar a intervenção britânica contra Muammar Kadhafi na Líbia..Desde que chegou ao Eliseu, Macron não tem tido problemas em lidar diretamente com os líderes da região, por vezes mesmo contra os interesses europeus - na Líbia, por exemplo, a França apoia implicitamente o general Khalifa Haftar, junto com os Emirados Árabes Unidos, o Egito e a Rússia, contra o Governo reconhecido internacionalmente pelas Nações Unidas..Na prática, Macron quer ter contactos com todos, desde os Emirados Árabes Unidos ao Qatar, passando pelo Egito ou a Arábia Saudita - aproveitando pelo meio para vender armamento ou aviões a quem os quiser comprar. Na Síria, o presidente francês chegou a defender servir de intermediário entre russos e norte-americanos, com posições contraditórias em relação a Assad..O grande adversário tem sido o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, com Macron a anunciar o envio do porta-aviões francês Charles de Gaulle para o Mediterrâneo Oriental em apoio à Grécia e a Chipre, que disputam com a Turquia a soberania de vastos campos de gás natural. Macron tem também aproveitado o recuo dos norte-americanos na região para tentar ganhar espaço.