Levantar a voz pela humanidade

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O impensável a que a Europa assiste desde as primeiras horas de dia 24 tem duração e gravidade ainda imprevisíveis e não faz sentido embarcar em exercícios de adivinhação. Há porém um par de efeitos que são reais e dignos de nota: a mobilização sem precedentes do mundo (quase todo) contra a guerra que a Rússia levou à Ucrânia e as portas abertas sem reservas aos que lhe fogem.

Das vigílias espontâneas às sanções e movimentações dos governos, da solidariedade das empresas aos gestos de cidadãos mais ou menos comuns - incluindo os milhares de russos presos em protestos contra a invasão e as mensagens dos tenistas Andrey Rublev e Daniil Medvedev -, a voz do apoio à Ucrânia engrossa de dia para dia. Não se fez ouvir quando Putin tomou a Crimeia, em 2014, nem se levantou enquanto Alexei Navalny foi denunciando a corrupção e a ambição que grassavam em Moscovo ou quando foi envenenado (como antes dele Alexander Litvinenko e outros) e mais tarde preso pelo Kremlin. Nem sequer ganhou força quando, ainda antes de avançar pela Ucrânia mas já fazendo prever o ponto de não retorno, a Rússia reconheceu as regiões separatistas de Donetsk e Lugansk.

Mas agora que finalmente se faz ouvir, já não há como calar um coro que se torna mais ensurdecedor todos os dias, mesmo com a consciência do risco nuclear. E se a voz do mundo ainda não é capaz de calar as explosões que ecoam pelas principais cidades ucranianas, tem certamente servido de forte pilar de suporte ao povo que Volodymyr Zelensky conduz na resistência, de alimento à coragem dos que se têm juntado à oposição a Vladimir Putin, de argumento e validação às instituições internacionais que se levantam contra as forças russas.

Por uma vez, há consenso e força na condenação da ofensiva liderada por Moscovo, com apoio de bielorrussos e chechenos - e com a China à espera de ver como se reequilibra a balança, conforme aqui ontem escreveu o diretor adjunto do DN, Leonídio Paulo Ferreira. Pela primeira vez desde há décadas, há na Europa consciência real e ao minuto da possibilidade bélica e do terror e desespero de quem se vê forçado a largar tudo para sobreviver, da angústia de saber o perigo que assalta quem é deixado para trás e da urgência de fazer o que for, por mais insignificante que possa parecer, para que o ataque termine e as suas vítimas sejam protegidas e compensadas. A mobilização mundial pode bem resultar no fim do mundo como o conhecemos. Mas há realidades com as quais não se pode viver mantendo a humanidade. É disso que a Europa está a ser recordada.

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P. S. Ontem morreu um homem bom. Inteligente, sério, com pensamento próprio, sentido de humor e gosto pela vida, muito mais focado no bem comum do que nos esquemas comezinhos e em ferroadas político-partidárias, Fernando Rocha Andrade preocupava-se pouco com o que dele pensavam desde que fizesse valer as suas crenças e valores. Ao mesmo tempo, assumia erros e responsabilidades de primeira e demonstrava uma lisura rara. Era um político como desejaríamos ter muitos mais. E vai fazer falta.

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