O que pensa a China sobre esta guerra? Demasiado cedo para dizer

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É costume falar da milenar sabedoria chinesa para explicar algumas das decisões da liderança de Pequim, por vezes até a calma com que as toma. E existe até a deliciosa resposta de Chu Enlai quando questionado sobre o que pensava da Revolução Francesa: "demasiada cedo para dizer". Tendo em conta que a conversa do primeiro-ministro de Mao Tsé-tung decorreu em 1972, durante a visita de uma delegação francesa, o episódio ganhou fama como exemplo do cuidado extremo chinês em evitar precipitações, sobretudo na avaliação dos grandes acontecimentos mundiais.

Escrevi há dias que de certa forma a China ganhava com a tensão entre o Ocidente e a Rússia provocada pela invasão desta última à Ucrânia. E sim, por um lado os Estados Unidos voltam a centrar as suas atenções na Europa, aliviando a pressão na região do Indo-Pacífico para contrariar a ascensão chinesa; por outro, a Rússia, alvo de múltiplas sanções económicas do Ocidente, fica mais dependente da aliança pós-Guerra Fria com a China, parceiro que também se assume cada vez mais como grande importador do seu petróleo e gás.

Mas estes ganhos chineses, por importantes que sejam, são de curto-prazo. A médio e longo-prazo os acontecimentos na Europa prejudicam a China, daí o desconforto da reação de Pequim até agora. A abstenção no Conselho de Segurança na resolução que condenou a Rússia é sintomática, pois não poderia vetar, como gostava Moscovo, nem apoiar, como ambicionariam Washington e as capitais amigas europeias.

São várias as causas do desconforto chinês com a invasão da Ucrânia, entre elas o contraste entre a ação dos russos e a política de Pequim contrária à ingerência nos assuntos dos países. Mas há uma vertente decisiva, a do impacto económico do embate que está a haver entre Moscovo e o Ocidente.

Desde as reformas económicas de Deng Xiaoping no final dos anos 1970, depois da morte de Mao, o comunismo foi-se desvanecendo na China e a grande fonte de legitimidade do Partido Comunista é hoje a sua capacidade para oferecer bem-estar aos 1412 milhões de chineses. O PIB multiplicou-se 175 desde que Mao proclamou a República Popular em 1949.

O abastecimento energético é vital para a China, venha da Rússia ou do Médio Oriente, mas vital também é ter uma economia mundial próspera, sobretudo a Ocidente, que compre os produtos chineses. Ora, não é certo que com tantas sanções à Rússia, sobretudo a União Europeia também não sofra consequências negativas. E além disso, para o seu projeto de nova Rota da Seda, o presidente Xi Jinping precisa que as mercadorias chinesas atravessem de comboio uma Eurásia em paz. Sem exportações em grande escala, o PIB chinês dificilmente se aproximará dos 10% anuais de crescimento de há poucos anos e será complicado manter satisfeito um povo que tem abdicado de liberdades em troca de riqueza.

Médio e longo-prazo em termos chineses significa o quê? Décadas? Já não. Aliás, o diplomata americano Chas Freeman, que era tradutor na época da suposta frase de Chu sobre 1789, confirmou já que tudo não passou de um mal-entendido: o político chinês comentava sim o Maio de 1968 em França. A China, apesar da longa história, aprendeu a reagir com a desenvoltura das grandes potências, o que não é sinónimo de pressa. Estejamos atentos.

Diretor adjunto do Diário de Notícias

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