"Alguém pode desejar correr o risco de contribuir para uma crise política? Só num grau de insanidade total"
É o político há mais tempo em funções executivas em Portugal - atravessou governos, esteve no poder local e fez alianças, que muitos consideravam improváveis, para liderar o país. Nem a maior crise sanitária, económica e social parece abalar os seus índices de popularidade. Nesta entrevista, publicada em duas partes hoje e amanhã pelo DN, o JN e a TSF, percorre os temas da política à saúde.
Há já a expectativa de se atingir a imunidade de grupo mais no início do que no final do verão. Qual é a linha a partir da qual admite a abertura total do país, discotecas incluídas?
Oficialmente, o plano de vacinação prevê que até ao final do verão atinjamos os 70% da imunidade de grupo através da vacinação. Há cenários mais otimistas que nos permitem admitir que consigamos chegar lá mais cedo, mas estamos muito condicionados pela produção e a distribuição de vacinas. A parte que nos compete - receção, armazenamento, distribuição, criação dos postos de vacinação rápida - está toda montada. Tivemos oportunidade de fazer o grande teste naquele fim de semana da vacinação dos professores, portanto estamos preparados. Se as vacinas chegarem ao ritmo que está previsto, conseguimos antes do verão. Mas convém sermos prudentes porque temos "n" fatores imponderáveis que não dominamos, devemos ser prudentes. Há um dado que é o mais relevante: no final desta semana conseguimos atingir a cobertura de toda a população com mais de 70 anos e no final do próximo mês atingiremos toda a população com mais de 60 anos. Porque é que isto é muito importante? Porque 96% das vítimas mortais tinham mais de 60 anos. Significa que conseguimos assegurar a vacinação ou, pelo menos, a primeira toma, do grupo de maior risco. Isso permite-nos encarar com outra confiança os riscos subsequentes, como a multiplicação das novas variantes que vão estar sempre a surgir. Esta é uma luta entre a velocidade da vacinação e a capacidade do risco de se irem multiplicando e fugindo à imunização que a vacina assegura.
Esse fator de segurança, essa confiança, permite-lhe acreditar que estamos mesmo a ver a luz ao fundo do túnel ou é cedo?
Uma coisa boa é que já sabemos que há luz do outro lado do túnel. Acho que estamos claramente numa fase de viragem de página. Temos conseguido manter a pandemia controlada, não obstante já termos concluído as fases de desconfinamento; temos o processo de vacinação a ganhar uma tração crescente; e temos, por outro lado, também o plano de recuperação económica entregue em Bruxelas, e contamos que ele possa ser aprovado na presidência portuguesa. Estamos aqui numa fase de viragem. Eu diria que o verão completará essa viragem e, se não houver novas surpresas que o vírus nos provoque, acho que podemos encarar a próxima reabertura do ano letivo como um momento de novo arranque geral da sociedade.
Acredita que já vamos ter um verão com vitalidade no turismo?
O turismo, no ano passado, teve uma quebra gigantesca, sobretudo na procura externa, mas teve um grande dinamismo na procura interna e, sobretudo, destinos turísticos que habitualmente são menos procurados tiveram crescimentos interessantes. As pessoas procuram zonas onde há menos aglomeração e há mais diferenciação. As zonas do interior, que têm oferta de turismo de natureza, tiveram um crescimento muito interessante no verão passado. Acho que não haverá a normalização do turismo à escala global seguramente antes de 2022/2023. Vai ser uma retoma progressiva, as pessoas vão ter ainda receios, pois o nível de vacinação não é o mesmo em todas as zonas do mundo. Portanto, uma coisa é a Europa, que acho que vai chegar ao final do verão com essa imunidade de grupo, depois há o resto do mundo. Toda a dinâmica da viagem, da confiança, isso vai infelizmente levar algum tempo a retomar, mas irá acontecer. Um país que foi por três anos consecutivos considerado o melhor destino turístico do mundo só tem razão para estar confiante quando a confiança voltar, pois o que nos fez ser o melhor destino turístico do mundo continua cá - a beleza de Lisboa, a beleza do Porto, a beleza da nossa natureza, das nossas praias, está cá tudo - portanto, eles voltarão.
O fim do estado de emergência pode dificultar o combate à pandemia. Se for necessário voltar a proibir a circulação entre concelhos, acredita que os instrumentos jurídicos são suficientes?
Temos adequado as medidas à gravidade da pandemia. O que tornou desnecessário manter o estado de emergência foi o entendimento de que, nesta fase da pandemia, as medidas mais constringentes e que poderiam não estar cobertas pela Lei de Bases da Proteção Civil e pela Lei de Saúde Pública já não eram necessárias. Algumas, como a proibição da circulação entre concelhos, são possíveis com base no quadro legislativo que está em vigor. Recordo que a primeira cerca antes do estado de emergência - a única cerca sanitária que foi imposta - foi a de Ovar. Entre setembro e janeiro adotámos sucessivas medidas de restrição, na fase do estado de calamidade, na fase do estado de alerta, etc. Tudo isso sem estado de emergência. As pessoas têm tido um enorme bom senso. Poucos casos têm ido a tribunal, mas todos os que foram a tribunal foram ganhos pelo Estado, as regiões autónomas não, mas o Estado sim. Portanto, acho que há uma grande consciência. Quando foi, logo no início, a retirada dos portugueses que estavam em Wuhan, os juristas fizeram uma enorme discussão sobre se era ou não possível aplicar, com base na Lei de Saúde Pública, o confinamento sanitário e os próprios assinaram voluntariamente uma declaração a dizer que aceitavam. Tinham consciência do risco que comportava para a saúde pública. As pessoas têm tido enorme bom senso e compreensão da situação.
E no futuro poderá haver decisões concelho a concelho, mesmo sem estado de emergência?
Naquela matriz que fixámos para regular as medidas de desconfinamento e de reconfinamento, houve concelhos que já tiveram de voltar para trás, quer há 15 dias quer nesta semana, e, porventura, no futuro, porque esta pandemia é dinâmica. As medidas previstas estão cobertas pela legislação, ou pela Lei de Bases da Proteção Civil ou pela Lei de Saúde Tública. Adotá-las-emos sempre que forem necessárias, embora o que desejamos é que não tenhamos de o fazer.
Admite puxar outra vez o travão de mão, que é uma expressão sua?
Sim, tão pontualmente quanto possível, mas sempre que necessário. Se há algo que toda a gente compreendeu foi que em janeiro fomos surpreendidos com a variante britânica e depois vimos as consequências. Ora, ninguém nos garante hoje que não haja uma variante britânica 2, Lisboa, Porto, Coimbra, não importa de onde, que, de repente, nos surpreenda. Temos de ter as medidas e a atenção necessárias para que, não obstante estarmos a avançar na vacinação e as pessoas estarem hoje mais conscientes dos perigos, não relaxemos. Porque se relaxarmos há uma coisa que é fatal e que sabemos: obviamente a pandemia volta a disparar. Temos conseguido, neste mês e meio, ir cumprindo o que eu designei de desconfinamento a conta-gotas sem que as coisas se descontrolem. A taxa de incidência esteve sempre a baixar, o R chegou a estar acima de 1, mas já esteve abaixo de 1 e já está agora no 1. Temos conseguido estabilizar a situação, e temos de conseguir manter-nos assim, mas para isso é fundamental que tenhamos cautela, porque se não tivermos é óbvio que volta a acontecer o que já aconteceu no passado. Disso ninguém tenha dúvidas.
Alguns empresários têm dificuldade em entender o porquê do teletrabalho? Como comenta? E a apreciação desta norma no parlamento poderá vir a pôr em causa o diploma do teletrabalho obrigatório face ao desconfinamento?
Espero que não ponham em causa essa norma porque nós temos de manter uma regra fundamental que é diminuir o máximo possível a circulação e contactos, condição essencial para controlar a pandemia. Houve atividades que nunca pararam, mas outras, felizmente, podem parar e contribuir para a diminuição do risco. Podíamos acabar com a obrigatoriedade do teletrabalho e manter a restauração fechada? Isso tinha um peso dramático para pequenas e médias empresas, e também para as pessoas. Para manter a capacidade de a sociedade resistir coletivamente a este esforço extraordinário, que todos têm feito, é preciso ir tendo umas válvulas de escape. Acho que devemos, tanto quanto possível, evitar as atividades e tudo aquilo que gere movimento e contactos. Essa é a regra.
Espera que o turismo volte a animar o Porto, Lisboa...
Há de voltar!
Acredita que o turismo é essa alavanca para a recuperação económica já neste ano?
Não acredito que este ano seja um ano em que o turismo seja uma grande alavanca da recuperação económica. Em segundo lugar, as alavancas que temos previstas para a recuperação económica são as que estão no Plano de Recuperação e Resiliência [PRR] e que passam, aliás, por outras atividades. Agora, o turismo é uma componente essencial da nossa base económica. Antes da covid até estava na moda ter algum desprezo, desconsideração, pela atividade turística, mas creio que este ano e tal demonstrou bem o que significa o turismo - o turismo não significa só rendimento para alojamento local. Se perguntar à indústria do agroalimentar, explicam-lhe bem que o canal Horeca teve um peso muito significativo na perda de rendimentos de milhares de agricultores em todo o país. O turismo tem a capacidade de puxar por um conjunto de atividades económicas.
Pode ser o turismo interno?
Mas o turismo interno também vive da construção dos estabelecimentos hoteleiros, da indústria dos móveis, que tem de existir para que haja esses estabelecimentos, e também consome.
Prevê incentivos à mobilidade?
O incentivo à mobilidade é um incentivo natural que existe - as pessoas estão ansiosas por se movimentarem.
Como estão as negociações para o passaporte sanitário europeu?
Não é o passaporte sanitário, é o certificado verde. Estão bem. Vamos conseguir aprovar muito rapidamente esse certificado verde e vai ser um elemento que favorecerá a circulação para as pessoas que já estão vacinadas, as que já estão imunizadas naturalmente porque já contraíram a doença e para as que fizeram teste e deu negativo. Isso ajudará a que alguns países não lhes exijam quarentenas.
Que mecanismos estão a ser criados para evitar a discriminação entre vacinados e não vacinados?
Os certificados não são para vacinados ou não vacinados. São para vacinados, para pessoas que já tiveram a doença e estão imunizadas naturalmente e é para pessoas que tendo realizado o teste têm um resultado negativo. São sobretudo para criar melhores condições. Alguns Estados só estão a exigir o teste, outros a exigir teste mais quarentena. O certificado ajudará muitos a que possam deixar de exigir a quarentena, que é o elemento mais dissuasor. Toda a população ativa não pode consumir as suas férias numa ida ao estrangeiro e o resto do período em quarentena. Portanto, é uma medida de agilização da circulação. Mas vamos ser realistas: acho que ninguém pode antever o que vai ser o verão. Este verão vai ser, com certeza, um pouco mais animado, mas não vai ser aquele verão que todos ansiamos voltar a ter com um crescimento grande da atividade turística. Esse poderá ser 2022, 2023 e por aí fora. Não sou daqueles que acreditam que a recuperação do turismo vai ser num crescimento rápido, acho que vai ser um crescimento relativamente consistente, mas mais ou menos lento, em função do controlo da pandemia a nível global.
As condicionantes na vacinação têm sido um problema das falhas contratuais. Admite que apesar do êxito inicial que a Europa conseguiu numa negociação conjunta, este processo acabou por se traduzir num falhanço?
Acho que é injusto dizer isso. Em primeiro lugar, porque, se não tivesse havido a compra conjunta por parte da Comissão, hoje as dificuldades que estamos a viver estariam multiplicadas por 27. Porque, para além de disputarmos as vacinas com outras regiões produtoras que não exportam, como é o caso do Reino Unido e dos Estados Unidos da América, estaríamos numa guerra entre os 27 para disputar as vacinas disponíveis no continente europeu. Ora, isso foi o que esta compra conjunta desde logo evitou. Para países de média dimensão como nós e para países mais pequenos isto é uma grande garantia. Provavelmente, se não tivesse havido essa compra conjunta por parte da UE, os cinco grandes países - Polónia, Alemanha, Espanha, Itália e França - tinham consumido o grosso das vacinas. Assim foi estabelecido um critério justo. Nem todos os países compraram a mesma percentagem das mesmas vacinas, e muitos países - porque eram mais baratas, investiram sobretudo nas vacinas da AstraZeneca - estavam e estão ainda com um atraso significativo no seu processo de vacinação. Foi possível até, na negociação complementar que a Comissão Europeia fez para a aquisição de mais 10 milhões de vacinas, termos conseguido, segundo a proposta da presidência portuguesa, assegurar uma distribuição que não fosse com base na população, mas que reservasse - para os países que tinham menos Pfizer e mais AstraZeneca - uma dose complementar para que todos os países tivessem, pelo menos, 50% da sua população vacinada durante o verão. Nós não podemos comparar o que aconteceu na Europa com o que aconteceu noutros países, porque os Estados Unidos e o Reino Unido, por exemplo, proibiram as exportações, e a Europa continua a exportar, designadamente a fornecer o mecanismo Covax que é o que assegura o abastecimento de vacinas aos países em desenvolvimento.
Este gesto de solidariedade da Europa não nos prejudica a nível internacional, uma vez que os países mais desenvolvidos têm um ritmo diferente?
Muito rapidamente iremos atingir o mesmo nível que eles. Os ingleses não exportaram, ao contrário do que a Europa tem feito, em segundo lugar, espaçaram muito o tempo entre a primeira e a segunda toma. Nós vamos chegar ao grau de imunização dos ingleses mais ou menos ao mesmo tempo do que eles - eles talvez com umas semanas de vantagem, mas pouco mais. A Comissão Europeia e, em particular, a presidente Ursula von der Leyen, poupou-nos a todos nós acrescentarmos a todos os problemas que têm existido mais um, que era andarmos entre nós à luta pelas vacinas.
Em relação a processos como o da AstraZeneca, que foi agora intentado, qual é a expectativa do que possa resultar em concreto para países como Portugal?
Em relação às questões jurídicas não vou falar. A CE acionou judicialmente a AstraZeneca. É manifesto que a AstraZeneca não cumpriu os contratos, isso é claro. Eles têm uma explicação, mas é uma explicação que verdadeiramente não justifica o incumprimento dos contratos. Eu próprio falei mais de uma vez com o CEO da AstraZeneca e os compromissos que foram assumidos não foram respeitados. É natural que quando há um incumprimento contratual a CE faça o que qualquer pessoa faz quando há um incumprimento contratual, que é acionar judicialmente.
As despesas excecionais causadas pela pandemia têm sido acomodadas. Quando será necessário submeter ao parlamento um Orçamento retificativo?
Continua a não estar no nosso calendário. Ainda recentemente, o ministro das Finanças disse que não é previsível a necessidade da existência de um Orçamento suplementar. No ano passado foi, como é sabido, porque o Orçamento do Estado que foi aprovado para 2020 não tinha o fator covid previsto. Este Orçamento para 2021 já foi preparado para um cenário covid. O primeiro trimestre consumiu muito dos recursos que estavam previstos, mas felizmente tudo se encaminha para não necessitarmos de mobilizar, no resto do ano, outros recursos. Neste momento não temos prevista a necessidade de recorrer a nenhum Orçamento suplementar.
Prevê ter de recorrer a um programa excecional para que as empresas regularizem as dívidas ao fisco e à Segurança Social, uma vez que muitas tiveram prorrogações?
Temos adotado vários programas à medida das nossas possibilidades para responder, quer às necessidades das famílias quer às necessidades das empresas. Temos uma estimativa de que no ano passado houve uma quebra de 15 mil milhões de euros no produto, e o conjunto dos apoios concedidos às famílias e empresas excedeu os 22 mil milhões de euros, ou seja, foi um apoio superior àquilo que foi a quebra do produto. Temos mobilizado todos os recursos que nos são possíveis. Evidentemente, nós não éramos ricos antes da covid - como sabemos - e não foi com a covid que enriquecemos. Não somos um país rico, não temos a capacidade de dar os apoios que um país como a Alemanha tem. Felizmente temos conseguido dar os apoios, pois tendo conseguido alcançar um excedente orçamental, tendo conseguido estabilizar e reforçar o sistema de segurança social, isso deu-nos margem agora para podermos agir. Se gostaríamos de agir mais? Gostaríamos com certeza. O facto de o PRR ser aprovado nos próximos meses e poder ser executado é um reforço complementar para a recuperação da atividade económica, sendo certo que todos os números indicam, felizmente, que o tecido económico resistiu bastante melhor do que aquilo que eram as previsões mais ou menos generalizadas. Significa que temos um tecido económico resiliente e preparado para esta fase da recuperação, logo que esta seja possível.
Tem alguma indicação sobre a conclusão da análise dos diplomas dos apoios sociais pelo Tribunal Constitucional?
Não, o Tribunal Constitucional não tem prazo.
Se a decisão não for favorável ao Governo, a criação de precedentes de coligações negativas com efeitos orçamentais põe em causa a governabilidade?
O problema não é haver coligações negativas, o problema é uma questão de equilíbrio da separação de poderes entre a Assembleia da República e o Governo. O nosso sistema político é um mecanismo de relojoaria fina - entre um semipresidencialismo, as competências do Governo, as competências alargadas da Assembleia da República. A existência da lei-travão é uma componente fundamental deste equilíbrio, porque, no fundo, é a existência da lei-travão que assegura a possibilidade de podermos ter governos minoritários em Portugal. Sem lei-travão só podemos ter governos maioritários em Portugal, por isso é uma lei muito importante para o funcionamento da nossa democracia. É muito importante preservá-la, mesmo quando as medidas adotadas pela Assembleia são medidas muito populares e, portanto, é muito impopular invocar a lei-travão. É dever do Governo e, designadamente, do primeiro-ministro, preservar e combater para preservar, em qualquer circunstância, aquilo que são elementos fundamentais do princípio da separação e interdependência de poderes.
Está preparado para uma decisão não favorável?
Não. Eu ficaria muito surpreendido se a decisão não fosse favorável porque a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem sido muito clara sobre essa matéria, e este é um caso claríssimo em que há uma violação da lei-travão. Há outros casos. Ainda recentemente a Assembleia aprovou um passo extraordinário que foi a revisão de uma carreira profissional. Bem sei que a situação é muito difícil, a pandemia põe-nos todos sob pressão, temos uma grande crise económica e social, mas convém toda a gente manter a serenidade e não subverter o nosso sistema de governo. Eu creio que ninguém deseja no futuro ter um sistema de Governo de Assembleia em que os sindicatos, em vez de virem negociar as carreiras profissionais e os aumentos salariais com o Governo, passem a ir negociar para a Assembleia da República. Seria um enorme sossego para o Governo, mas acho que seria um desastre para o país, para ser sincero.
Receia uma crise na negociação do próximo Orçamento do Estado?
Não. A única coisa que eu receio é mesmo o que possa acontecer com as variantes da covid. É mesmo a única coisa que receio.
Se o Orçamento não for viabilizado pondera demitir-se?
Acho que as pessoas têm todas bom senso. Há alguém em Portugal, perante uma pandemia, perante a maior crise económica que o país alguma vez enfrentou - ou, pelo menos, nas últimas décadas - e uma crise social brutal, alguém pode desejar correr o risco de contribuir para uma crise política? Só num grau de insanidade total. Esse cenário é puramente académico e especulativo que não pode ter adesão à realidade e que não a tem. O que eu tenho sentido, aliás, dos nossos parceiros é a total disponibilidade para continuarmos a trabalhar. Mesmo o Bloco de Esquerda, que não viabilizou o último Orçamento, já disse publicamente que quer as reuniões de trabalho connosco, que está disponível para voltar a sentar-se à mesa e a olharmos para o Orçamento de 2022.
Não só o PCP continuará a ser um parceiro privilegiado, como o Bloco de Esquerda acabará por se sentar à mesa das negociações?
Nunca excluímos ninguém da mesa das negociações, mas umas vezes chegamos a acordo e outras não. No ano passado, no Orçamento suplementar foi o PCP que não chegou a acordo; no Orçamento para 2021 foi o Bloco de Esquerda que não chegou a acordo. Eu tenho esperança de que em 2022 todos cheguem a acordo.
Parece um divórcio irreversível. Acredita que não?
Acho que não. Nem os divórcios, às vezes, são irreversíveis. Eu conheço casos de pessoas que se divorciaram e voltaram a casar-se anos depois.
Mas há linhas vermelhas que, por exemplo, Catarina Martins tem, nomeadamente as questões que dizem respeito a matéria laboral...
Cada um de nós tem linhas vermelhas. Não é por acaso que a esquerda é plural, não é por acaso que à esquerda existe o PEV, existe o Bloco, existe o PCP, existe o PS, existe parte do PAN... cada um tem a sua identidade própria. Agora, o sucesso destes anos de governação foi sempre termos compreendido que não valia a pena sequer tentarmos falar sobre coisas em que nunca haveria acordo e concentrar-nos, sobretudo, nos temas de convergência. Esse foi o grande sucesso da anterior legislatura, esse foi o sucesso do primeiro ano desta legislatura. Este segundo ano tem sido muito agitado e muito perturbado com toda esta pandemia. Acho que agora devemos - espero - regressar à normalidade, continuando a focar-nos no essencial. E o que é o essencial? É mantermos a pandemia controlada, acelerarmos a recuperação económica e a recuperação das várias coisas que se foram degradando no país. Temos de ter um programa de recuperação nas aprendizagens para as crianças e para os jovens atingidos pelo encerramento das escolas; temos de ter um programa de recuperação das listas de espera de consultas, de exames de diagnóstico, de cirurgias no Serviço Nacional de Saúde; temos de ter um processo de recuperação dos processos que se atrasaram na justiça. Quando conseguirmos erradicar a pandemia, a verdade é que as marcas ficam e exigem um esforço muito grande. As melhores previsões económicas dizem que só em 2022 poderemos voltar ao ponto em que estávamos em 2019, ou seja, três anos atrasados. Temos de conseguir recuperar isso e é também esse o objetivo do PRR - podermos chegar a 2026, não só recuperando a trajetória em que estávamos em 2019, como chegando mais longe do que estaríamos em 2026 se não tivesse havido o PRR. Portanto, há muito trabalho para fazer e muito pouco tempo para nos dedicarmos a crises políticas. Acho que nenhum responsável político se pode pôr em aventuras dessa natureza, e sou sincero, acho que os portugueses não o perceberiam. O que é que as pessoas querem? Querem, rapidamente, sentir segurança na sua vida com o controlo desta pandemia e depois querem recuperar aquilo que perderam. Temos mais umas dezenas de milhares de desempregados; temos centenas ou milhares de empresas que faliram; temos muitas pessoas que perderam rendimentos. Todas essas pessoas o que é que anseiam? Que os políticos façam guerras e abram crises? Não, o que querem é que os políticos trabalhem para recuperar desta situação. As pessoas percebem bem que esta crise é uma crise distinta das outras, que nasceu de um fenómeno natural e imprevisto. As pessoas percebem isso e esse tem sido um fator importante para que se aguente bem esta dificuldade horrível por que temos todos passado, mas há um momento a partir do qual está a pandemia controlada e deixa de ser a natureza a responsável, depois são mesmo os políticos os responsáveis. Não há aqui espaço para brincadeiras e crises. Temos é de nos sentar a trabalhar.
Já está normalizada a sua relação com o Presidente da República depois do desentendimento em relação aos diplomas dos apoios sociais?
Nós não temos de normalizar nada, porque não temos nada "anormalizado". Sabe que não pode acreditar em tudo o que lê nos jornais? [Risos] A relação com o Presidente da República tem sido normalíssima. A divergência, aliás, não é entre o Governo e o Presidente da República, é entre o Governo e a Assembleia da República. Esta entendeu que tinha competências para aprovar uma lei que, no entendimento do Governo, a Constituição não lhe permite aprovar. Colocámos a questão no Tribunal Constitucional e lá está. Não tem drama nenhum. Já no passado recorremos ao Tribunal Constitucional para impugnar leis aprovadas na Assembleia da República e que tinham sido promulgadas pelo atual Presidente da República. Estou a recordar-me de um caso que teve que ver com a colocação dos professores - um diploma que a Assembleia aprovou sobre a colocação de professores. Um diploma que custou milhões ao Estado e o facto de o Tribunal Constitucional não ter julgado a tempo e horas, como era seu dever, esse recurso do Governo. Não há nenhuma divergência com o Presidente, se quiser uma divergência, é entre o Governo e a Assembleia.
A convivência Belém-São Bento continuará pacífica e concertada?
Tem sido assim até agora e não vejo nenhuma razão para que não seja. A forma muito expressiva como os portugueses votaram na reeleição do professor Marcelo Rebelo de Sousa foi, seguramente, porque desejam um bom segundo mandato e fizeram uma apreciação positiva do primeiro. Ora, uma das componentes fundamentais desse primeiro mandato - creio que não faço uma interpretação abusiva disso - foi a forma como o presidente, Governo e parlamento conseguiram trabalhar harmoniosamente e com uma solidariedade institucional como eu creio que raras vezes deve ter havido em Portugal. Em particular, a relação entre o Governo e o Presidente da República tem sido sempre de uma grande proximidade. Temos estado sempre 100% de acordo? Claro que não. Não me recordo de, nestes seis anos, alguma vez termos estado numa posição inconciliável. Só tenho a desejar que assim prossiga até ao fim da legislatura.
Só terá a esperar do Presidente que continue a ser um suporte do Governo para a estabilidade?
São duas coisas distintas. O Presidente da República não é, não tem de ser, nem deve ser, um suporte do Governo. Até porque é o Presidente da República. O Governo depende e responde perante a Assembleia da República. Agora, é função do Presidente, como é função do Governo, como é função da Assembleia, contribuir para a estabilidade política; e um dever acrescido que nós todos temos de fazer numa circunstância como aquela extraordinária que estamos a viver, de pandemia, crise económica e crise social. O facto de Governo e Presidente serem de famílias políticas distintas não tem sido um óbice, pelo contrário, acho que tem sido algo positivo para a unidade nacional.
Com alguns ministros muito desgastados pela crise, admite renovar algumas pastas após o verão?
Não. Essa ideia de que muda-se ministras e ministros e todos os problemas se resolvem é uma ideia que, francamente, não faz sentido. Eu orgulho-me muito de que um dos fatores de estabilidade deste Governo seja traduzido também na durabilidade dos seus membros. Tivemos um ministro das Finanças - Mário Centeno - que deve ter sido a pessoa que esteve mais tempo consecutivamente nas Finanças desde o 25 de Abril; o ministro da Educação já bateu todos os recordes. É muito importante que aconteça. Bom, houve ministros que tiveram de mudar, por esta ou por aquela razão, e pode acontecer no futuro, mas não sou grande defensor dessas mudanças. Sabe que isto na política não pode ser como naquelas equipas de futebol em que se muda o treinador para dar uma chicotada psicológica, isto não é assim. Depois há, sobretudo, algumas pastas em que eu oiço muitas vezes coisas como "Ah, o ministro da Administração Interna isto e aquilo..." Eu já fui ministro da Administração Interna. Se for àquela galeria do corredor do ministério vê que está cheio de mortalidade política dos ministros da Administração Interna. O atual ministro já deve ser o segundo que dura há mais tempo. Essa coisa de dizerem que o ministro sai e a coisa muda, não muda. Há áreas da governação que são áreas sempre terríveis, são sempre áreas de fustigação permanente e isso não se resolve mudando de ministro, resolve-se, pelo contrário, com muita resiliência, muita persistência e fazendo o trabalho. Quem vem para o Governo tem de estar preparado para os dias bons, para ter aquelas pastas simpáticas onde sempre corre tudo bem e para estar naquelas pastas onde é sempre difícil, onde mesmo quando corre bem parece sempre correr mal.