Janeiro traz ótimas notícias para cinéfilos. Na mesma semana em que vão chegar às salas três filmes de Hong Sang-soo - A Mulher Que Fugiu, Mulher na Praia, O Dia em Que Ele Chega e O Filme de Oki - distribuídos pela Midas, a Cinemateca, que exibirá em antestreia o primeiro destes títulos (no dia 4), apresenta um ciclo de 11 obras sul-coreanas que abrem a porta ao período clássico de um cinema anterior ao reconhecimento de nomes, para além do referido Hong Sang-soo, como Kim Ki-duk, Park Chan-wook, Lee Chang-dong e, claro, o oscarizado Bong Joon-ho, realizador de Parasitas..Justamente, é este último quem numa entrevista à Criterion Collection, descreve a obra de arranque do presente ciclo, A Criada (dia 7), como "um melodrama, drama criminal e filme de terror". Tudo de uma só vez. Por estas palavras podia estar a falar do seu próprio Parasitas, mas é de um filme alucinante de Kim Ki-young que se trata. Hanyo (título original) começa com um breve diálogo entre marido e mulher, a partir de uma notícia de jornal sobre um caso de infidelidade, e atira-nos logo de seguida para dentro de um caldeirão de desejo sexual feminino e tensões de classe regados com veneno de rato... No centro de tudo está um professor de música casado que se vê primeiro afligido pelos avanços de uma aluna de piano, para depois cair na teia de sedução bem urdida pela criada, que não só engravida como instala uma ditadura doméstica levada aos limites da crueldade..Considerada obra-prima absoluta da cinematografia coreana - de novo, Bong Joon-ho chama-lhe o Citizen Kane do seu país -, e com um restauro apoiado pela World Cinema Foundation de Scorsese, Hanyo/A Criada é um primor de mise-en-scène, que não desperdiça qualquer sugestão visual. Atente-se, por exemplo, na cena em que a protagonista sobe as escadas com um copo de água (hipoteticamente com veneno), que nos remete para a força icónica daquela, no Suspeita de Hitchcock, em que Cary Crant leva a Joan Fontaine um copo de leite estranhamente iluminado. No filme de Kim Ki-young as escadas têm esse sentido de ameaça, mas são também símbolo da vontade de ascensão social..E é quase sempre uma consciência das idiossincrasias da sociedade sul-coreana que preside à narrativa dos filmes do ciclo. Enquanto título de 1960, Hanyo cristaliza motivos da vida moderna partilhados com outras obras dessa década que é a tida como a idade de ouro do cinema nacional, após o fim da Guerra da Coreia (1950-1953). Uma fase que, não obstante a censura, beneficiou o volume da produção cinematográfica. São desses anos Bala sem Destino (Obaltan, 1961), de Yoo Hyun-mok, um dos mais importantes retratos do pós-guerra; Seong Chun-Hyang (1961), A Mãe e o Hóspede (1961), Voto de Castidade (1962), todos de Shin Sang-ok; e Chuva Verde (Choyeon, 1966), de Jeong Jin-woo, um filme que, tal como Hanyo, põe o foco numa criada, desta vez para fazer uma crónica da juventude através da "aventura" citadina - com as questões de classe em fundo -, por vezes a evocar a flânerie parisiense de Corinne Marchand em Duas Horas na Vida de Uma Mulher (1962), de Agnès Varda..Numa visão holística, são notas melodramáticas que revestem estas obras. Mas dir-se-ia que, nesse aspeto, poucas atingem a intensidade de Sopyonje (1993), de Im Kwon-taek, um grande êxito de bilheteira sobre um cantor de pansori, a música tradicional coreana, que ensina aos dois filhos uma arte em extinção no mundo contemporâneo, levando-os pela estrada, numa vida de pobreza, como rigorosos intérpretes de outro tempo. É um olhar simultaneamente duro e comovente que dá conta de um lirismo fantasmagórico preso às vozes dos atores, sobretudo da jovem que leva ao ponto da exaustão o desejo de corresponder ao puritanismo artístico do pai..Por falar em tradição, também O Procurador e a Professora (1948), de Yoon Dae-ryong, surge na mostra como uma raridade, ainda no registo do melodrama, que usa uma antiga técnica de narração, o byeon-sa, para recuperar o espírito do cinema mudo coreano - a leitura, que descreve a ação, pensamentos das personagens e diálogos, foi feita por Shi-chul, o último narrador byeon-sa em atividade. De resto, um conto moral sobre a pobreza e a bondade que se pode emparelhar com o luminoso O Dia do Casamento (1956), uma comédia de enganos de Lee Byeong-il que troca aia e senhora num casamento arranjado, com final de conto humanizante..O ciclo simplesmente intitulado "Clássicos do Cinema Coreano", uma parceria entre a Cinemateca e a Embaixada da República da Coreia, é uma forma de assinalar o 60.º aniversário das relações diplomáticas com Portugal. Para os espectadores será um privilégio descobrir obras inéditas e determinantes para a perspetiva global sobre um certo cinema, hoje com vozes tão individuais..A Criada, de Kim Ki-young (dia 7, 20.00| dia 11, 15.00).Piagol, de Lee Kang-cheon (dia 8, 15.00 | dia 13, 15.00).O Procurador e a Professora, de Yoon Dae-ryong (dia 8, 17.30 | dia 12, 15.00).O Dia do Casamento, de Lee Byeong-il (dia 9, 15.00 | dia 14, 15.00).Bala sem Destino, de Yoo Hyun-mok (dia 9, 17.30 | dia 15, 15.00).Seong Chun-Hyang, de Shin Sang-ok (dia 11, 17.30 | dia 18, 15.00).A Mãe e o Hóspede, de Shin Sang-ok (dia 12, 20.00 | dia 19, 15.00).Voto de Castidade, de Shin Sang-ok (dia 13, 20.00 | dia 20, 15.00).Chuva Verde, de Jeong Jin-woo (dia 14, 17.30 | dia 21, 15.00).A Última Testemunha, de Lee Doo-yong (dia 15, 20.00 | dia 22, 20.00).Sopyonje, de Im Kwon-taek (dia 16, 17.30 | dia 23, 15.00)