"Estamos a lidar com uma maratona e ainda não sabemos qual a distância a percorrer"

A primeira coisa que todos querem saber é: quando poderemos regressar à vida normal? Para essa pergunta ainda não há resposta. A segunda é como acontecerá esse regresso. O pneumologista Filipe Froes e o médico e epidemiologista Henrique Barros respondem. E pedem contenção.
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Em meados de março, ou seja, há dez dias que parecem meses, tínhamos nós em Portugal acabado de encerrar todos os estabelecimentos de ensino, entrar em isolamento e dias mais tarde decretar o estado de emergência, da China chegavam notícias de que a vida regressava aos poucos à normalidade, após dois meses de quarentena obrigatória e rigorosa.

Uma reportagem da Al Jazeera dava conta desse regresso, relatando como as pessoas recomeçavam a sair à rua, as fábricas voltavam à laboração, as escolas reabriam, os restaurantes voltavam a ter clientes e os transportes públicos e a circulação dentro do país eram restabelecidos.

Quando os novos casos de covid-19, a doença que está a parar o mundo, se reduziram a zero ou pouco mais do que zero, as autoridades aliviaram as pesadas medidas de contenção da pandemia que infetou 81 470 pessoas na China e levou à morte de 3304. A vida vai regressando à normalidade, mas aos poucos, gradualmente, porque o problema está longe de ser resolvido e o medo de que novos surtos ocorram impõe a cautela.

É isso que o pneumologista Filipe Froes pede aos portugueses. Cautela e paciência, como a que têm demonstrado até agora. "Só quando os números de novos casos diários começarem a diminuir de forma sustentada e consistente é que poderemos começar a pensar em levantar algumas restrições, mas é fundamental manter a vigilância e as medidas de proteção, sobretudo relativamente à população de risco", diz o especialista, alertando para a possibilidade, e probabilidade, de uma segunda onda de casos surgir. "O regresso à normalidade deve ser visto com muita prudência. Estamos a lidar com uma maratona e ainda não sabemos qual a distância total a percorrer." Para Filipe Froes, só uma vacina porá fim à pandemia e até lá há que prevenir a ocorrência de novos surtos.

Na Alemanha, o quinto país do mundo com mais casos, mas com uma baixa taxa de letalidade (560 mortos em perto de 64 mil casos), cientistas do Instituto Helmholtz estão a elaborar um plano que consiste em testar regularmente mais de 100 mil pessoas para perceber se desenvolveram imunidade ao novo coronavírus. Se o plano tiver luz verde por parte das autoridades, os testes em larga escala começarão a ser feitos já no mês de abril, segundo o Der Spiegel.

De acordo com o epidemiologista Gerard Krause, citado pelo jornal, isto permitiria dar às pessoas com imunidade uma "espécie de certificado de vacinação, que as isentaria das limitações às suas atividades" e "os resultados do estudo tornariam mais fácil decidir a reabertura de escolas e a permissão para grandes eventos", por exemplo. A maior dúvida prende-se com a fiabilidade deste tipo de testes, que ainda não é segura. Uma questão que poderá estar resolvida em dois ou três meses e então será mais fácil determinar quem está imune e quem está em risco.

Testar massivamente poderá ser uma abordagem a médio prazo, mas na opinião de Filipe Froes, neste momento nenhum país tem capacidade para o fazer. "Estamos a falar de quase oitocentos mil casos oficiais ao dia de hoje, a nível global, em atividade, espalhados por cerca de 200 países e territórios. Nenhum país tem capacidade de fazer testes rápidos em larga escala porque o acesso a estes e a capacidade de produção dos mesmos é limitada. Importante agora é respeitar as medidas e as recomendações para alargar o intervalo entre ondas e ter o menor número de casos e mortes possível até à criação da vacina e de medicação eficaz. Se há uma lição a tirar desta pandemia é a de como é importante ter um Serviço Nacional de Saúde forte, bem equipado, com os meios e os profissionais de saúde necessários para assegurar os cuidados à população portuguesa e enfrentar situações extraordinárias como esta, que cada vez mais acontecerão."

O médico e epidemiologista Henrique Barros, que considera ficção científica falar neste momento de cenários futuros e de regresso à normalidade, garante no entanto, com uma margem razoável de certeza, que, atingido o primeiro pico, o pior já passou.

"Poderão acontecer outros picos, mas não terá nada que ver com o que se passa agora. Serão como uma réplica mais fraca de um terramoto. Estamos a atravessar a fase pior, tudo o que possa acontecer depois de termos atingido o pico e começarmos a descer terá uma dimensão menor, até porque entretanto já imensa gente infetou e haverá muito menos pessoas suscetíveis de ser infetadas", diz.

O que não significa que devamos baixar a guarda. Até porque as medidas de contenção adotadas para combater a pandemia, que passam pelo isolamento e o distanciamento social, implicam que muita gente não tenha sido exposta ao vírus, logo se mantenha vulnerável.

O epidemiologista explica quando é que uma doença, que neste caso atingiu a dimensão de uma pandemia, deixa de ser um problema. Quando o R0, que é o número básico de reprodução - o número de pessoas a quem cada doente transmite a infeção -, é menor do que um e vai decrescendo quer dizer que a infeção está a desaparecer.

"O R0 calcula-se de acordo com o número de casos novos que vão aparecendo na população. Neste momento ainda estamos a crescer, em Portugal. Chegará a 1, que é o momento em que atingiu a estabilidade, e depois começará a descer. A questão do pico é importante por isso, porque é o momento em que a doença começa a declinar. A partir dessa altura, podem ser aliviadas as medidas de contenção, mas é preciso fazê-lo com cuidado porque há muita gente em isolamento. E quando começarem a sair à rua pode já quase não haver infeção, mas a sociedade vai voltar a ser exposta a uma grande quantidade de pessoas que são suscetíveis e pode acontecer uma nova subida."

Henrique Barros recorre a uma imagem para explicar como se dá uma infeção. "Imagine que o infetado é um tipo que tem uma chave e os suscetíveis são portas. Se a chave dele encontrar fechaduras que não funcionam porque já estão blindadas, a infeção não progride. Ou seja, à medida que há mais gente infetada, encontra-se cada vez menos gente para infetar, até já não encontrar ninguém."

O grande problema, para o médico e para o mundo inteiro, é que ainda há muito por descobrir sobre o novo coronavírus. "Não sabemos exatamente como sobrevive, como é a sua relação com o hospedeiro, qual é o nível de transmissibilidade ou que sequelas deixa nas pessoas infetadas mesmo depois da recuperação. Não sabemos, porque só descobrimos este nosso amigo há três meses."

Daí que seja importante manter os cuidados e a vigilância quando for altura de regressar à vida normal. O que na opinião do médico deve manter-se mesmo quando existir uma vacina.

"O fundamental é que as pessoas saiam disto com a consciência do que têm de fazer para se proteger e proteger os outros. Temos de voltar à vida normal lavando mais as mãos, não andando a tossir para cima dos outros e não indo trabalhar doente, por exemplo, para dizer que somos muito trabalhadores. Se incorporássemos esses hábitos nas nossas rotinas e formas de estar, morreriam muito menos de três mil pessoas por ano com gripe em Portugal. É importante ter a consciência de que, no fim disto tudo, se tivéssemos o azar tremendo de tudo correr muito mal, mesmo no pior cenário, se calhar não morreria tanta gente de covid-19 [neste curto espaço de tempo] como num ano morre com gripe - três mil pessoas -, que é uma doença evitável, para a qual existe vacina", diz Henrique de Barros.

"Mas não me interprete mal, não estou a desvalorizar a covid-19, que é uma doença gravíssima, com uma transmissibilidade altíssima, muito mais alta do que a gripe, porque é provocada por um vírus novo em relação ao qual não existe memória imunitária ou imunidade de grupo, e que tem um efeito brutal de sofrimento nas pessoas, sobretudo nas mais velhas. Acho muito bem que não seja desvalorizada."

O problema para o epidemiologista é o contrário: "Desvalorizamos excessivamente a gripe, que é prevenível, para a qual existe vacina e mesmo assim deixamos morrer tanta gente, sem qualquer alarme social, e isso é que é inaceitável", diz Henrique Barros, chamando a atenção para a necessidade de não baixar a guarda relativamente à covid-19, nem num futuro em que exista vacina.

"A medicina preventiva é aquela em que se investe menos, mas é de uma importância fulcral para que pandemias como esta sejam evitadas. A valorização e a comunicação do risco muda a perceção das pessoas, e é essencial que essa perceção seja mantida mesmo depois de o pior ter passado."

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