O futuro da economia mundial continua embrulhado na incerteza que vai alicerçando os avanços e recuos de Donald Trump numa guerra comercial que abalou os mercados financeiros e fez disparar os alarmes ao redor do globo. A política protecionista da Casa Branca fragilizou a confiança de investidores e castigou o dólar num novelo de volatilidade que pautou as últimas semanas. O mundo está em alerta e somam-se as retaliações. A pausa de 90 dias nas tarifas recíprocas anunciadas dá força ao quadro instável e à imprevisibilidade do Presidente norte-americano. As consequências vão-se vislumbrando, em terreno movediço, e os estilhaços alastram-se a várias geografias e setores. Por cá, o turismo não tem dúvidas de que será arrastado na onda das repercussões indiretas. Os vários especialistas, economistas, académicos e representantes do setor ouvidos pelo DN assumem-se apreensivos e antecipam um “cenário preocupante” com “efeitos significativos” que poderão beliscar as várias franjas da atividade. Em última análise, uma retração da procura de turistas oriundos dos Estados Unidos poderá traduzir-se num rombo de vários milhões de euros no saldo da balança comercial e não é certo que os restantes mercados emissores consigam compensar esta fatia. “Os impactos indiretos podem ser bastante significativos. A economia norte-americana passa de uma taxa de crescimento sólida para uma estagnação, no melhor dos casos, estando iminente um risco de recessão. O mercado de trabalho será afetado e prevê-se uma subida da taxa de desemprego. Somam-se a inflação e a desvalorização do dólar que irão retirar poder de compra a estas pessoas, o que afetará os planos de viagem. Espera-se um adiamento das decisões de despesas não essenciais e os encargos com lazer e viagens são sempre os primeiros a serem cortados”, explica o economista da Oxford Economics, Ricardo Amaro. Com estas famílias mais apreensivas, defende, é expectável que a partir do verão já sejam sentidos os efeitos no país. Pedro Celeste, professor da Católica-Lisbon, corrobora que “a imposição de tarifas, o aumento das taxas de juro e as medidas de incentivo ao turismo doméstico nos Estados Unidos podem reduzir o fluxo de viajantes internacionais”. “As consequências podem ser significativas, especialmente nos segmentos premium, cultural e urbano, principalmente nas regiões de Lisboa, Porto, Douro e Alentejo. Em média, os turistas norte-americanos gastam mais por visita do que outros mercados. Um recuo da sua procura pode ter impactos diretos na receita turística nacional, com efeitos em cadeia na hotelaria, restauração, transportes, retalho de luxo e cultura”, detalha o também diretor do programa Gestão do Turismo. A economista Vera Gouveia Barros considera a conjuntura “preocupante para o setor”. “Sendo o turismo uma atividade económica muito importante para o país e sendo os turistas norte-americanos bastante relevantes, uma quebra abrupta neste mercado pode fazer-se sentir no nosso crescimento económico, prejudicando-o”, aponta. O turista norte-americano não é apenas um visitante, é o cliente ideal que convém a Portugal manter, desde logo pelo elevado poder de compra. “A importância deste mercado para o país é altíssima. Os turistas norte-americanos gastam, em média, mais de 200 euros por dia, com estadias mais prolongadas e uma maior abertura à aquisição de serviços diferenciados”, frisa Pedro Celeste..Confiança cai.Para já, ainda não é possível calcular ao cêntimo a potencial quebra que estará subordinada a um rol de fatores, referem os economistas, mas olhando para as contas, adivinha-se um vazio de vários milhões de euros caso os aviões provenientes do outro lado do oceano comecem a aterrar mais vazios. No ano passado, os turistas norte-americanos deixaram por cá um cheque de 2,9 mil milhões de euros em receitas turísticas, o que se traduz um crescimento de 13,9% face a 2023, superando a média global dos mercados emissores, de acordo com os dados do Banco de Portugal - ou seja, 11% no bolo total das receitas do setor em 2024, que atingiram um recorde de 27,7 mil milhões de euros. O apetite desta nacionalidade pelo território nacional tem sido pujante com os principais indicadores a firmar recordes consecutivos. Ainda numa análise às contas do ano transato, com base na informação do Instituto Nacional de Estatística (INE), os Estados Unidos posicionaram-se como o terceiro maior mercado emissor em número de hóspedes (2,3 milhões, +11,7%), apenas atrás do Reino Unido e da Alemanha, e o quarto em dormidas (5,2 milhões, +12,1%). Os números que chegam de fora caem como um balde de água fria no setor, adensando o clima de preocupação. Dados da American Society of Travel Advisors, citados pelo The New York Times, dão conta de que 54% dos associados (profissionais de turismo) relatam uma quebra na procura dos consumidores motivada pelas preocupações económicas. O mesmo jornal indica que o índice mais recente de confiança do consumidor da Conference Board caiu para o nível mais baixo em 12 anos, impactando a procura por viagens. Também os resultados do inquérito da consultora norte-americana Future Partners afinam pelo mesmo diapasão, concluindo que mais de metade dos viajantes do país (52,1%) espera uma recessão económica nos próximos seis meses. A bitola do otimismo desceu, com os inquiridos a refrear os planos de viagem para os próximos 12 meses e encurtar os orçamentos para as férias que se fixam, agora, no nível mais baixo dos últimos sete meses ..Preocupação e incerteza.Para a representante da hotelaria portuguesa, e apesar da trajetória positiva nos últimos anos deste mercado, não há dúvidas de que, perante um clima de incerteza e de inflação será preciso “apertar o cinto” o que se traduzirá em menos gastos em “despesas supérfluas”. “A manterem-se as atuais previsões este não será um cenário feliz nem para a Europa, nem para Portugal”, lamenta a vice-presidente executiva da Associação da Hotelaria de Portugal. Cristina Siza Vieira alerta que a juntar à retração da procura surge a questão reputacional. “Os norte-americanos sentem que já não são tão bem vistos na Europa como até aqui e temem esta má reputação”, sublinha. Na restauração é esperado “um impacto relevante” caso estes turistas deixem de aparecer, principalmente em estabelecimentos do segmento médio-alto a alto. “Uma quebra neste fluxo turístico pode refletir-se diretamente na redução de receitas destes espaços, afetando também toda a cadeia de valor associada, como produtores locais, distribuidores e pequenos fornecedores”, antevê a secretária-geral da Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (AHRESP), Ana Jacinto. Já a Associação Portuguesa das Agências de Viagens e Turismo (APAVT) é perentória na análise: “a incerteza é inibidora da procura”. “O turismo será afetado e haverá menos turistas norte-americanos este ano. É, portanto, um cenário preocupante”, admite o presidente Pedro Costa Ferreira..TAP pode ter de reduzir oferta.Os desafios são transversais a toda a cadeira que compõe o turismo e, em primeira instância, o impacto será sentido nos aviões. “Existem três elementos da política de Trump que estão a afetar o transporte aéreo nos Estados Unidos: os cortes governamentais aplicados logo no início do ano que se fizeram sentir nos orçamentos de viagens e que já levaram algumas companhias a reajustar a sua rede de voos domésticos e a rever em baixa as suas previsões de lucro; as declarações públicas inamistosas relativamente ao Canadá que originaram o cancelamento antecipado de alguns voos transfronteiriços e que representam cerca de 320 mil lugares a menos; e agora o “dia da libertação” que gera um clima de tensão e desconfiança com o resto do mundo e que, consoante a trajetória do dólar, poderá afetar a procura dos turistas norte-americanos para a Europa”, afirma Pedro Castro. O diretor da SkyExpert, empresa de consultoria de transporte aéreo, aeroportos e turismo afiança que embora não exista outro mercado com escala semelhante à do norte-americano, é imperativo que Portugal aposte na diversificação e reforce a aposta noutros países como o Canadá.Entre janeiro de 2024 e janeiro de 2025, a TAP foi a companhia aérea que mais passageiros transportou a partir dos Estados Unidos, com uma quota de 28,8%. Para o especialista, a transportadora de bandeira poderá enfrentar desafios com a atual conjuntura. “Há uma dupla exposição: à desvalorização do dólar e à quebra da procura do lado de lá. Se esta situação se prolongar, os impactos poderão incluir, por exemplo, a redução da capacidade em termos de frequências e o o abandono de rotas - como as as diretas do Porto ou as mais longas e mais custosas”, exemplifica..Diversificar mercados.Apesar das nuvens cinzentas no horizonte, o setor diz-se pronto para arregaçar as mangas e começar a antecipar alternativas. ”Substituir totalmente o mercado norte-americano é difícil. O poder de compra americano é difícil de ser equiparado. No entanto, uma diversificação bem-sucedida pode reduzir o impacto de uma eventual retração. Mercados como o Canadá, Suíça, Emirados, Coreia do Sul ou Singapura têm potencial semelhante no segmento de luxo”, indica Pedro Celeste. Para Rita Marques, diretora do Executive Master Tourism Management e diretora do Tourism Futures Center do Innovation X Hub da Porto Business School, este cenário ”também representa uma oportunidade para Portugal: o de atrair americanos que desejem viver ou passar temporadas fora dos Estados Unidos, procurando países seguros, acolhedores e com bom custo-benefício “. Para a também antiga secretária de Estado do Turismo a flexibilidade na oferta é uma vantagem estratégica. “Parcerias com operadores norte-americanos, promoções segmentadas e pacotes que combinem gastronomia ou bem-estar poderão ser especialmente eficazes. A personalização será também aqui essencial”, assegura. A economista Vera Gouveia Barros coloca a tónica na desconcentração de mercados como estratégia a seguir. “Era bom se os três maiores mercados emissores do país não representassem quase 40% dos hóspedes estrangeiros, mas já estivemos mais dependentes. Temos procurado diversificar e a importância que os Estados Unidos têm hoje no nosso turismo é o resultado disso”, nota. Por fim, Ana Jacinto assume que é “fundamental que o Governo tome medidas”. “Já são conhecidas algumas, mas é absolutamente crucial que essas medidas sejam ágeis e de simples adesão para que, de facto, consigam mitigar os eventuais efeitos negativos”, pede..Raio-X aos turistas norte-americanos: os 'big spenders' que procuram o luxo da cama à mesa