A iRobot, a empresa que transformou o nome Roomba num sinónimo global de aspiradores inteligentes, capitulou. Ao declarar esta semana a insolvência (o chamado Chapter 11, nos EUA), a empresa admitiu a derrota financeira, mas também acabou por fazer com que um dos ativos mais sensíveis da era digital - dados privados, no caso, os mapas detalhados do interior de milhões de casas - passem para o controlo de uma entidade chinesa.Isto porque a “salvação” da empresa norte-americana chega através de uma manobra financeira liderada pela Picea Robotics, a sua principal fabricante e agora maior credora. Ao abrigo de um acordo de reestruturação, a Picea assumirá 100% do capital da iRobot em troca do perdão de uma dívida de aproximadamente 264 milhões de dólares (cerca de 250 milhões de euros), que inclui empréstimos não pagos e faturas de produção em atraso. Este movimento permite à marca Roomba continuar a operar, mas obriga-a a sair da bolsa de valores Nasdaq e a tornar-se uma empresa privada totalmente controlada a partir de Shenzhen, eliminando qualquer valor para os atuais acionistas.Um arquivo histórico de interiores sob olhar chinêsO potencial problema que assim se cria é o da posse e utilização dos dados acumulados durante décadas, entre aqueles captados pelos modelos de aspiradores mais recentes, que utilizem LiDAR para mapear o interior das casas, e os milhões de utilizadores de aspiradores mais antigos. Durante anos, os Roombas de gamas altas - como o Roomba 980, o i7+ ou o s9+ - utilizaram câmaras para a tecnologia vSLAM, que fotografavam o interior das habitações para criar plantas precisas e identificar objetos. Todo este histórico de imagens e mapas detalhados de onde as pessoas dormem, comem e vivem está agora em trânsito para servidores sob jurisdição chinesa.Até agora, a iRobot era o “padrão-ouro” da indústria. Foi a primeira empresa de robótica de consumo a receber a marca Cyber Security Mark da TÜV SÜD e a cumprir rigorosamente a norma europeia ETSI EN 303 645, certificações que garantiam que os dados eram encriptados tanto no envio como nos próprios servidores da “nuvem”, sendo a privacidade incorporada no código fonte. Mas com a passagem para a Picea Robotics, estas garantias tornam-se, na melhor das hipóteses, irrelevantes. Isto porque uma auditoria feita a uma empresa americana não tem validade sobre as práticas de uma empresa privada em Shenzhen.Além disso, sob a Lei dos Serviços de Informações Nacionais da China (2017), qualquer empresa chinesa é legalmente obrigada a cooperar com o trabalho de recolha de informações do Estado. Na prática, se o governo chinês solicitar acesso a este arquivo de imagens domésticas por questões de segurança, a Picea não tem base legal para recusar. Para Pequim, isto é uma ferramenta de vigilância e de avanço massivo na “IA Física” (Embodied AI), permitindo compreender os hábitos e os ambientes privados ocidentais como nunca antes.A batalha perdida no mercadoA insolvência da iRobot não se deveu a falta de ideias ou de inovação, mas a uma incapacidade de convertê-las em vendas num mercado inundado por alternativas chinesas “baratas”. Nos últimos tempos, a marca norte-americana tentou distanciar-se da concorrência com soluções de engenharia complexas e dispendiosas. O exemplo mais flagrante foi o Roomba Combo j7+ e o sucessor j9+, com a sua mopa basculante que se eleva e guarda no topo do aparelho para não molhar tapetes. Inovador, mas não extremamente eficaz a remover sujidades do chão, quando comparado com as mopas rotativas.Mais recentemente, com o Roomba Combo 10 Max, a empresa tentou introduzir conceitos ainda mais avançados, incluindo sistemas de braço robótico capazes de detetar e remover pequenos obstáculos do caminho. No entanto, estas inovações vieram com um preço “premium” que os consumidores não quiseram pagar. Marcas como a Roborock ou a Dreame ofereceram funcionalidades parecidas a uma fração do custo. Em suma, enquanto a iRobot focava em hardware sofisticado e privacidade, a concorrência chinesa focava-se na escala e na agressividade de preços, esgotando as reservas de caixa da pioneira americana.Como a regulação agravou o problemaA ironia de toda a situação é que este desfecho foi acelerado pelas agências que diziam proteger os consumidores. Em 2022, a Amazon propôs comprar a iRobot por 1,7 mil milhões de dólares. No entanto, a FTC (a Comissão Federal do Comércio) dos EUA e os reguladores da UE bloquearam o negócio, temendo que a Amazon utilizasse os dados dos Roombas para dominar o mercado da casa inteligente e pusesse em risco a privacidade dos utilizadores.Já esta semana, o cofundador da iRobot Colin Angle classificou, em declarações à imprensa internacional, a decisão como “equivocada” - e estava nitidamente a conter-se nas palavras. Ao impedir a fusão com uma gigante americana para “proteger a privacidade”, os reguladores removeram o único balão de oxigénio da iRobot. Sem o capital da Amazon, a empresa foi asfixiada, acabando por ser entregue exatamente a quem os reguladores americanos deveriam ver como uma ameaça estratégica à sua soberania.Também o CEO da Amazon, Andy Jassy, reforçou este sentimento, notando que os reguladores parecem “confiar mais nas empresas chinesas com os mapas das casas dos consumidores do que na própria Amazon”.O futuro sob a Picea RoboticsA Picea Robotics (também conhecida como 3irobotix) é uma espécie de “empresa fantasma” que já produz hardware para marcas como Shark e Eufy. Ao assumir o controlo total da iRobot, a Picea adquire não só as patentes do MIT (Massachusetts Institute of Technology) que a iRobot detém, mas também a confiança que milhões de consumidores depositaram num sistema que era certificado como seguro.Para quem tem uma Roomba e utiliza a aplicação da mesma para gerir a inteligência do seu lar, há aqui um sinal de alerta. Embora a app continue a funcionar, o selo de confiança da iRobot foi virtualmente rasgado. A partir de fevereiro de 2026, quando a transição terminar, a privacidade do interior das casas deixará de estar protegida por auditorias internacionais transparentes, para passar a estar guardada num cofre privado em Shenzhen, sob as regras de uma potência tecnológica que joga com as suas próprias leis. O que acontecerá a esses dados ficará atrás de uma grande muralha chinesa de opacidade quase total..China vs Japão: a história pesa muito.Produção industrial da China cresceu 4,8% em novembro