Portugal está desalinhado da UE nas leis laborais. Reforma em curso vai aproximar

Portugal está desalinhado da UE nas leis laborais. Reforma em curso vai aproximar

Algumas das propostas mais polémicas estão alinhadas com a UE. Menos consensual é prolongar contratos a prazo no país que é campeão no seu uso e tem despedimento individual mais difícil do Ocidente.
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É altamente impopular, motivou a primeira greve geral em doze anos e já terá custado uns pontos na popularidade do Governo, a crer nas últimas sondagens da semana passada. Se para uns, o anteprojeto de reforma laboral é um “retrocesso civilizacional”, como é o caso de CGTP, PCP e PS, há também quem o coloque alinhado com as práticas de uma boa parte dos países europeus mais prósperos, a começar pelo Governo, mas também economistas e especialistas no tema. Afinal, até que ponto as medidas mais polémicas do pacote laboral são singularidades deste Governo ou estão normalizadas no espaço europeu com que nos comparamos? E será que são mesmo fatores de produtividade?

“Eu diria que Portugal é que está desalinhado do resto do mundo nesta matéria. É mais difícil encontrar países que não tenham o banco de horas ou a possibilidade de não reintegrar um trabalhador despedido sem justa causa, se compensado financeiramente, do que o contrário”, observa David Carvalho Martins, advogado especialista em Direito do Trabalho e professor convidado do ISEG, em declarações ao DN. Por isso, o advogado que é também árbitro presidente do Conselho Económico e Social, considera “manifestamente exagerada a reação ao anteprojeto”.

Com efeito, a pretendida reposição do banco de horas (revogada na última revisão de 2023 pelo PS) vigora em países como a Espanha, Alemanha, Reino Unido, Irlanda, França ou Países Baixos, entre outros, segundo o DN concluiu de uma consulta aos diferentes sistemas. O mesmo se pode dizer, para os mesmos países, mas também Áustria ou Suíça, da possibilidade de o empregador recusar a reintegração de um trabalhador despedido sem justa causa, determinada pelo tribunal, desde que o compense financeiramente.

Essa possibilidade já existe na lei atual, mas apenas para as microempresas, querendo o Governo estendê-la agora às PME até 200 trabalhadores. (Já terá havido entretanto abertura para se ficar apenas pelas pequenas empresas, face à resistência manifestada pelas centrais sindicais).

“O nosso sistema é mesmo o mais garantístico dos sistemas ocidentais, no que diz respeito ao despedimento individual”, considera David Carvalho Martins. Porquê? “Na maioria dos países, a reintegração só é imposta pelos tribunais em casos limite, quando está em causa, por exemplo, o despedimento de grávidas, mães de licença ou em situações de assédio, discriminação racial ou outras”, sendo que o mecanismo de compensação é a regra. Embora a reintegração esteja prevista no ordenamento jurídico dos países europeus, a indemnização é a prática mais comum, atendendo a que muitas vezes a relação de trabalho fica irremediavelmente danificada, sobretudo em empresas de menor dimensão.

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David Carvalho Martins também atesta esta realidade: “Nos últimos dez anos de casos em tribunal só assisti a uma reintegração. Por uma questão jurídica formal, o trabalhador que foi despedido por assédio sexual acabou readmitido e agora a vítima tem de continuar a trabalhar ao seu lado”. Na maior parte das vezes, “a reintegração é apenas usada como uma forma de pressão para a empresa aumentar o valor da indemnização a pagar”, contextualiza o advogado.

Sobre este tema, Pedro Brinca, economista e professor na Nova School of Business & Economics, também reitera que, segundo a OCDE, “Portugal tem a terceira legislação mais rígida para o despedimento individual e a 6ª mais restritiva para o despedimento coletivo, numa lista superior a 30 países” que constituem a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico. E, talvez não por acaso, também tem a terceira maior percentagem de contratos a termo da OCDE.

(Há quem aponte, no entanto, a flexibilidade permitida pelo regime de Lay Off). Em declarações ao DN, o economista, que foi cabeça de lista da Iniciativa Liberal por Coimbra, considera que, “infelizmente, muita da discussão em torno da reforma laboral é focada só na letra da lei e não no benefício que a flexibilidade também pode trazer”.

É igualmente essa a leitura de Pedro Martins, Professor catedrático da Nova SBE e ex-secretário de Estado do Emprego do Governo de Passos Coelho: “A legislação laboral portuguesa está muito desligada dos principais padrões europeus”. Admitindo que é uma questão sensível e delicada, Pedro Martins defende que “se há muitas restrições para despedir, as empresas retraem-se a contratar ou então optarão pelos regimes a termo, que é o que acontece em Portugal, o que acaba por ter um custo grande em termos económicos e sociais”.

Um desses custos é o de “impedir os projetos de parentalidade dos jovens”, e uma grande assimetria entre os rendimentos dos trabalhadores a termo e os sem termo, assinalou. Aquele economista e consultor da Comissão Europeia em matérias laborais, é defensor da ‘flexigurança’, modelo que assenta em maior flexibilidade laboral e proteção no desemprego, que é uma receita defendida por Bruxelas para aumentar a competitividade. Pedro Martins sustenta ainda que “os setores onde é mais usada a contratação a termo estão a apresentar maior dinamismo, mas, infelizmente são setores de menor produtividade, como é o caso da construção, restauração ou agricultura”.

Uma reforma mal calculada

Sobre a possibilidade, que o Governo quer repor, de recorrer a outsourcing logo após um despedimento coletivo, e que também é rejeitada pelos sindicatos, Pedro Brinca considera-a “do mais elementar bom senso”, sublinhando a sua visão mais liberal. É “ridículo” querer impedir as empresas de tomarem boas medidas de gestão que as tornem mais eficientes, podendo contratar empresas especializadas em áreas que não dominam, e isso pode acontecer desde os serviços de limpeza aos de informática. “Uma empresa menos restringida pode criar mais riqueza”, diz.

Quanto a este ponto, a possibilidade de outsourcing existe em vários outros países, mas, às vezes, também com regras mais apertadas, idênticas às que vigoram atualmente em Portugal. Em Espanha, por exemplo é permitido recorrer a outsourcing para satisfazer necessidades que eram previamente asseguradas por trabalhadores cujos contratos cessaram, por despedimento coletivo ou por extinção do posto de trabalho, mas apenas um ano depois.

Apesar de todo o ruído causado pelo anteprojeto e uma elevada taxa de rejeição, “não se pode dizer que seja sequer uma grande reforma ou uma mudança de paradigma”, condidera Pedro Brinca. Os economistas ouvidos pelo DN concordam que “a apresentação da ideia foi mal calculada e que o alarme social que gerou é desproporcional ao teor da legislação”.

Mas, “há um problema de abordagem, esta reforma é demasiado ampla, o que faz com que tenha falta de foco e é difícil perceber quais são as vantagens”, critica o professor do ISEG e especialista no tema, Amílcar Moreira, em declarações ao DN. O economista aponta ainda o “desequilíbrio” do documento ao propor praticamente só mudanças menos favoráveis aos trabalhadores. Sobre o polémico banco de horas, Amílcar Moreira chama a atenção para o facto de os resultados para os trabalhadores serem muito diferentes, dependendo dos setores e funções que exercem, admitindo que em certas atividades, o banco de horas pode colocar o trabalhador em desvantagem, se não tiver capacidade negocial para aderir voluntariamente.

Do mesmo modo, o investigador também considera que com a extensão do prazo de contratação a termo de dois para três anos, Portugal “dá um sinal para o exterior de que valoriza pouco o capital humano”. Na UE, o máximo de dois anos é uma regra numa boa parte dos países, renovável até três vezes, sendo que também há países com prazos mais estendidos. Se na Alemanha a extensão pode ir até aos quatro anos em empresas novas com menos de quatro anos, em Espanha, por exemplo, o regime é mais restrito que em Portugal e tem de ser bem fundamentado.

Mas, afinal, as medidas propostas contribuem ou não para o aumento da produtividade pretendido pelo Governo? “A única medida que maximiza realmente a produtividade do capital humano é o banco de horas individual”, considera Amílcar Moreira, no que é acompanhado por Pedro Brinca.

Amamentação mais favorável do que em Espanha

Como pontos positivos, Amílcar Moreira destaca a proposta de introduzir alguma regulação aos trabalhadores das plataformas digitais e maior igualdade entre homens e mulheres na licença da maternidade. Sobre a ideia de introduzir limites ao horário de trabalho reduzido para amamentação , as medidas propostas pela ministra do Trabalho também estão em linha com o que acontece em vários países europeus, incluindo a França, conhecida por ter dos regimes mais favoráveis às mães.

As mulheres francesas têm direito a duas horas por dia (tal como será mantido em Portugal), enquanto durar a amamentação, durante um ano, com remuneração pela Segurança Social, sendo que o período pode estender-se, mediante comprovação médica após um ano. Em Espanha, as condições são mais desfavoráveis do que as que vigoram em Portugal, tanto na lei atual como no anteprojeto. As mães ou pais só têm direito a uma hora por dia (ou duas pausas de 30 minutos) e apenas até o bebé completar 9 meses (em Portugal não há limite), podendo ser dividida ou usada para entrar mais tarde/sair mais cedo, e pode ser acumulada em dias completos se acordado com o empregador.

Sobre este ponto, o advogado David Carvalho Martins considera que o foco inicial da ministra Rosário da Palma Carvalho esteve errado ao esquecer que em causa está não tanto a amamentação em si, mas o tempo das mães com os bebés, que é essencial. Mas também reconhece que o ónus financeiro dessas garantias deve recair não nas empresas, mas na Segurança Social, por exemplo, através de regimes de trabalho a tempo parcial. O Governo quer limitar a licença de amamentação a dois anos e sujeitá-la a apresentação de um atestado comprovativo, inicialmente, ao fim de seis meses, e agora já aceitou o prazo de um ano.

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