Há na Casa Museu da José Maria da Fonseca, em Azeitão, uma ementa de um jantar dos Cavaleiros de Malta, no final do século XVIII, em La Valletta, em que, entre os muitos vinhos, está um Setúbal, que pode ser um Moscatel de Setúbal, mas, na verdade, o que dizia lá era simplesmente Setúbal. Isto significa que a tradição de vinho na região de Setúbal remonta a séculos, na verdade até milénios? É antiquíssima?Sim, é antiquíssima. Claramente, de ainda antes de Cristo. Há quatro mil anos é normalmente aquilo que se considera poder-se referir, com alguma margem de segurança, como havendo produção de vinhos na Península Ibérica, e também aqui, que foi um dos locais pioneiros na produção de vinhos.Sendo antiquíssima esta ligação de Setúbal ao vinho, sabemos que há algumas regiões de Portugal que tornaram-se quase sinónimos de vinho, seja o Douro, seja o Dão, seja, de certa forma, o próprio Alentejo. A marca Setúbal associada aos vinhos tem-se vindo a afirmar crescentemente?Tem-se vindo a afirmar crescentemente e, de entre as denominações da origem portuguesa em matéria de antiguidade, é também uma das mais antigas. A mais antiga de todas, como sabemos, é a do Vinho do Porto, mas depois, ainda quando Portugal era uma monarquia, entre 1907 e 1908, foram criadas e regulamentadas um conjunto de sete regiões de vinho, uma das quais é a região demarcada do Moscatel de Setúbal, o que manifestamente é uma evidência da importância histórica que esta região tem para o vinho e que o vinho sempre teve nesta região.O Moscatel de Setúbal é por si só uma marca poderosíssima, mas quando falamos de tintos e de brancos de Setúbal, são também já vinhos que se afirmam nas preferências dos portugueses? Ou seja, alguém vê numa carta de vinhos um branco ou um tinto dos produtores da região e já associa Setúbal a terra de vinhos, de vinhos de qualidade?Sim, e os dados objetivamente comprovam-no, porque senão o nosso sucesso no mercado nacional não era aquele que é. Pese embora, possamos sempre, quando as pessoas compram vinho de uma determinada região, atribuir muito mais mérito ao produtor, eu diria que genericamente é até saudável que isso aconteça, do que à própria região. Ninguém compra vinhos de uma região de forma cega, e também ninguém deixa de atender a qual é o produtor, e às vezes compra vinhos em primeira instância pelo produtor e não tanto pela região. Isso aí, de facto, é difícil pesar, avaliar, medir com rigor essa importância, mas a verdade é que há um efeito sempre entre região e produtor, e isso acontece em todas as regiões. No nosso caso, de facto, aquilo a que muitas vezes nos associam imediatamente quando se fala de Setúbal em matéria de vinhos é o Moscatel de Setúbal, o vinho generoso. Mas também é verdade, e isso é assim há décadas, que em termos de plantação, mas também de produção e de comercialização e de vendas de vinho, é sobretudo no tinto e no branco que radica cerca de 90% do nosso negócio.Portanto, o Moscatel de Setúbal tem fama, ajuda à fama da região como produtora de vinhos, mas tem um peso menor comparado com os vinhos tintos e os vinhos brancos?Estamos a falar em termos de produção/certificação, que são sempre para nós os números mais fiáveis que temos. Porque entre a produção declarada como apta e a produção certificada, há sempre aqui alguma diferença, ou seja, todos os anos os produtores da região declaram uma intenção superior de certificação de vinho àquela que acabam por fazer no final do ano. Portanto, quando estou a falar de números, tenho sempre na minha cabeça aquilo que é absolutamente rigoroso e do nosso conhecimento, que é a certificação que vamos fazendo ao longo de cada semana, de cada mês, de cada ano. No caso do Moscatel de Setúbal estamos normalmente a falar de 5 a 7% da produção da região. Mas depois, em termos de valor de comercialização, representa sensivelmente o dobro. Estamos a falar entre 13 a 15% do valor que a região cria com os seus vinhos. O que também dá uma ideia, pelo diferencial, para a importância do tinto e do branco, que é o essencial do negócio da região. Além disso, ainda temos esta circunstância da casta, no cQuais são outras castas fortes na região?Tendo mudado nos últimos 25 anos um pouco o perfil do número de castas e do seu peso em termos de contributo para a produção total, não deixam de ser as mesmas três as essenciais agora. Castelão no caso das tintas, o Fernão Pires e o Moscatel de Setúbal no caso das brancas. No caso das tintas, acrescentámos muito mais castas ao Castelão do que acrescentámos ao Moscatel de Setúbal e ao Fernão Pires nas brancas, porque também a vocação da região sempre foi produzir mais tinto. Mas uma coisa interessante também, é que este estudo de consumidor que nos levou agora a fazer um rebranding da marca revelou também que os consumidores de vinhos, fora sobretudo do distrito, nos veem muito mais como uma região de brancos do que de tintos, o que não deixa de também ser curioso.Voltando à produção certificada, estamos a falar mais ou menos de 40 milhões de litros por ano e de 60 produtores?Sim, exatamente, 40 milhões, até um pouco superior em média, de 60 adegas. Tendo consolidado esses números em termos do mercado nacional e dos principais mercados de exportação. O nosso desafio é de facto cada vez mais conseguir crescer em valor, o que é o sonho também de qualquer produtor, de qualquer região, de qualquer produto agroalimentar e outros. Esse é o nosso grande desafio, nosso enquanto região e no somatório de cada um dos produtores. Naturalmente, tentamos fazer isso todos os dias, mas não é fácil. O vinho é um produto também que se globalizou e é altamente concorrencial. E agora nesta conjuntura mais recente pós-pandemia, inclusivamente, estamos a assistir a uma circunstância que em Portugal não era muito comum, que é haver algum excesso de stock de vinhos. Vivemos praticamente todo este século sem nos termos de debater com problemas de stock. Esse problema é hoje em dia transversal, pois globalmente há um excedente estrutural da oferta de vinhos face ao consumo, que também tem decrescido, e em Portugal isso acontece também. Mas o vinho é feito também de crises. Ciclicamente, isso sempre aconteceu. Esta crise parece ser um pouco mais estrutural, mas acho que temos de dar aqui algum tempo ao tempo para perceber quão estrutural ela é.Em termos de exportação, que seria a possibilidade de a região ser mais concorrencial, os vinhos de Setúbal - além do Moscatel de Setúbal, que sabemos que tem essa tradição de ser exportado desde pelo menos o século XIX -, nomeadamente os brancos e os tintos, têm mercados lá fora?Têm, têm bastante mercado mesmo. A região tem nas suas principais empresas produtoras, historicamente nas mais antigas e em algumas mais recentes também, tem de facto desse potencial, dessa capacidade exportadora. No caso da Europa, destacam-se bastante os mercados da Inglaterra, os escandinavos com destaque para a Suécia, a Polónia, a Espanha, os Países Baixos, a Bélgica. Fora da Europa, são os países do continente americano os mais importantes para todos os vinhos portugueses e também para nós. Falo dos Estados Unidos, do Brasil, em destaque, e do Canadá.Os Estados Unidos e esta questão da guerra das tarifas é uma ameaça para os produtores de vinho, incluindo os de Setúbal?É uma ameaça para todos, claro que quanto mais importantes são para uma região as exportações para os Estados Unidos, mais ameaçados se sentem os produtores dessa região. No nosso caso, não é um dos mercados mais relevantes, mas é uma ameaça de facto e isso pode ser pernicioso porque nesta conjuntura um pouco depressiva e de criação de stocks, qualquer mercado que se perca ou que diminua, acentua a pressão sobre os stocks e, portanto, faz-se sempre sentir, mesmo sobre quem não está com problema especificamente nesse mercado ou noutro. Acaba por ser depois também envolvido nessa bola de neve.Estamos a falar da ação da Comissão Vitivinícola Regional da Península de Setúbal, mas na verdade os 13 concelhos do distrito são abrangidos. Há três que de senso comum associamos muito a vinhos, que são Setúbal, Palmela e o Montijo, mas há hoje vinha em todos os concelhos do distrito?Há vinha em praticamente todos os concelhos do distrito, de facto. O que não há é adegas em todos, mas vinha podemos dizer que há.Há algum concelho que surpreenda mais ter hoje produção de vinho?Há dados históricos bastante rigorosos, e portanto não há margem para dúvidas, que há 200 anos, para não irmos mais atrás, a principal zona produtora de vinho da Península de Setúbal era o Seixal, o Barreiro e Almada. E o Lavradio e a Trafaria eram polos importantes dessa produção. Portanto, é curioso que já neste século, durante mais de 10 anos, deixou de haver registo de vinha no Barreiro e até de qualquer adega, mas felizmente nos últimos anos houve um corajoso que ali na zona de Palhais resolveu voltar a plantar uma vinha totalmente à beira do estuário do Tejo e que começou a produzir vinho já no pós-pandemia.Já falámos aqui do Moscatel de Setúbal e da sua fama. Há muitos produtores a interessarem-se pelo Moscatel de Setúbal enquanto vinho generoso?Há, há, claramente, e mais ainda agora pelo Moscatel Roxo. O número de produtores com capacidade para produzir Moscatel de Setúbal não aumentou assim muito em termos numéricos, porque de facto ele já era grande. Se a referência temporal for o ano 2000, há mais três produtores de Moscatel de Setúbal. No total, estamos a falar de 20 adegas. No caso do Moscatel Roxo, o número multiplicou-se por quatro, porque no ano 2000 tínhamos apenas cinco produtores de Moscatel Roxo e agora temos os mesmos 20. Isto deve-se a que nos anos 1990 havia muito pouca vinha de Moscatel Roxo e portanto eram poucas as adegas que tinham a possibilidade de o transformar em vinho generoso. À medida que a vinha foi crescendo isso mudou. Estamos a falar no ano 2000 de cerca de 11 hectares e hoje estamos a falar de 63 hectares. . Em termos do que faz a CVRPS, como procuram alicerçar ainda mais esta notoriedade dos vinhos de Setúbal?A nossa missão é primordialmente a da certificação e controle de origem e agora até do designado controle oficial dos vinhos com a denominação de origem de indicação geográfica, que é um requisito que já existia há bastantes anos e que as comissões vitivinícolas agora assumiram também perante a tutela começar a fazer esse serviço ao Estado. Portanto, esta parte da autorregulação de certificação de origem é claramente a razão de ser pela qual todas as regiões vitivinícolas em Portugal nasceram, as mais recentes já no pós adesão à União Europeia. Nessa altura, o mosaico de regiões não era o que é agora. Supletivamente, e à medida que as regiões foram crescendo também no seu volume de certificação e portanto na sua visibilidade no mercado nacional e também em muitos mercados de exportação e que a sua faturação por essa via cresceu, com meios à disposição para poder dar contributos para a promoção no mercado nacional e internacional de vinhos, também fomos assumindo mais esse papel, que já era desde o início, noQuais são os grandes produtores de vinho associados a Setúbal?Posso dar-lhe uma ideia daquilo que são os produtores que mais investem na região, na medida em que são os que mais produzem, naturalmente, mas também são os que mais certificam, e isso tem vindo a acentuar-se. Estamos a falar claramente das duas cooperativas, como seria de esperar, a de Pegões e a de Palmela, mas estamos a falar também dos três grandes produtores de raiz privada, que são importantes na região e são muito relevantes também no país vinícola, portanto, da José Maria da Fonseca, da Bacalhôa e da Casa Ermelinda Freitas. Naturalmente que em termos de história também são relevantes. As duas cooperativas são também das mais antigas adegas cooperativas do país, portanto, estão na casa dos 60 e muitos, 70 anos, aliás, a adega cooperativa de Palmela já cumpriu até os 70 anos. E no caso das outras três casas, a José Maria da Fonseca vai a caminho de fazer 200 anos, a Bacalhôa, que é a herdeira de uma empresa que tinha uma longa história vitivinícola, também já cumpriu um centenário, e a Casa Ermelinda Freitas, que é uma empresa que tem mostrado uma dinâmica e uma capacidade de se afirmar no mercado nacional e também na exportação, que é ímpar em Portugal, para uma empresa que, no fundo, começou a engarrafar e a comercializar os seus vinhos com marca própria apenas no final dos anos 1990, embora já existisse antes. Estamos a falar da quarta e da quinta geração no caso da Casa Ermelinda Freitas, portanto, é recente a comercializar com marca própria, mas também já cumpriu o seu centenário de atividade vitivinícola..Domingos Soares Franco reforma-se, mas promete um Moscatel para os 200 anos da José Maria da Fonseca."O primeiro carro dos meus pais, um Taunus 12M, foi trocado por litros de vinho".“Beber um Moscatel de 1880 é único. É um vinho que aguentou cento e tal anos à nossa espera”