O leilão de moscatéis que a José Maria da Fonseca organizou a 17 de outubro, uma tradição da empresa, foi o momento principal das celebrações dos 190 anos? António Soares Franco (ASF): Sim. Neste ano foi o dia especial. Conseguimos trazer bastantes pessoas ao leilão, e conseguimos uma boa cobertura da imprensa. No fundo, serviu para celebrar os 190 anos e também os 100 anos de um vinho fantástico, um Moscatel de Setúbal de 1924, que demos a provar a quem estava presente. Foi uma forma, até mais do que lembrar os 190 anos da empresa, de promover e dignificar o Moscatel de Setúbal. O Moscatel de Setúbal, dos vinhos generosos portugueses, é talvez o menos conhecido, ou um dos menos conhecidos, agora fala-se do Carcavelos também, e esse é muito menos conhecido. Mas sim, o Moscatel de Setúbal é pouco conhecido, apesar de ser um vinho fantástico, diferente dos outros vinhos portugueses generosos. E não é suficientemente conhecido sobretudo nos vinhos mais velhos. Vende-se o vinho de 5 anos, mas os vinhos velhos são pouco conhecidos, e precisam de ser dignificados, estar nas melhores lojas, nas casas dos apreciadores e dos colecionadores. .Recorda-se da licitação mais elevada pelo Moscatel de 1924? ASF: Sim, foi a primeira e a segunda garrafa. Creio que uns 600 euros mais as comissões, portanto à volta de 800 euros. .Estes vinhos estão à venda nas lojas especializadas?ASF: Estão na Garrafeira Nacional. 1100 euros..A celebração dos 190 anos, ocorre dois anos depois do recorde de faturação de 35 milhões de euros.António Maria Soares Franco (AMSF): Sim, 2022 foi o recorde de faturação dos últimos anos..E este 2024 de festa foi um bom ano para a José Maria da Fonseca?AMSF: Em 2024, iremos acabar perto dos valores de faturação 2022, e em 2025 acreditamos que vamos até superar 2022. Este ano tivemos alguns negócios novos que ganhámos, sobretudo com vinhos com certificação de sustentabilidade, que começa a ser bastante importante para os clientes internacionais. E neste caso estamos a falar de monopólios do Norte da Europa, que dão muita importância à sustentabilidade. Ganhámos novos negócios com base nessa certificação neste ano. Portanto, já tivemos vendas na segunda metade do ano desses vinhos. E em 2025 vamos ter um ano inteiro a vender esses vinhos. Acreditamos que vamos bater o recorde de 2022, fruto desses lançamentos..Quando diz monopólios, refere-se ao s países escandinavos, em que o governo intervém no mercado do álcool? AMSF: Exatamente..Quais os principais mercados ? AMSF: Suécia e Brasil são os dois principais mercados de exportação da José Maria da Fonseca. E depois temos Estados Unidos, Canadá e Itália, que também é um mercado importante para nós. Nesse caso com a marca Lancers, que tem muito peso no mercado italiano. .O Brasil percebe-se bem como mercado , até pela história dos torna-viagens. Mas a Suécia porquê? AMSF: Nós estamos na Suécia já há muito tempo. Já desde os anos 70. O Periquita é dos vinhos mais vendidos. Eles têm um código para cada vinho. Antigamente, para se encomendar um vinho na Suécia, tinha-se que pedir o código, quase como numa farmácia. Nem sequer pediam a marca do vinho. Aquilo era uma coisa muito burocrática. E o Periquita é das marcas que têm um número mais baixo. Portanto, é das marcas mais antigas e que duram mais tempo no monopólio. E isso só se consegue mantendo qualidade, porque estes sistemas de monopólio vão avaliando a performance das marcas. À medida que as marcas vão vendendo, vão aumentando o número de lojas. Se as marcas caírem em vendas, reduz-se o número de lojas e podem, eventualmente, ter de sair do monopólio. Estar num mercado destes tão exigente em termos de qualidade tantos anos, só se consegue mantendo padrões de qualidade elevados, tendo processos que nos garantam essa qualidade, tendo matéria-prima sempre de elevadíssima qualidade. Isto prova que aquilo que fazemos estamos a fazer bem e, depois, também tem resultado nos outros mercados..A empresa celebra 1834 porque é a data em que surge como uma das fundadoras da Associação Comercial de Lisboa, mas a fundação pode ser mais antiga? ASF: Sim, podia já existir dois ou três anos antes, porque, na altura, não havia registo comercial, não havia conservatórias e, portanto, as pessoas começavam a trabalhar e não tinham que fazer essa parte burocrática de dizer que é hoje o dia em que começamos. Sabemos que já havia vendas de vinhos anteriores a 1834, mas, na verdade, não temos um papel a dizer quando começou. O evento que marca para nós, na nossa história, a fundação é sermos sócios fundadores da Associação Comercial de Lisboa, hoje Câmara de Comércio, conjuntamente com várias outras empresas, basicamente de Lisboa. É 1834, portanto, o primeiro ano. .Os Soares Franco descendem de uma familiar da mulher de José Maria da Fonseca? ASF: A família Soares Franco e os Fonsecas cruzam-se ali duas ou três vezes [olha para a árvore genealógica na parede da sede em Azeitão]. José Maria da Fonseca casa com uma senhora Soares Franco e há um Soares Franco que casa com uma irmã dele também. Ele teve uma filha única, casada com um senhor célebre na altura, Henrique de Gama Barros, que escreveu a História da Administração Pública em Portugal, foi presidente do Tribunal de Contas, etc. Era um homem muito mais ligado àquilo que fazia na sua profissão do que ao legado do sogro, o negócio que a mulher herdou. E, portanto, a certa altura, Sofia Soares Franco da Fonseca, passa o negócio para uma prima direita Soares Franco, de quem descendemos..O António é da sexta geração e o António Maria da sétima. Quantos da família trabalham na empresa? AMSF: Da sexta são o meu pai e o meu tio Domingos. E da sétima sou eu, a minha irmã Sofia e o meu primo Francisco. .A transição geracional já está a ser feita? AMSF: Nós temos uma administração onde estão a sexta e a sétima geração. A sétima geração está no dia-a-dia da gestão da empresa. Temos uma comissão executiva que trata de todas as decisões do dia-a-dia, em que estou eu e está o meu primo, ambos como co-CEO, e está um profissional que não é da família, o Paulo Costa. Tudo o que são decisões mais estratégicas são tomadas dentro do conselho de administração, onde está também representada a sexta geração. O meu pai é o presidente..Esta transição gradual é a fórmula usada em anteriores passagens de geração na empresa?ASF: Esta é uma empresa familiar, mas eu não comecei a trabalhar aqui. Nenhum de nós começou a trabalhar aqui. É uma realidade começarmos a aprender lá fora, nas universidades e nas empresas. Primeiro e segundo emprego são fora, e depois, se a empresa precisa daquilo que estudámos, e se nós estamos disponíveis para cá trabalhar, haverá aí uma conjugação de interesses. No meu caso, formei-me em gestão de empresas numa altura muito complicada, porque acabei o curso em novembro de 1975, três ou quatro dias depois do tal 25 de novembro [risos]. E a economia portuguesa estava de rastos, completamente. Eu queria aprender, achava que na universidade não tinha aprendido o suficiente, e fui trabalhar com os nossos sócios do negócio dos rosés. Era uma empresa americana, uma das maiores do mundo de bebidas alcoólicas. Fui trabalhar com eles dois anos para os Estados Unidos. Tentaram-me a ficar. Ofereceram-me também um lugar numa empresa deles do Brasil. Mas o meu pai pediu-me ajuda. Estava-se a sentir já mais velhote. E eu voltei para cá, para a área comercial, que era aquela em que tinha trabalhado nos Estados Unidos. Não foi uma passagem obrigatória, foi uma passagem de livre vontade da minha parte, a pedido do meu pai. O meu irmão foi o primeiro português a licenciar-se na Universidade Davis, na Califórnia, que na altura era a melhor universidade de enologia do mundo. E, portanto, com um canudo desses, só pedíamos que ele viesse rapidamente para cá trazer inovação e uma visão diferente. .Portanto, o apelo da empresa familiar é muito importante?ASF: Para mim foi. Podia ter ficado lá fora com uma vida até financeira muito mais folgada, mas sempre achei que isto é uma missão que nós temos. No fundo, gerir uma história passada de, no meu caso, cinco gerações atrás de mim, o melhor possível, para que a empresa continue na família por mais uma geração, pelo menos. Portanto, vamos trabalhando e gerindo para a geração seguinte..Quando se fala dos produtos simbólicos, um é o Moscatel de Setúbal, através do Alambre, que é a marca que têm mais divulgada… AMSF: Sim, é uma zona aqui perto, na Serra da Arrábida, que se chama os Alambres. Foi um nome que o meu avô criou para distinguir o nosso Moscatel de Setúbal da concorrência. O nosso Moscatel há muitos anos que era conhecido como o Moscatel de Setúbal da José Maria da Fonseca. À medida que começaram a aparecer mais concorrentes, sentimos a necessidade de criar uma marca específica para distinguir os nossos Moscatéis e foi criada a Alambre. Penso que foi uma marca bastante feliz que o meu avô criou. .Há também o Periquita, o primeiro vinho tinto engarrafado em Portugal e que remonta a 1850. AMSF: Sim. Penso que as primeiras faturas que temos da existência do Periquita, as primeiras cartas que encontramos em que José Maria da Fonseca propunha aos seus clientes a compra do seu vinho engarrafado Periquita, são de 1850. Mais uma vez, até pode ser que a marca já existisse antes. .Quando falamos do Periquita como pioneiro do engarrafamento é porque o vinho antes era vendido a granel? AMSF: A granel, em barricas de madeira. Portanto, não tinha uma marca, era o vinho do produtor. A partir de 1850, o Periquita passa a ser engarrafado. Já existiam vinhos engarrafados lá fora, em Portugal também já existiam vinhos do Porto engarrafados e vinhos da Madeira engarrafados, mas vinhos tintos não. Portanto, o Periquita é o primeiro vinho tinto a ser engarrafado em Portugal. Talvez inspirado por aquilo que já acontecia lá fora, José Maria da Fonseca foi comprar uma máquina em Bordéus e começou a engarrafar o seu vinho Periquita. Ele tem uma frase célebre que diz que esta é a forma civilizada de se apresentar os objetos, portanto já tinha aqui um cuidado pela estética e pela forma como comercializava aquilo que produzia e tinha uma preocupação muito grande com a qualidade. As garrafas que usava na produção de Periquita vinham de Inglaterra, os rótulos eram produzidos em Paris, e o especialista de rolhas era da Catalunha..Se tivessem de criar aqui uma trilogia da José Maria da Fonseca, qual era a marca que acrescentavam? AMSF: Como marca importante para nós destaco o Lancers, um rosé, uma marca que foi criada pela quinta geração da família, durante a Segunda Guerra Mundial. Começou como um rosé, mas existe já um branco e outras versões como sangria. E também os espumantes. É uma marca muito importante, que, juntamente com o Mateus Rosé, criou uma nova categoria de vinhos portugueses que tiveram muito sucesso na exportação. E continua a ser uma marca bastante relevante, nomeadamente em Itália. Quem diria que na Itália, um país produtor também de vinhos de elevadíssima qualidade, temos uma marca de vinho português que vende centenas de milhares de garrafas..Disse que o Periquita vendia muito bem na Suécia. O Lancers é um sucesso na Itália. E o Moscatel? AMSF: O Moscatel de Setúbal é muito vendido em Portugal, mas também começa a impor-se em alguns mercados lá fora, nomeadamente o Brasil. Alguns Moscatéis mais caros têm procura importante no Brasil. Mesmo a Escandinávia tem procura por Moscatéis de Setúbal mais antigos.Quando a família faz uma grande reunião, uma festa, inclusive uma festa de Natal, e quer beber um Moscatel ou um tinto especial é fácil escolher uma garrafa boa? ASF: Temos por regra guardar de todas as colheitas 60, 70, 100 garrafas. Portanto, há de imaginar, com estes anos todos, que existem milhares de garrafas de todas as marcas possíveis e imaginárias guardadas. E dos Moscatéis também há algumas, porque mesmo destes que vendemos nos leilões, vendemos 100 garrafas, mas fizemos 180 e ficaram 80 para casa. E nestas festas de família, sobretudo no jantar de Natal dos Soares Franco, o meu irmão perde a cabeça e vai por ali fora e apanha 7, 8, 10 garrafas de qualquer coisa diferente. Temos bebido coisas memoráveis que traz para nós conhecermos e, no fundo, também para a sétima geração e a oitava, porque o meu neto mais velho já tem 19 anos, aprender um bocado do passado da empresa e de muitas marcas que nos põe à frente. São sempre 7, 8, 10 vinhos diferentes..Neste Natal pode ser aberta uma garrafa do Moscatel de 1924?ASF: É natural até que sejam moscatéis mais velhos.AMSF: : Um dos últimos que bebemos foi um moscatel de 1880 que o meu tio levou tapado com papel prateado. Serviu aquilo e no final destapou a garrafa e era um de 1880. Para mim este Moscatel de Setúbal de 1880 foi o mais antigo que provei. É único. Mas é importante também para educar as gerações futuras, sobretudo o respeito pelo que estamos a fazer. Não estamos a vender um vinho para beber numa tasca como se fosse outra coisa qualquer. É um vinho que aguentou cento e tal anos à nossa espera. E via-se na cara, mesmo da oitava geração [risos], que quem estava a provar aquilo estava a perceber o que é que estava a beber. .Para ambos foi o moscatel mais antigo que já beberam?ASF: Sim. Para mim também.