Todos os anos, o Governo, o Ministério das Finanças (MF), prevê no Orçamento do Estado (OE) o valor da despesa efetiva global da República, mas reserva sempre verbas significativas (cinco mil milhões de euros, a média executada de 2015 a 2024) para ter margem adicional, para poder contrair mais financiamento e com isso gastar mais em medidas novas ou noutras de custo incerto, na altura em que negoceia o OE, no Parlamento.Para esse efeito, de acordo com o próprio OE e o Conselho das Finanças Públicas (CFP), o Governo vai pedir à Assembleia da República autorização para poder gastar até 12,2 mil milhões de euros nos chamados "ativos financeiros". É mais do dobro do que foi a execução normal dos últimos dez anos.Estas despesas, se acontecerem, vão à dívida (cenário mais provável), mas também podem somar à despesa autorizada, afetando mais tarde o saldo orçamental. São um risco orçamental significativo, aponta o CFP.Em contabilidade nacional, a que conta para Bruxelas, em princípio, tais operações ficam excluídas do saldo final, mas em contabilidade pública, a que é sentida pelo Estado e na vida dos contribuintes, o impacto será efetivo e real.Como referido, na proposta de OE 2026, as Finanças indicam que vão pedir ao Parlamento 12,2 mil milhões de euros na forma de "necessidades de financiamento do Estado" para, ato contínuo, poder materializar em nova despesa além daquela que já figura como despesa total efetiva.Este dinheiro pode servir para fazer ou manter em movimento muita coisa: continuar a alimentar (via empréstimos) restos de bancos falidos que ainda constam no cardápio público (Banif e BPN), fazer nova habitação, gastos militares, ferrovia, estradas, manter projetos em curso de várias empresas públicas, como é o caso da TAP, que está em vias de ser reprivatizada. O conjunto é diversificado.Por norma, diz o Conselho das Finanças, este dinheiro é vertido na dívida pública; mas também pode resvalar para a despesa, dependendo dos critérios.Outra questão, é que o valor da despesa prevista agora com ativos financeiros (os tais 12,2 mil milhões de euros) destoa muito do que foi passado recente.É muito mais do que, por exemplo, previu este mesmo governo PDS-CDS há um anos, no OE 2025 (9,5 mil milhões), e bem mais do dobro face ao que foi a sua execução normal nos últimos dez anos. Segundo o CFP, entre 2015 e 2024, a "transformação" de ativos financeiros em despesa real efetiva, custou, em média, 4,95 mil milhões de euros por ano ao erário público.O exemplo dos gastos militaresNo caso do OE 2026, que esta segunda e terça-feira será debatido no Parlamento e depois votado na generalidade na terça ao final do dia, há um exemplo claro do risco que tais operações com ativos financeiros representam para as contas públicas.Um dos grandes está na Defesa, por exemplo.A nova proposta de Orçamento, contempla uma reserva de 1,2 mil milhões na conta de "ativos financeiros" (despesa não efetiva) que pode ser transformada em despesa militar efetiva, em "salários, aquisição de bens e serviços, investimentos", explica o CFP.Ou seja, o orçamento da Defesa Nacional pode ser muito maior do que se diz.De acordo com a análise do CFP, à primeira vista "a despesa com Defesa deverá aumentar apenas 546 milhões de euros em 2026, passando de 3.332 milhões de euros (1,1% do PIB - Produto Interno Bruto) em 2025 para 3.878 milhões de euros (1,2% do PIB)".Assim só seria curto para, por exemplo, cumprir as novas metas de gastos no acordo assinado com a NATO.No entanto, continua o Conselho presidido por Nazaré Costa Cabral, "o orçamento da Entidade do Tesouro e Finanças para 2026 inclui, no capítulo 60 relativo a despesas excecionais, uma dotação de 1.200 milhões de euros na rubrica outros ativos financeiros – Sociedades e quase sociedades não financeiras públicas (despesa não efetiva) destinada a financiar investimentos militares".Segundo o CFP, se a verba for toda acionada, ela equivale a 0,4% do PIB e "afetará o saldo orçamental".O mesmo é dizer que, se os 1,2 mil milhões de euros se tornarem reais, o rácio da Defesa subirá para 1,6% no ano que vem.No debate orçamental, os deputados vão decidir se essa norma passa ou não.Se passar, "nos termos do n.º 9 do artigo 8.º da proposta de lei do OE 2026, o ministro das Finanças fica autorizado a proceder a alterações orçamentais de despesa efetiva e não efetiva do referido Capítulo 60 e a proceder a transferências neste âmbito entre os diferentes programas orçamentais, pelo que a utilização integral dessa verba no próximo ano em despesa efetiva implicará um impacto negativo adicional de 0,4% do PIB no saldo orçamental", explica o CFP.A verba dos 1,2 mil milhões de euros até podia ser "transformada" em participações no capital de empresas ou na aquisição de ações ou obrigações, o que não geraria despesa real efetiva.Mas, para o Conselho das Finanças, "não é expectável que o compromisso com a defesa se traduza em investimentos financeiros (participação no capital de empresas ou aquisição de ações ou obrigações)" pelo que, "a transformação desta despesa não efetiva, no todo ou parte, em despesa efetiva (por exemplo, salários, aquisição de bens e serviços, investimentos) afetará o saldo orçamental".A boa notícia é que, atualmente, por causa do esforço coordenado europeu e da NATO a favor de mais Defesa e armamento, Bruxelas e os governos europeus aceitaram suspender temporariamente o Pacto de Estabilidade na parte que diz respeito aos gastos militares.Isto é, faz-se a despesa, mas esta não contará para a avaliação regular das contas dos países. Depois, daqui a uns anos, logo se vê a fatura e o que ela significa nas finanças nacionais e europeia.Na cimeira da NATO de Haia, em junho último, o primeiro-ministro, Luís Montenegro, afirmou que, em 2025, "assumiremos o encargo de atingir 2% do Produto Interno Bruto [PIB] na área da Defesa".Outros gastos à espreita: estradas, ferrovia, habitação, restos de bancosEm cima dos 1,2 mil milhões de euros passíveis de serem transformados em nova despesa militar, a proposta de orçamento traz outras verbas do género noutras áreas.De acordo com o MF, a maioria da despesa com ativos financeiros prevista para 2026 é em empréstimos de médio e longo prazo, no valor de 6,1 mil milhões de euros, "destacando-se o valor reservado a entidades públicas (quatro mil milhões de euros) e ao IHRU - Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (1,3 mil milhões de euros)", indica o CFP.O crédito público também costuma ser canalizado para as sociedades que gerem os restos dos bancos privados que faliram e que o Estado português decidiu amparar. As maiores ainda no ativo são Parvalorem (BPN) e Oitante (Banif).Outra forma de despesa com ativos financeiros é através de "ações e outras participações".Aqui o OE prevê 4,7 mil milhões de euros, "destacando-se a dotação de capital destinada à Infraestruturas de Portugal, S.A. (2,3 mil milhões de euros) e as dotações destinadas a outras Empresas Públicas Não Financeiras (1,8 mil milhões de euros)", enumera o Conselho das Finanças.Na proposta de OE, o governo tem ainda outras áreas em mente que considera transformar em despesa efetiva.Para a área da "cooperação internacional" vai pedir ao Parlamento 36,6 milhões de euros.Para a Agência de Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP) está pensado um empréstimo de 250 milhões de euros.E há ainda uma bolsa 93,5 milhões de euros para o Governo usar em eventuais pagamentos de "execuções de garantias e expropriações"."Em termos líquidos, esta despesa será atenuada pela receita a obter com ativos financeiros", indica o CFP, mas aí o Ministério das Finanças dá pouca ou nenhuma informação sobre o que espera em 2026.O Conselho refere que "embora não previsto na proposta de OE 2026, a receita de ativos financeiros em 2026 pode ser superior a anos anteriores, por via da privatização parcial da TAP e venda do Novo Banco, que, embora sem impacto no saldo das Administrações Públicas, terá efeito em menores necessidades de financiamento" no próximo ano..Conselho das Finanças. Governo tem 1,2 mil milhões de euros 'escondidos' no OE para fins militares