França está em crise há alguns anos, mas a sua condição voltou a agravar-se, com o cenário iminente de queda do governo dentro de poucas semanas, se o atual governo do primeiro-ministro François Bayrou (escolhido em dezembro pelo Presidente da República, Emmanuel Macron) cair na moção de confiança agendada para 8 de setembro, como já se antecipa.Para Portugal e para a Zona Euro, a derrocada da economia gaulesa traduz-se num problema grave.França é a segunda maior economia europeia, a seguir à Alemanha, e para Portugal é um parceiro de enorme relevância.É o segundo maior cliente das exportações nacionais (comprou a Portugal quase 16 mil milhões de euros em bens e serviços, turismo incluído), segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) e do Banco de Portugal (BdP) relativos a 2024.É ainda o quarto maior investidor estrangeiro, tendo interesses parqueados em Portugal avaliados em 15,4 mil milhões de euros (final do primeiro semestre deste ano), de acordo com o apuramento mais recente do BdP.O IDE francês é largo e diverso, presente na área do imobiliário, da grande distribuição, da hotelaria e da indústria, por exemplo. Estima-se que represente 50 a 60 mil empregos.Acresce ainda a relevante comunidade de residentes que escolheram Portugal para viver, desde pensionistas a nómadas digitais.França é ainda uma valiosa fonte de remessas de emigrantes portugueses. Segundo o banco central, só no ano passado, esta enorme comunidade emigrante enviou para Portugal mais de 1,1 mil milhões de euros.Portanto, percebe-se, a exposição direta de Portugal a uma crise mais grave em França ultrapassa facilmente 30 mil milhões de euros.E isto sem contar com eventuais ondas de choque que uma crise orçamental, económica e social francesa pode ter no ambiente das taxas de juro e na estabilidade da Zona Euro como um todo.Quem largou a lebre para toda esta nova onda de incertezas e perigos foi o próprio primeiro-ministro Bayrou que, na segunda-feira, anunciou que precisa do voto de confiança da Assembleia Nacional (o Parlamento) para prosseguir um plano orçamental em 2026 (no fundo, o Orçamento do Estado) que visa medidas de "austeridade" na ordem dos 44 mil milhões de euros.A ideia do executivo apoiado por Macron é cortar o défice no equivalente a 1,5% do PIB no ano que vem.E vem com tudo o que é costume nestes casos: cortes e restrições nos apoios sociais, agravamento de impostos, até a eliminação de dois feriados nacionais para, diz o governo, aumentar a produtividade.Conhecida pelas manifestações contundentes e violentas, vários sectores da sociedade francesa estão descontentes, tendo agendado uma cascata de greves e protestos para dia 10 de setembro sob o ilustrativo nome de "paralisação total".Segundo vários analistas, Bayrou quis antecipar-se à onda de contestação prevista com o referido pedido de moção de confiança, que Macron aceitou.A situação económica e orçamental gaulesa é delicada há anos e agravou-se nos últimos meses.O governo fechou 2024 com um proibitivo défice público equivalente a 5,8% do Produto Interno Bruto (PIB).A Comissão Europeia prevê que pouco ou nada mude no desequilíbrio neste ano e no próximo, colocando o défice nos 5,6% ou mais.O máximo permitido pelo Pacto de Estabilidade é metade disso (3%).Pior está o indicador da dívida pública: França tornou-se num dos Estados mais endividados da Zona Euro, com um rácio de 113% do PIB em 2024. Bruxelas estima que continue a aumentar, podendo chegar a 116% este ano e 118% no próximo.Só para se ter um termo de comparação, Portugal, que já ocupou o pódio dos mais endividados, está hoje nos 90% e tem vindo a descer.O limite do Pacto de Estabilidade é 60%.Entretanto, o governo francês, ciente da quase impossibilidade de aplicar cortes daquela magnitude (o Parlamento está altamente fragmentado e bloqueado por forças políticas da esquerda mais radical e da extrema-direita), veio acenar com a possibilidade de ter de chamar o Fundo Monetário Internacional (FMI), para este ajudar a fazer o ajustamento que diz ser necessário para por as contas em ordem.Os investidores internacionais estão céticos e reflexo disso é o aumento muito pronunciado das taxas de juro soberanas.O custo cobrado nas Obrigações do Tesouro (OT) a 30 anos disparou para um máximo de 14 anos. Pior só em 2011, estava a crise da Zona Euro e dos resgates no auge. Com isto, França enfrenta hoje taxas de juro superiores às da Grécia (ontem, as OT a 10 anos negociavam nos 3,5%, as gregas em 3,4%). Com um fardo de endividamento a caminho dos 120%, é um problema gravíssimo.OE 2026 no "coração da crise"Para Charlotte de Montpellier, economista do grupo financeiro ING, "no coração desta crise está o orçamento de 2026". "Apresentado a 15 de julho, o plano de Bayrou visa reduzir o défice público de 5,4% em 2025 para 4,6% em 2026 e para 2,8% até 2029"."Este inclui 43,8 mil milhões de euros em poupanças para 2026, 80% dos quais em cortes de despesa, como redução das contratações do setor público, congelamento da indexação das pensões e dos escalões de imposto sobre o rendimento e ainda a eliminação de dois feriados", enumera a economista que segue o caso francês a par e passo.Segundo Montpellier, "o objetivo era que a dívida atingisse 117,6% do PIB em 2026 e 117,2% em 2029, em comparação com 118,3% e 125,3% se não fossem feitas alterações"."Mas o plano encontra uma oposição unânime. Todos os principais partidos o rejeitaram, citando o impacto social e a falta de consenso político", resume a mesma analista.Assim, "a decisão de Bayrou de ligar o orçamento a um voto de confiança é uma última tentativa de forçar um ajustamento de contas face à urgência e gravidade da situação orçamental", remata Montpellier.Ministro das Finanças acenou com FMI, mas depois relativizouGraves foram as primeiras palavras do ministro das Finanças francês, Eric Lombard, que admitiu o risco de França ter de pedir uma intervenção do FMI para sanear as contas.Poucas horas depois, o governante viria a recuar no dramatismo.Depois de ir às redes sociais escrever que chamar o FMI “é algo que queremos evitar, que temos de evitar, mas não vou dizer que o risco não existe", o ministro tentou desvalorizar e recentrar as suas declarações, afirmando que a situação das finanças públicas exige "calma e lucidez".“Não estamos atualmente sob a ameaça de qualquer intervenção, nem do FMI, nem do Banco Central Europeu (BCE), nem de qualquer organização internacional", tentou clarificar Lombard.Salomon Fiedler, economista principal do banco Berenberg, também não acredita numa intervenção externa, muito menos do BCE."Os investidores questionam, e com razão, a estabilidade das finanças públicas francesas". Como uma taxa de juro de 3,5%, significa que "as taxas de rendibilidade dos títulos do governo francês a 10 anos são superiores às de países em crises anteriores, como Espanha, e próximas das de Itália".Mas para Fiedler, a intervenção do BCE é "improvável". É verdade que Frankfurt tem hoje "uma enorme margem de manobra para intervir nos mercados e reduzir os custos de financiamento de certos governos, se o considerar necessário"."Embora o BCE não tenha definido requisitos rígidos no Instrumento de Proteção da Transmissão Monetária [TPI, na sigla inglesa], criado em julho de 2022 (mas ainda não utilizado), seria extremamente difícil explicar porque é que a França justifica agora a sua ativação", considera o economista do Berenberg.