Surto na Azambuja ameaça logística para meio país
Mais de um centena de infeções numa unidade de abate de aves colocaram em alerta um pequeno concelho que vive da grande distribuição.
Vêm da Brandoa, de Corroios, de São João da Talha, de Vila de Franca de Xira, de Azambuja, e um pouco de toda a Grande Lisboa, todos os dias. São milhares, mais de oito mil, aqueles que diariamente dão os braços à grande distribuição e serviços satélite numa das operações logísticas mais concentradas no país, na zona industrial de Azambuja.
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Aqui, os armazéns dos maiores distribuidores nacionais formam um corredor quase cerrado ao longo da Estrada Nacional 3. Quase ombro com ombro, chegam também ao apeadeiro do Espadanal de Azambuja, comboio atrás de comboio, os trabalhadores que, nesses armazéns, alimentam mais de meio Portugal, de Coimbra ao Algarve.
"São demasiadas pessoas e o espaço é pouco". Premsingh trabalha desde há dois anos na Sonae, no chamado picking, a coleta dos pedidos para despachar para os supermercados. Chegou então de Ludhiana, norte da Índia, e diariamente parte agora da Brandoa no suburbano das 7h10, bem antes da entrada ao serviço, às 8h00. Amandip e Jitendra, outrora chegados dos estados indianos de Punjab e de Uttar Pradesh, saíram de Vila Franca de Xira. "O próximo comboio tem muitas pessoas, mas este ainda não tem tantas".
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Trabalhadores da plataforma logítica de Azambuja, trabalhadores dos armazéns e fábricas que chegam também de comboio no apeadeiro Espadanal de Azambuja e paragens de autocarros junto à EN3
© Leonardo Negrão / Global Imagens
São as cautelas possíveis. Mesmo nas carruagens, já cheias, das 7h40, os trabalhadores chegam quase todos de máscara, luvas, viseiras. Desde a última segunda-feira que a máscara é obrigatória para quem circula no transporte público. É também obrigatória e distribuída diariamente desde o início da crise nos armazéns, contam quase todos aqueles com quem o DN/Dinheiro Vivo fala.
Christian, eletricista em serviço temporário no entreposto da Sonae em nome da DST, é uma exceção. "A obrigatoriedade do uso da máscara nessa obra entrou em conjunto com o que o governo exige, foi nessa segunda", diz o brasileiro. Mas há medição de temperatura e álcool-gel à chegada, assegura. O comboio chega cheio. Mas é relativo. Christian vê o comboio meio cheio. "Estamos até dando sorte com esse horário".
101 infeções de repente
Desde a última semana, há mais uma razão de peso para somar cautelas. Há mais de uma centena de infeções por covid entre trabalhadores da zona, num surto detetado numa unidade de abate de aves, a Avipronto, um dos primeiros negócios instalados no corredor de sete quilómetros que se estende entre as localidades de Azambuja e Vila Nova da Rainha, por enquanto encerrado por ordem da Direção-Geral da Saúde.
Aqui, operam também os grupos Sonae, Auchan, Jerónimo Martins, Staples, mas também Salvesen, Torrestir, MT Portugal, Havi, Siva, GL, DHL ou Sugal. Destes, Salvesen e Torrestir somam mais quatro casos testados e conhecidos de infeções nesta semana.
A logística desta zona nunca teve de parar durante o estado de emergência. Agora, chega ao estado de calamidade com um surto que, neste momento, as autoridades de saúde não sabem que dimensão terá. Os autarcas locais estão em sobressalto. O número de 101 infeções confirmadas da Avipronto chegou na última quinta-feira, com mais 51 resultados inconclusivos e os restantes negativos para os 240 funcionários da unidade de abate. Fizeram disparar já os números locais de casos covid, mas ameaçam também imobilizar uma indústria que não dorme. Por aqui, labora-se nas 24 horas do dia.
Estava tudo aparentemente bem até há pouco tempo. "A empresa, até parar, era acompanhada pela Direção-Geral de Veterinária, que acompanhava o abate, as embalagens, tudo, e tinha todos os requisitos de higiene, toda a gente tinha luvas e toda a gente tinha máscara", relata o presidente do município, Luís de Sousa.
O autarca não tem conhecimento de alguma inspeção pela Autoridade para as Condições de Trabalho. O Dinheiro Vivo tentou obter também informação junto do órgão de inspeção, mas não recebeu resposta até esta publicação.
Os primeiros casos surgiram e a Avipronto continuava a laborar. O Sindicato dos Trabalhadores da Agricultura, das Indústrias de Alimentação, Bebidas e Tabaco (Sintab) diz que chefias da empresa, Direção-Geral da Saúde e delegado de saúde da região foram alertados já há duas semanas da situação. "A organização da empresa, não a própria administração, foi muito cética em aceitar que haveria casos sinalizados na semana antes da saída para a comunicação social deste tema", diz Rui Matias.
O fecho só acabou por acontecer após o município e a freguesia de Azambuja apelarem diretamente junto do coordenador do governo para a região de Lisboa e Vale do Tejo, o secretário de Estado Duarte Cordeiro. Luís de Sousa, e a presidente da junta local, Inês Louro, dizem que só isso determinou que as autoridades de saúde acabassem por forçar o encerramento da unidade há uma semana.

Trabalhadores e das operações das unidades de logística, transporte e de abate, depois de terem surgido vários casos de infeção na unidade da Avipronto
© Leonardo Negrão / Global Imagens
A Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARSLVT) é lacónica nas respostas ao DN/Dinheiro Vivo. Que medidas estão a ser tomadas? Que medidas são exigidas? Que fiscalização é feita aos planos de contingência das empresas, seja Avipronto sejam outras das imediações ou espalhadas pelo país?
"No âmbito das medidas de saúde pública preconizadas pela Unidade de Saúde Pública do Agrupamento Centros de Saúde Estuário do Tejo, informamos que todos os funcionários da Avipronto foram testados, determinou-se a desinfeção de todo o edifício e a empresa mantém-se fechada", diz a ARSLVT. "Em breve será feita uma visita às instalações para aferir a adoção de medidas corretivas que possibilitem a sua reabertura".
E não deverá demorar. Para a Saúde Pública regional não há razão para não reabrir. "Há mais de uma centena de trabalhadores em condições de trabalhar. Não vejo qualquer problema em começar desde que as orientações sejam cumpridas", considerou o diretor regional de saúde, Mário Durval, numa reunião com o núcleo local de proteção civil na última quinta-feira.
Queixas, denúncias e desmentidos
No auditório onde decorre o encontro, o responsável de saúde demora-se em explicações sobre a importância da lavagem das mãos, do uso da máscara em espaços fechados. Um autarca exaspera e diz que já tem informação básica sobre as formas de transmissão da doença. Quer medidas. O delegado regional acrescenta a importância de as empresas acionarem planos de contingência que não sejam "copy-paste" uns dos outros, mas adequados à sua operação, mas admite que a saúde pública local tem "capacidades que não são muitas". Está disponível para aconselhar.
Os participantes trocam informação das denúncias diárias que lhes chegam de residentes via Whatsapp. Muitas vêm em segunda ou terceira mão com a recomendação de que não sejam identificadas as mãos sucessivas de onde partiu o alerta. Casos de quem alegadamente quebra a quarentena, casos de trabalhadores da Avipronto chamados ao serviço. Parece que não se confirmam. Os responsáveis da GNR na reunião dizem que não têm destacamento para vigiar cada um dos mais de cem cidadãos locais que estão em vigilância por contacto com infetados.
Toca o telefone, entretanto. O comando da GNR num dos postos do concelho faz saber ao autarca de Azambuja do caso de um funcionário, com resultado inconclusivo no teste à covid-19, chamado para trabalhar e partilha-o com as autoridades de saúde. "Estou a ver que não está a ser feito nada do que a administração me disse que ia fazer", diz Luís de Sousa ao DN/Dinheiro Vivo. Pede calma à Saúde Pública e à Avipronto. "Não é por dois dias que a empresa vai à falência. Temos de ter cautela".
Também o Sintab quer saber em que condições se fará a reabertura. Rui Matias diz que "não há forma de trabalhar no abate de aves que não seja a proximidade". "Este é que é o problema. As máquinas e os trabalhadores trabalham muito perto num processo contínuo. A organização do espaço dos trabalhadores vai ter de ser toda redimensionada. Os trabalhadores não podem continuar a trabalhar a 15 centímetros uns dos outros", defende.
Contactada, a Avipronto não respondeu até esta publicação a perguntas sobre a demora na resposta ao surto ou medidas em curso. Apenas à questão sobre trabalhadores chamados ao serviço, e com a entrada de algum pessoal na fábrica a ser testemunhada também pelo Dinheiro Vivo ao início da manhã de quinta-feira. "Todas as pessoas que estão lá, estão a implementar medidas sob autorização da Direção-Geral da Saúde. São pessoas que foram sujeitas a despiste e com resultado negativo", assegura a empresa.
Um pêndulo acertado pela hora do comboio
Onde também há casos, na Torrestir, não foi possível chegar ao contacto. Na distribuidora espanhola Salvesen, um operador do lado de lá da fronteira faz passar a chamada para a unidade de Azambuja. Uma funcionária transmite que tem ordem para desligar o telefone aos jornalistas. E desliga.
Mas as preocupações não se ficam por estas situações. Os autarcas locais dos vários partidos querem reunir-se com todas as empresas na zona para evitarem o eventual rebentamento de um surto alargado, que ponha em causa mais trabalhadores e obrigue a distribuição à paragem, com efeitos nos supermercados do centro ao sul do país.
O presidente do município explica que a ideia é "reunir com as administrações das empresas para sabermos as grandes preocupações que possam ter, e também para vermos a possibilidade de desfasamento dos turnos e a questão dos transportes".
Ao longo da artéria da Estrada Nacional 3, a pulsação das dezenas de armazéns bate num movimento comum. Todos entram às 8h, todos largam às 16h ou 17h, e assim por diante nos sucessivos turnos, o que junta os trabalhadores diariamente no mesmo pêndulo apertado. Os responsáveis locais querem concertação para mais comboios e carruagens da CP, que o ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, tem explicado publicamente que não há. Também querem que as empresas desacertem turnos entre si, e garantam mais transporte em autocarros aos trabalhadores.
Ricardo Mendes, do Sindicato dos Trabalhadores do Comércio, Escritórios e Serviços (CESP), também alerta para a necessidade de aumentar a oferta de comboios na Linha da Azambuja, mas hesita na questão dos horários.
"Era possível que entre as empresas, visto que há um perigo de saúde pública, conseguissem fazer desfasamentos. Mas põe-se outra questão. Estamos a falar de trabalhadores com vida social e familiar. A desregulação destes horários podia criar aqui uma grande perturbação nas suas vidas", diz.
O responsável sindical insiste na necessidade de reforço na CP. "Todos os trabalhadores vão juntos no mesmo transporte. Estamos a falar de uma grande maioria de trabalhadores de agências temporárias de trabalho sem acesso aos transportes da empresa. A única alternativa é o comboio. O que pretendemos é que a CP tenha noção do que se está a passar e coloque mais carruagens".
No que toca à oferta de comboios, a CP responde ao DN/Dinheiro Vivo que "neste momento a oferta de comboios urbanos e regionais da CP é 100% do horário e capacidade em vigor, onde se inclui a Linha da Azambuja". E junta que, "desde o inicio deste período de crise e da adaptação da oferta, a CP manteve articulação com a Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição, e por vezes também com a Sonae, para garantir o melhor serviço possível para a zona industrial da Azambuja, dentro dos constrangimentos da pandemia e até ao limite da capacidade disponível".
Sonae confiante no plano
As CP refere especificamente a Sonae, que emprega perto de três milhares de trabalhadores na plataforma da Azambuja, 700 dos quais na parte de distribuição alimentar. Mas Ricardo Mendes lembra os outros grandes da distribuição ali instalados. "Imagine o que era estar a colocar todo um armazém da grande distribuição em isolamento profilático. Na Jerónimo Martins, Sonae, Auchan, falando só da parte alimentar. Para o setor que é, é fundamental que continuem a operar. Não podemos pedir a um outro polo logístico que dispense trabalhadores, que é o que tem acontecido nas lojas".
A Sonae MC, responsável pela parte alimentar, mostra-se confiante quanto à capacidade de dar resposta aos riscos com base no plano de contingência que tem implementado dentro da sua unidade.
"A Sonae MC tem delineado um sólido plano de contingência, totalmente alinhado com as recomendações das autoridades de saúde e atestado pela Direção-Geral da Saúde, no sentido de garantir que o nível de risco de propagação entre colegas é de "muito baixo risco"", refere, com "máxima confiança nos responsáveis de todas as equipas para levar a cabo o plano de contingência traçado".
As medidas incluem turnos desfasados, distribuição de equipamento de proteção individual, duplicação de autocarros, colocação de algum pessoal em trabalho remoto, medição de temperatura desde 24 de março, sinalética para orientar a distância entre trabalhadores, dispensadores de álcool-gel e lava-mãos portáteis, e criação de uma zona de isolamento para motoristas nas descargas.
A informação é corroborada em quase tudo pelos trabalhadores. À porta dos armazéns da Sonae, um motorista da Luís Simões prepara-se para entregar as guias. Explica o que mudou no quotidiano de trabalho de quem assegura o transporte de mercadorias, mas não sempre. "Há muitos sítios onde entrávamos e agora não entramos. É uma mudança radical. Mas, no caso da descarga que vou fazer, vou entrar dentro do armazém para descarregar o carro e saio para descarregar lá dentro, coisa que não devíamos fazer".
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