Na era do Covid-19 as marcas têm de ser esquimós da comunicação

A pandemia cancelou muitas campanhas, mas há quem já esteja a reagir com mensagens na rua viradas para os novos tempos. Agências e marcas têm de ser reinventar para enfrentar o inverno covídico.
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As ideias surgem de onde menos se espera. Uma nova campanha do Ikea começou com uma videochamada, algo corriqueiro em tempos de teletrabalho na era do Covid-19. "Nuno Riça e João Amaral estavam a fazer uma videochamada com outros diretores criativos europeus, onde perceberam que estavam todos a expor as suas casas e o que lá se passava. Era assim com eles e com milhões de pessoas no mundo inteiro uma vez que o mundo inteiro está todo a trabalhar de casa. Estamos a abrir as nossas casas a colegas, clientes, fornecedores, etc. e nem sempre está nas melhores condições para mostrar", descreve Miguel Ralha, CEO da BAR Ogilvy. O bom mesmo era ter uma casa Ikea. Não o tendo, pode-se sempre usar fundos a simular o estilo de design da cadeia sueca. "A ideia dos fundos Ikea surgiu desse momento. Permitimos que as pessoas possam fazer download de uma divisão Ikea, que servirá como fundo da vídeo chamada. Desta forma, estamos com a casa sempre impecável e a ajudar quem precisa de trabalhar de casa todos os dias".

Um trabalho criado, apresentado e produzido 100% em teletrabalho e, certamente, igualmente aprovado pelos responsáveis da cadeia sueca a partir da segurança do lar. A realidade das agências e de muitas empresas nacionais desde que a pandemia do novo coronavírus aterrou no país. No caso da BAR Ogilvy desde 12 de março que a equipa se dividiu pelos escritórios caseiros. Foi desse modo que também nasceu a campanha da Auchan, uma das primeiras a surgir na televisão, já sob a realidade da covid-19. Não era a altura de vender produto ou comunicar a melhor promoção do mercado. O habitual numa marca de retalho alimentar. "O principal desafio nas primeiras campanhas e projetos desenvolvidos foi estarmos a trabalhar de uma forma completamente nova. Nova na dinâmica interna, nova na dinâmica com os clientes e nova na dinâmica com os parceiros. Criámos, apresentámos e produzimos sem ter havido qualquer contato presencial entre as partes envolvidas", descreve Miguel Ralha.

Com a pandemia no país, as marcas tiveram uma de duas reações: suspenderam campanhas ou viraram a agulha da comunicação. "Sem exceção todos os clientes tiveram de adaptar os seu briefs. O que é natural dado este contexto tão atípico", comenta Miguel Barros, CEO da Havas Worldwide, que trabalha a publicidade de marcas como o Continente, a NOS ou a Worten, uma das primeiras agências a reagir ao novo momento do país. "Todas as marcas têm de se adaptar a este novo contexto - ou porque deixa de ser relevante a mensagem anteriormente planeada, porque deixa de ser possível ou correto falar da mesma, ou porque existem agora outras necessidades que necessitam de soluções diferentes para nos mantermos relevantes junto dos nossos clientes. Este é um momento muito importante na separação do que são produtos e verdadeiras marcas."

"Fique em casa" foi a mensagem do Turismo de Portugal e da Meo quando os casos de covid-19 começaram a ser confirmados no país. "Tanto as equipas do Turismo como as da Meo foram muito ágeis a acompanhar e a decidir à mesma velocidade. Isto explica bem terem sido duas das primeiras marcas a avançar com as suas campanhas. E acredito que serão também mais lembradas e mais recordadas por isso mesmo", comenta Tomás Froes, sócio da Partners. "Nesta fase difícil, neste momento desconhecido que vivemos, as pessoas reconhecem quem lhes dá atenção, quem lhes dá mensagens de esperança, e estas duas marcas fizeram-no de forma muito genuína."

Agora é altura de as marcas mostrarem o seu propósito. "É neste momento que as marcas têm de ser ainda mais genuínas, mostrar o propósito que têm, e serem capazes de revelar à sociedade que são capazes de devolver o que dela receberam. Mas sem perder o foco no seu negócio, porque têm de continuar, têm de seguir contribuindo para a melhoria de vida dos seus clientes com aquilo que vendem, e simultaneamente manter a sustentabilidade dos seus negócios que, não nos podemos esquecer, empregam milhares de portugueses", argumenta Tomás Froes.

Ser esquimó e não Viking

Ao efeito de fenómenos como o covid-19, que afeta toda a economia de um país e não tem fronteiras, as marcas não passam incólumes. Afinal, como bem lembra Ricardo Miranda, não vivem só de comunicação. "Alimentam-se de dinheiro. É ele que mantém a sua atividade ativa. Compra as matérias-primas, financia as linhas de produção, escoa os produtos, cria a comunicação, paga aos profissionais", constata o especialista em criação de marcas. Mas "o dinheiro está a parar pelo que, perante um inverno covídico, as marcas têm três opções: hipotermia, hibernação ou entrar em modo esquimó. A primeira dita a morte em breve; a segunda reduz as funções vitais ao mínimo e reza para que o beijo do príncipe encantado da economia as acorde, em breve; a terceira, implica adaptar-se e tentar reinventar-se."

Nessa reinvenção, em pleno inverno económico provocado pela covid-19, as marcas poderão buscar inspiração nos esquimós. Enquanto a comunidade viking que habitou a Gronelândia durante 400 anos "não aguentou o inverno terrível provocado pela super-erupção de um vulcão na Indonésia, em 1257 (do outro lado do globo) e arruinou-se. Restam as ruínas. Já os seus vizinhos esquimós mantiveram-se ativos até hoje", exemplifica Ricardo Miranda. Transferindo a metáfora para a realidade das marcas. "Layoffs, cancelamento de eventos, campanhas e afins ajudam à adaptação porque travam a hemorragia financeira. Mas se as empresas se ficarem por aqui e entrarem só no 'campeonato do menos', podem levar as suas marcas à hipotermia ou, com sorte, à hibernação", descreve o cofundador da Wonder/Why. Para se entrar em modo esquimó é preciso outra atitude. "É preciso perceber que gelo económico é este, o que ele faz às pessoas e às suas vidas e como é que a nossa marca pode ajudar. O que existe já não chega, porque o essencial mudou", defende.

E para ser uma marca esquimó é preciso outro tipo de ferramentas. "Este não é o tempo dos criativos (especialistas em chamar a atenção). Este é o tempo dos criadores (especialistas em imaginar soluções novas). As pessoas estão espontaneamente a fazê-lo. adaptando impressoras 3D para produzirem peças para ventiladores, entre muitas outras iniciativas. As empresas estão a fazê-lo, através da reorientação da sua atividade, como se tem observado na indústria, colocando as questões "o que falta? o que temos? como usar o que temos para criar o que falta?" Este é o caminho. As marcas vão naturalmente fazê-lo. E recriar o mundo", diz Ricardo Miranda.

O inverno covídico no negócio das agências

O 'inverno covídico' pode ainda só estar a começar, mas no negócio da publicidade já se sente os seus efeitos. "É tudo muito recente. Mas claro que sentimos o impacto de forma muito vincada. Seja pela adaptação da comunicação, pelos cancelamentos de campanhas e projetos ou até pelo aparecimento de novas necessidades de comunicação", admite Miguel Barros. "O impacto será diferente marca a marca, consequência das diferentes naturezas de negócio, mas necessariamente negativa para o negócio como um todo", afirma o CEO da Havas.

"O impacto sente-se diariamente", confirma Tomás Froes. "Numa altura que, compreensivelmente, já se fala em cortes de orçamentos publicitários, é preciso não esquecer que o mercado publicitário, criatividade e meios, e penso que posso falar por todo o setor, adaptou-se de uma maneira incrível, rápida, eficaz, com milhares de profissionais a partir de suas casas a responderem aos pedidos dos seus clientes. Com campanhas pedagógicas, com campanhas e mensagens de esperança, com campanhas de angariação de fundos, de voluntariado, de produtos e serviços criados para ajudar as famílias portuguesas, campanhas para os profissionais de saúde, para as forças de segurança, campanhas para fazer chegar às pessoas aquilo que de melhor as marcas e instituições têm para oferecer às pessoas. Este esforço de todos acredito que será reconhecido pelas marcas", considera o sócio da Partners.

Mas os efeitos deixaram o seu rasto do ponto de vista financeiro. "Muitas das campanhas que estavam previstas foram canceladas mas substituídas por outras, como resposta à situação que vivemos, e isto implicou sobretudo uma redução nos valores de produção, com ideias a serem produzidas 'in house', sem 'abrir câmara' , recorrendo a bancos de imagens e animações gráficas que vieram substituir as produções tradicionais. E isto começa a ter impacto", refere Tomás Froes. "O digital veio de algum forma compensar o problema, já que a quantidade de conteúdos para o digital cresceu bastante. Dramáticas, com quedas de 100% , são as ativações e eventos, um enorme problema para as agências de eventos, que tradicionalmente são nossas parceiras no trabalho para as marcas, e que irão precisar de apoio quando tudo isto passar."

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