Dinheiro
15 janeiro 2022 às 12h31

Função pública é "tema tabu" na campanha, mas exige respostas a quem governar

Crescentes saídas para a reforma, dificuldades em recrutar, carreiras consumidas pela subida do salário mínimo e um sistema de avaliação cada vez mais contestado deixam o serviço público à espera de soluções que tardam, dizem os sindicatos. Os partidos até têm propostas mas, até aqui, não arriscaram debatê-las.

Maria Caetano (Dinheiro Vivo)

Em 2022, um auxiliar de ação médica ou auxiliar educativo que concretize uma progressão na carreira - regra geral, ao fim de dez anos de trabalho - vai passar a ganhar apenas mais 4,46 euros de salário-base se estiver colocado nas primeiras posições remuneratórias da função pública. É também esse o valor de diferença salarial que o separa neste ano do salário inicial de um assistente técnico, trabalhador dos serviços administrativos e de atendimento público do Estado que, há pouco mais de uma década, em 2009, recebia mais 233,13 euros do que ele.

Este é o exemplo mais extremo daquela que tem sido a tendência de compressão salarial nos últimos anos na administração pública, acontecendo depois da subida do salário mínimo aos 705 euros sem que os restantes salários se movam, no caso da função pública. E que poderá agravar-se ao longo dos próximos anos, com a retribuição mínima a eclipsar cada vez mais níveis remuneratórios entre os trabalhadores com os salários mais baixos do Estado. Mas, não é tema numa campanha para as eleições legislativas que até tem abordado a questão da estagnação do salário médio, mas que fica longe de um debate sobre a administração pública e os seus trabalhadores.

"Parece um tema tabu", afirma Helena Rodrigues, a presidente do Sindicato dos Quadros Técnicos do Estado (STE), que até diz entender os motivos. "A generalidade dos portugueses não olha com bons olhos a administração pública", defende, e os partidos defender-se-ão assim ao evitar o tema. "Alimentar ódios e divisões entre trabalhadores do privado e trabalhadores públicos só serviu para isto".

Sete dos partidos que obtiveram representação parlamentar em 2019 - com exceção do Chega e CDS-PP - surgem com programas que até avançam propostas para a administração pública, mas não as têm discutido até aqui. Na última quinta-feira, o frente-a-frente entre secretário-geral do PS, António Costa, e o presidente do PSD, Rui Rio, sobrevoou o assunto brevemente. Costa defendeu que o tema era para discutir com os sindicatos e não em campanha. Já Rio disse que pretende manter atualizações de salário em linha com a inflação, mas também condicionadas a uma "racionalização" dos serviços públicos, admitindo que nalgumas áreas do Estado haja funcionários a mais.

Mas, estas são palavras que para já pouco dirão aos assistentes técnicos, grupo da administração pública que na última semana se tem mobilizado com o envio de várias cartas aos partidos e aos media para chamar a atenção para o que considera ser uma injustiça. Os pouco mais de quatro euros de diferença que existe hoje em relação ao salário de um assistente operacional são a queixa principal.

"Com esses quatro ou cinco euros a mais, tenho assistentes técnicos na minha equipa que tratam de contas de gerência, de situações que envolvem muitos milhares de euros. O nível de responsabilidade é exigente. Eu percebo quando me dizem que para o que ganham já fazem muito. Há quem prefira por quatro euros passar para assistente operacional e não ter este tipo de problemas", conta António, assistente técnico coordenador a trabalhar na esfera do Ministério da Educação.

Por ter uma posição de coordenação, para a qual passou após a aposentação de um colega, António deveria estar entre os salários mais elevados de quem está na carreira, mas diz esperar já há dois anos por autorização do Ministério das Finanças para que o seu lugar fique consolidado e possa ter a subida de salário correspondente. É mais um dos problemas para os quais chama a atenção, alertando que "há milhares de trabalhadores a marcar passo nas primeiras posições remuneratórias" da função pública e que surgem penalizados pelo estreitamento das progressões, que em regra valeriam 50 euros entre os salários mais baixos do Estado.

"Quando o salário mínimo era de 485 euros, havia uma diferença de mais de 200 euros para o assistente técnico. Hoje há quatro euros, uma coisa ridícula", assinala também José Abraão, secretário-geral da Frente Sindical da Administração Pública (Fesap), que neste início de ano remeteu cartas aos partidos a apelar para que apresentem propostas para resolver os problemas da administração pública. Até aqui, diz, só vê "compromissos de natureza genérica".

Embora os principais partidos falem em continuar uma trajetória de elevação do salário mínimo - PS até aos 900 euros em 2026 e PSD sem estabelecer uma meta - nenhum deles esclareceu como essa subida se irá repercutir na função pública.

Até aqui, a subida da retribuição mínima já consumiu quatro das oito posições que há na carreira dos assistentes operacionais. Um aumento do salário mínimo para 900 euros, até 2026, consumiria as restantes quatro, apagando na prática a carreira, caso esta não seja reformulada ao longo da próxima legislatura.

"Não vai ser urgente só se o salário mínimo for de 900 euros. É urgente já, e já era urgente de há uns anos a esta parte. Estamos a entrar no 13.º ano sem aumentos salariais. O que temos tido são atualizações e subidas do salário mínimo", afirma Sebastião Santana, coordenador da Frente Comum.

Para os sindicatos, o que está em causa é uma reivindicação antiga: a de refazer carreiras e de revisão da tabela remuneratória única que guia o tamanho dos saltos salariais de cada progressão nas carreiras gerais do Estado e com impacto também nalgumas carreiras especiais, como as dos enfermeiros.

Antes do chumbo do Orçamento e da marcação de eleições, o governo comprometia-se a discutir com os sindicatos neste primeiro trimestre formas de repor as posições remuneratórias perdidas para assistentes operacionais, e também a subida do salário de entrada dos assistentes técnicos, que está agora nos 709,46 euros, e dos técnicos superiores, nos 1205 euros.

Estas ideias mantêm-se no programa socialista, sem concretização, à semelhança do que sucede com a generalidade dos partidos. O PS fala em rever a tabela remuneratória única, rever carreiras não revistas e em valorizar salários e carreiras técnicas, enquanto o PSD fala também numa revisão de carreiras. Bloco de Esquerda e CDU têm no programa igualmente a revisão da tabela remuneratória única e o Livre fala em atualizar posições remuneratórias em função das qualificações dos trabalhadores. O PAN, por seu turno, refere mudanças no estatuto dos técnicos superiores e o Iniciativa Liberal, mesmo falando em salários "competitivos", nada diz sobre o que poderá ser feito em relação às carreiras.

O desaparecimento de parte delas não é a única matéria que aflige os trabalhadores públicos. Há, nos últimos dois anos, uma subida do ritmo das aposentações - em especial, em setores como a educação - e crescentes dificuldades em recrutar que se evidenciaram recentemente no longo processo de recrutamento de mil técnicos superiores para a administração pública que permanece por concluir. Há ainda um sistema de avaliação contestado pelos sindicatos que impõe quotas para melhores desempenhos e limita, para a maioria, a possibilidade de progressões salariais mais rápidas que os dez anos habituais.

Se o debate político ainda não aponta soluções para estes problemas, por outro lado também as perspetivas do que poderá vir a ser o percurso da consolidação orçamental dos próximos anos travam a expectativa dos funcionários. O PS, na dianteira das sondagens, já admitiu trabalhar para um défice abaixo de 3% do PIB ainda em 2022, mas pelo menos em 2023 assim terá de ser por força das regras europeias.

"Provavelmente, haverá diminuição da despesa pública ou manutenção sem alterar nada. Já conhecemos o discurso. Por isso é que tinha de haver compromissos mais sólidos. O que fica é navegação à vista com um conjunto de anúncios", considera José Abraão.

PS
- Revisão da Tabela Remuneratória Única
- Atualizações salariais anuais
- Anualização do SIADAP
- Revisão de carreiras não revistas
- Valorizar salários e carreiras técnicas
- Desenvolver o teletrabalho na AP
- Incentivos para a deslocalização de postos de trabalho para o interior
- Medidas de responsabilização e valorização dos dirigentes intermédios
- Aprofundar modelo de avaliação assegurando benefícios para trabalhadores
- Reforçar o modelo de formação dada pelo Instituto Nacional de Administração
-Planear recrutamento pela necessidade
- Simplificar processos de recrutamento
- Melhorar salário de entrada de técnicos superiores, beneficiando também a formação em mestrados e doutoramentos
- Permitir à CRESAP a abertura oficiosa de concursos para dirigentes superiores
- Rever a duração das comissões de serviço de dirigentes intermédios

PSD
- Convergência entre SMN e o salário mínimo da Administração Pública
- Desenvolver diagnóstico e plano de evolução dos recursos humanos a dez anos, com rácio de 1 entrada por 1 saída
- Desenvolver um modelo de recrutamento de novos quadros técnicos
- Desenvolver formação para maior mobilidade entre carreiras e grupos
- Revisão de carreiras e aproximação da Lei de Trabalho em FP às regras do Código do Trabalho, incluindo possível recurso a bancos de horas e adaptabilidade
- Atualizações salariais em função da inflação e ganhos de produtividade e possibilidade de prémios de desempenho em função da redução de custos e aumento da eficiência dos serviços
- Rever o enquadramento da formação da AP e possibilitar estágio em empresas privadas e em organizações europeias
- Desenvolver competências para chefias
- Nomeação de diretores-gerais e presidentes de institutos por comissão de peritos nomeada pelo parlamento
- Valorização dos salários de cargos dirigentes em função da responsabilidade, funções, valor de mercado e desempenho

BE
- Contratação de 20 mil pessoas/ano
- Reforço dos serviços essenciais com mais 10 mil contratados por ano
- Revisão da Tabela Remuneratória Única e especialidade funcional das carreiras
- Atualização anual mínima ajustada à inflação e aumentos reais
- Revogação do SIADAP e das respetivas quotas de avaliação, com substituição por um novo sistema de avaliação

CDU
- Revogação da Lei do Trabalho em Funções Públicas e garantia do direito à negociação coletiva na AP
- Revogação do SIADAP e criação de um sistema de avaliação sem quotas
- Revisão da Tabela Remuneratória Única
- Reposição e valorização do poder de compra dos salários públicos

PAN
- Criar modelo de recrutamento para cargos dirigentes diferenciado para cargos técnicos e de confiança política
- Limitar renovação de comissões de serviço em cargos intermédios
- Procedimentos de recrutamento totalmente eletrónicos e divulgação de informação detalhada na Bolsa de Emprego
- Criar um documento único de participação em concursos de recrutamento
- Possibilitar auditorias, por sistema e entidade, a concursos de recrutamento
- Subir salários para repor perda do poder de compra em 10,3% ocorrida entre 2009 e 2019 e subsídios de refeição
- Reformular o estatuto dos técnicos superiores com valorização salarial
- Criar regime excecional de avaliação de desempenho para 2020-2022 dos trabalhadores da linha da frente da covid

IL
- Reforma da CRESAP, cargos de topo e dirigentes intermédios por concurso
-Progressões por concurso na carreira técnica sob avaliação da CRESAP
- Recrutamento por concurso para estágios e funções sob avaliação da CRESAP
- Promoção de salários competitivos, em especial nos níveis mais elevados, através da racionalização faseada do número de funcionários públicos
- Inclusão de componente remuneratória variável em função do mérito individual
- Alargar as funções dos trabalhadores
- Recrutamento temporário de peritos externos e recurso a intercâmbios
- Valorização das comissões de trabalhadores no processo negocial
- Reforma da ADSE

LIVRE
- Atualizar posições remuneratórias em função do nível de qualificações
- Contabilização integral do tempo de serviço de professores e trabalhadores das carreiras e corpos especiais em dois anos ou prazo a acordar em diálogo social
- Revisão negociada da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas
- Revisão do SIADAP, prevendo a avaliação de chefias pelas equipas
- Criação de mecanismos que impeçam a integração e chefias por convite
- Aposta no recrutamento centralizado
- Reabilitação do INA como Escola de Administração Pública com autonomia científica e atividade de investigação
- Lançar programa de emprego público para preencher carência de funcionários
- Profissionalizar bombeiros voluntários integrando-os nos serviços do Estado

CDS-PP e CHEGA
- Sem compromissos específicos nesta área