Presidente da FP de Atletismo: "Não comprámos nenhum atleta, nem o fomos buscar"
Nélson Évora conquistou a medalha de ouro nos Europeus de Ar Livre em Berlim, a única que lhe faltava em grandes competições com um salto de 17,10, depois de já o ter feito em Jogos Olímpicos, Mundiais de Ar Livre e Pista Coberta, e Europeus de Pista Coberta. O momento da celebração fez-se de palavras de satisfação, mas também de recados por parte do atleta, que viu recentemente o luso-cubano Pablo Pichardo bater o seu recorde nacional em maio passado no meeting de Doha com um salto de 17,95.
"É importante mudar a mentalidade, fazer os atletas acreditarem que, com trabalho, podem chegar longe. Não passa por comprar atletas, naturalizar atletas... Isso é ridículo!"
O desabafo do atleta não foi inocente, numa clara referência ao cubano, que desertou do seu país e em abril de 2017 assinou pelo Benfica. Também Pichardo não deixou passar em claro a conquista do seu agora compatriota e, num tom irónico, escreveu na rede social Instagram: "Sem a minha presença é fácil. Campeãoooo".
O próprio relato da prova em que participava Nélson Évora feito pela RTP, na voz do experiente Luís Lopes, acabou por acontecer com muitas críticas à naturalização de Pichardo, que ocorreu em apenas oito meses . Facto que valeu um comunicado por parte do Benfica a acusar a RTP de "falta de isenção" e "xenofobia".
Em declarações ao DN, o presidente da Federação Portuguesa de Atletismo, Jorge Vieira, negou perentoriamente que tenha sido o organismo a ir buscar o atleta para o naturalizar: "A Federação não comprou nenhum atleta, não fomos nós que o fomos buscar. Há Federações que o fazem, compram atletas, esse não é o nosso caso."
Na verdade, o processo foi conduzido pelo Benfica e concluído oito meses após a sua chegada, apoiando-se na lei que permite a naturalização com base nos elevados serviços que o cidadão possa prestar ao país.
Pablo Pichardo chegou a estar pré-inscrito para participar nestes Europeus de Berlim como português, mas a Federação Internacional de Atletismo (IAAF) não autorizou que tal acontecesse, como tem feito com outros casos.
Jorge Vieira considera que a partir do momento que o atleta "está naturalizado, pode representar o país" e acredita que isso acontecerá no futuro, assim que a IAAF descongelar a utilização de recentes naturalizados. Porém, para já, trata de lamentar a publicação irónica do cubano a propósito do título de Nélson Évora, e deixa-lhe um conselho.
"Quanto às picardias? Dispenso-as completamente. Fiquei desgostoso. Só pode acontecer por parte de um atleta que não conhece a nossa cultura. A opinião é livre mas há limites e ele vai ter de perceber isso."
O presidente da Federação faz ainda um aviso à navegação: "Temos uma seleção feita de harmonia e amizade, atletas que aqui esquecem os clubes que representam. Eu não gostaria que num futuro breve exista uma seleção desequilibrada".
A questão dos naturalizados no atletismo não é algo novo no nosso país. Algumas das principais referências em Portugal são atletas que enfrentaram este processo de cidadania, porém de forma totalmente diferente e sem a mesma rapidez de Pablo Pichardo.
Naide Gomes
A antiga atleta do salto em comprimento e pentatlo, nasceu em São Tomé e Príncipe e veio viver para Portugal com 11 anos. A sua participação nos Jogos Olímpicos de Sidney 2000 ainda foi feita como são tomense, devido a um processo moroso de naturalização que só seria concluído no ano seguinte. Por Portugal, a atleta conquistou várias medalhas em Europeus e Mundiais, o que lhe valeu a condecoração de Oficial da Ordem do Infante D. Henriques
Francis Obikwelu
O nigeriano chegou a Portugal com apenas 15 anos em 1994 para participar nos Mundial de Juniores onde correu os 400m e as duas provas de estafeta (4x100m e 4x400m) ao serviço do seu país.
Após o final da competição, tomou a decisão, juntamente com mais dois colegas, de ficar em Portugal. Após alguns momentos difíceis, voltou ao atletismo através do Belenenses e, mais tarde, Sporting, clube com o qual criou uma ligação muito forte. Nos anos seguintes correu pela Nigéria tornando-se um velocista de classe mundial nas provas de 100 e 200 metros. Contudo, após os Jogos Olímpicos de Sidney 2000, uma lesão afastou-o das pistas e fê-lo sentir-se abandonado pelo seu país de origem.
Decide então naturalizar-se português, processo que fica concluído em 2001. Por Portugal, conquista quatro medalhas de ouro e uma de prata em Europeus e uma medalha de prata nos Jogos Olímpicos de Atenas 2004.
Nelson Évora
Um dos atletas mais consagrados do atletismo português de sempre é filho de mãe costa-marfinense e pai cabo-verdiano. Nascido em Abidjan, veio para Portugal com o seu pai quando tinha apenas cinco anos. Por ironia do destino, a família Évora fixou-se em Odivelas, no prédio onde vivia João Ganço, antigo recordista nacional de salto em altura e primeiro português a passar os dois metros.
O vizinho passou a treinador um dia e foi fazendo crescer Nelson Évora em talento e tamanho. De competição em competição, o atleta do triplo salto decidiu aos 18 anos naturalizar-se português por considerar que este era o país que lhe tinha dado tudo. Haveria de retribuir mais tarde através do triplo salto com inúmeras medalhas, sendo a mais importante de todas o ouro conquistado nos Jogos Olímpicos de Pequim em 2008.