Jogo da retoma é às 19.00. Um clube que nasceu num sapateiro e o que deve o nome a um dramaturgo
Hugo Miguel dará o apito inicial na retoma do futebol português, nesta quarta-feira quando forem 19.00. O árbitro da Associação de Futebol de Lisboa vai dirigir o Portimonense-Gil Vicente da 25.ª jornada da I Liga num estádio de portas fechadas e bancadas vazias. Um cenário numa antes visto, fruto de uma pandemia que fez Portugal e o mundo refém e parou o futebol português no dia 12 de março. O jogo ficará para a história como o primeiro após a paragem de 82 dias.
Em campo estará uma equipa aflita, o Portimonense, no penúltimo lugar, e um tranquilo Gil Vicente no nono posto. Parece incrível, mas estes dois emblemas nunca coincidiram no primeiro escalão do futebol português até esta época. Os dois clubes encontraram-se pela primeira vez na I Liga a 26 de outubro de 2019, na jornada 8 do campeonato. Na altura a equipa de António Folha (entretanto deu lugar a Paulo Sérgio) foi a Barcelos empatar (1-1) com a turma de Vítor Oliveira. No total já se encontraram por 20 vezes (a maior parte da II Liga -12 jogos), com os algarvios em vantagem (7 vitórias, cinco derrotas e oito empates) em 86 anos de convivência.
O embate em Portimão será o primeiro dos 90 jogos das últimas 10 rondas, realizadas sob fortes restrições e sem público nos estádios até 26 de julho.
No banco vão estar dois treinadores muito críticos quanto à retoma. Se Vítor Oliveira defendia que o futebol português devia ter aproveitado a paragem para pensar em reformas, Paulo Sérgio era a favor do fim da época.
"Os jogadores querem e gostam de jogar, mas é preciso criar condições para que apenas se preocupem em jogar bem, ganhar e defender as cores do seu clube. Com as regras bem definidas, que ainda não estão, é mais fácil para todos. Não diria que é um futebol anormal, mas é diferente daquilo que estamos habituados", disse Vítor Oliveira, que procura a 60.ª vitória no comando do Gil.
Defendendo que os 18 clubes "arrancam em igualdade de circunstâncias", o treinador gilista de 66 anos mostrou-se satisfeito com o "empenhamento" do plantel em "trazer verdade desportiva e levar a prova até ao fim", apesar da preocupação com "dúvidas permanentes dos jogadores, que provocaram desconcentração e afetaram a qualidade exigida". Por isso garante que o regresso "é uma incógnita" e lamentou não ter o apoio dos adeptos: "Mais grave que isso tudo, não ter público nos estádios é quase matar o futebol."
O treinador quer culminar a época do regresso administrativo ao principal escalão, a partir do Campeonato de Portugal, na sequência do caso Mateus, "com tranquilidade". E não quer ninguém a pensar que o 9.º lugar já salvou a equipa de descer de divisão. "Não vamos dizer que a manutenção está muito difícil, mas temos vários exemplos de equipas que estavam praticamente garantidas e não conseguiram os objetivos. Penso que isso não vai acontecer aqui, mas é muito importante não facilitar. Damos as coisas por consumadas e depois andamos com as calças na mão sem necessidade", alertou.
Já Paulo Sérgio defendeu o fim antecipado do campeonato, numa entrevista ao jornal O Jogo. Para o técnico do Portimonense o regresso do futebol "é prematuro e irresponsável", além de que não fazer sentido jogar sem público nas bancadas e "atirar os jogadores para a linha de tiro, sem coletes, tipo cobaias".
As palavras fortes do técnico foram amenizando com o aproximar do regresso aos relvados. Na conferência de imprensa de antevisão do jogo com o Gil Vicente, centrou-se na missão de salvamento do clube. "A equipa mostra-se ávida e ansiosa pelo regresso da competição, isto após quatro semanas a trabalhar com esse propósito. Sinto um grupo motivado, que se tem preparado no máximo para agarrar esta ocasião que temos em mudar a imagem negativa que existe devido a posição que ocupamos", começou por dizer, avisando desde logo que a condição física não será desculpa: "A questão física será igual para todos! Poderemos não estar no ideal, mas não vamos começar a olhar para isso como desculpa ou para arranjar conforto. Temos sobretudo de pensar positivo."
A posição na tabela não dá margem para errar. "Ser melhores e mais capazes que até aqui, com um espírito solidário e guerreiro, muita entreajuda, concentração e sem erros burros, a fim de somarmos os pontos necessários para sonharmos com a permanência e garantir a futebol de primeira em Portimão na próxima temporada", atirou o treinador de 52 anos, desvalorizando as ausências de Pedro Sá e Bruno Costa: "Nunca chorei a ausência de ninguém."
O regresso do futebol só foi possível depois de um protocolo de segurança elaborado entre a Liga e a Direção Geral de Saúde que se refletiu num código de conduta assinado entre todos os intervenientes no jogo. Um dos pontos referia a necessidade e obrigatoriedade de testar os jogadores 72 e 24 horas antes dos jogos. Um procedimento que as quatro equipas que hoje entram em ação - Portimonense, Gil Vicente, Famalicão e FC Porto - já cumpriram e sem casos de covid-19.
O Portimonense Sporting Clube nasceu numa casa onde se reparava calçado, a loja do senhor Amadeu Figueiras d'Andrade (sócio nº 1 desde a fundação e até à sua morte) a 14 de agosto de 1914. Nessa altura, um grupo de amigos resolveu fundar um clube que equiparia de preto e branco listado, fascinados pelo jogo com uma bola importado para o Algarve por José Pearce d'Azevedo, filho de mãe inglesa que estudava em Inglaterra e que trouxe consigo uma bola e umas chuteiras, com biqueira de aço e forradas a cabedal.
Os primeiros jogos foram em campos emprestados e os equipamentos eram pagos por cada jogador, assim como as deslocações a vilas e cidades vizinhas em carro particular ou comboio. Em 1926, um ano depois de criar estatutos e se registar, o clube passou por uma grave crise que quase levaria à dissolução, mas sobreviveu e iniciou uma escalada rumo à primeira divisão. Apoiados pela forte indústria conserveira da zona algarvia, os alvinegros de Portimão estiveram às portas do primeiro escalão em 1947, mas falharam a súbida no último jogo e perderam o apoio da indústria passando por uma nova crise.
Em 1977 o clube ascendeu pela primeira vez ao escalão maior do futebol português e viveu os tempos áureos na década de 80. Acabou o campeonato em 5.º lugar e chegou a jogar a Taça UEFA. O auge durou pouco e desde então a equipa anda num sobe e desce constante. Em 2013 o empresário de jogadores Teodoro Fonseca tomou conta da SAD do Portimonense, alavancando o emblema algarvio de novo.
Já o Gil Vicente foi fundado na cidade de Barcelos a 3 de maio de 1924 e deve o nome ao primeiro grande dramaturgo português Gil Vicente. Tudo começou quando um grupo de jovens que regularmente se reunia no atual Largo Doutor Martins Lima, conhecido por Largo do Teatro, por ali se encontrar o Teatro Gil Vicente, resolveu fundar um novo clube de futebol na cidade. O nome escolhido foi "Gil Vicente Foot-Ball Barcelense".
O início foi de dificuldade. Com a falta de equipamentos, bolas, jogadores e campos, o novo clube de futebol da então vila de Barcelos teve de fazer à vida para crescer. A indefinição era tal que o equipamento mudou várias vezes. Começou por ser vermelho, depois passou a ser verde e branco e só depois assumiu o vermelho e azul. Se o clube deve o nome a Gil Vicente, o estádio - Adelino Ribeiro Novo - deve-o ao jogador que perdeu a vida em campo, após chocar com um adversário no dia 16 de setembro de 1946.
Foi com um padre ao leme que o clube deu o salto de crescimento em plena revolução de Abril de 1974. A ligação à igreja não agradou a todos, mas a verdade é que o Gil Vicente se fixou na II Divisão e dois anos depois foi a sensação da Taça de Portugal, chegando às meias-finais. A estreia no primeiro escalão do futebol português aconteceu em 1989-90 pelas mãos de Rodolfo Reis.
Desde então anda num sobe e desce entre a I e a II Liga, tendo um 5.º lugar na época 1990-2000 como a melhor classificação de sempre Em 2018, o Gil Vicente desceu pela primeira vez na sua história à III Divisão do futebol português, para depois subir à I Liga, fruto de uma decisão dos tribunais na sequência do Caso Mateus, o que aconteceu esta época.