Auriol Dongmo vive para as medalhas e nunca lançou o peso tão longe como agora. Ontem, nem a chuva e o vento a impediram de conquistar o ouro na Taça da Europa de Lançamentos, em Leiria, com um ensaio de 19, 68 metros. É a terceira melhor marca de sempre da atleta portuguesa que ainda há duas semanas colocou a fasquia nos 19.90 metros nos Campeonatos Nacionais, em Pombal. Uma marca que lhe valeu o recorde pessoal, nacional e a melhor marca mundial do ano. Nessa altura, o estádio aplaudiu-a, mas ela nem esboçou um sorriso: "Ainda não chega para uma medalha nos mundiais.".É nesta luta diária e constante consigo mesmo que a atleta portuguesa se supera a cada ensaio. Sabe que é uma boa marca, mas sonha alto, atreve-se a querer mais, sente que "o corpo já tem aprisionado" o lançamento que quer e só falta "um clique no momento certo" para o libertar. E espera que seja assim nos Mundiais de pista coberta de Belgrado, entre 18 e 20 de março..A insatisfação crónica é um dos segredos do sucesso da atleta do Sporting, mesmo em contexto de treino, como o DN constatou numa sessão no Centro Nacional de Lançamentos, em Leiria. Quando Paulo Reis, o treinador, a avisa que está em último no exercício de saltos feito em grupo com Tsanko Arnaudov (peso), Rúben Antunes (martelo) e Eliana Bandeira (peso), a atleta sente-se "picada" e argumenta em bom português. Um sinal da plena integração da atleta nascida em Ngaoundéré (Camarões) a 3 de agosto de 1990, que chegou a Portugal em 2017, e que antecede o momento em que puxa dos galões e passa a liderar o exercício..Não gosta da repetição dos exercícios, mas sabe que é preciso paciência. Quando o treinador, sabendo que ela se deitou tarde e dormiu pouco por ter estado numa gala (e ter usado um vestido pela primeira vez em cinco anos), lhe diz para saltar uma sequência, ela agradece, mas segue o plano original em nome da performance desejada. Nem que para isso mude de ténis três vezes a cada sessão..Auriol sabe que o treino compensa. Chegou a Portugal com um recorde pessoal e africano de 17.92 metros. Hoje está a lançar 19.90. São quase mais dois metros de uma evolução brutal, que a colocam no auge aos 31 anos e depois de ser mãe. "Eu não quero ser apenas campeã nacional e europeia, quero mais. Quero medalhas nas grandes competições e para isso tenho de lançar acima dos 20 metros", disse ao DN, confessando que adora a pressão das grandes provas e precisa dessa margem de segurança para dar asas à ambição de "ganhar medalhas em todas as grandes provas". Todas? "Sim.".Depois dos mundiais de atletismo indoor (18 a 20), seguem-se os Mundiais ao ar livre (15 a 24 de julho) no Oregon (EUA) e os Europeus de Munique (15 a 21 de agosto)..Auriol Dongmo. A recordista nacional do peso que se ofereceu ao Sporting por Facebook.Os Camarões que a viram nascer a 3 de agosto de 1990 estão lá longe. Para Auriol nada se compara a representar Portugal. "Ninguém escolhe onde nasce, mas pode escolher onde viver. Eu escolhi Portugal. Tinha propostas e oportunidade para ir para França, mas quis vir para aqui e tenho o direito a defender o País que escolhi para mim. Eu escolhi defender a bandeira de Portugal. Sou portuguesa de coração. Dou tudo por Portugal e quando ouço o hino por causa de mim fico toda arrepiada e muito feliz", confessou a portuguesa de papel passado desde 2019, que ainda ontem fez soar A Portuguesa na Taça da Europa ao ganhar a medalha de ouro..O título europeu conquistado em 2021 deu-a a conhecer ao País. Poucos sabiam quem era Auriol Dongmo, a mulher do braço de ferro que tinha acabado de subir ao lugar mais alto do pódio nos Europeus. Hoje já lhe pedem selfies e autógrafos. Ela já se habituou e apesar de não ser de sorriso fácil com estranhos, gosta desse carinho..O título europeu também lhe valeu um patrocínio da Adidas. Tem agora "melhores condições financeiras" para se dedicar 100% ao lançamento do peso. Sente que recebe na medida em que dá? "Essa é uma questão muito complicada... Nós atletas precisamos de mais apoios. Se queremos pensar em grande e apontar às medalhas, temos de investir mais. O reconhecimento nunca é na mesma medida e se não houver um pódio o reconhecimento é zero", lamentou, admitindo que não tem razões de queixa..Para alguém tão exigente consigo própria não é de estranhar que o 4.º lugar nos Jogos Olímpicos Tóquio 2020 ainda a atormente. Lançou o peso a 19.57m e ficou a 5 centímetros da medalha. "Ainda não consegui ultrapassar isso. Ainda me dói muito. Fiquei triste, chateada... O tempo passa e isso pesa menos, acho que com o tempo vou conseguir ultrapassar isso. Quer dizer acho que só vou esquecer totalmente em Paris 2024". Que é como quem diz, aguardem e verão..Lida com a frustração olímpica à sua maneira e até agora não sentiu necessidade de recorrer a um psicólogo. "O meu psicólogo é Deus e quando tenho problemas falo com ele diretamente",diz, confessando que a força mental é a sua característica mais forte..A fé está bem presente na vida de Auriol. Foi a devoção a Nossa Senhora de Fátima que a trouxe até Leiria ... a apenas 30 km do Santuário de Fátima. Já perdeu a conta às vezes que lá foi. E basta assistir a um treino para a ouvir dizer "Nossa Senhora!". Uma expressão que dá para o lançamento bom e para o lançamento mau. "Eu sou muito religiosa, tudo o que eu tenho é Deus que me dá. Cada vez que eu me sinto fraca peço força a Deus e a Nossa Senhora para poder lançar mais". Atribuir toda essa força a Deus, não é desvalorizar todo o trabalho e força da própria Auriol como pessoa e atleta? "Não é só crença, também é muito trabalho, mas os dois caminham juntos. Com fé, o trabalho fica melhor. Se tens fé mas não trabalhas a medalha não vai cair do céu de certeza. A fé é a base, depois há o meu trabalho e o do meu treinador. Se acontecer um terramoto e a casa não cair é porque a fundação é forte", respondeu a campeã da Europa..Apesar de não gostar de falar da vida pessoal, não resiste a falar do filho de três anos, que já vai para o treino com ela e lança o peso: "Tem uma bola dele e tudo. Quando meto adesivo dos dedos para lançar ele dá-me a mão e pede "mãe mete aqui". E eu meto os adesivos, depois passa a mão no magnésio como eu e lança.".Ficou grávida menos de um ano depois de chegar a Portugal e teve de interromper a competição. O Sporting manteve a aposta e ela retomou a competição em 2019: "Ser mãe ajudou-me muito. Deixei de treinar só por mim. A maternidade é compatível com a alta competição, mas é preciso ter paciência e ajuda. Eu treinei até aos oito meses de gravidez e duas semanas depois de ser mãe já estava a treinar, mas há quem precise de mais tempo. Parar seis meses pode atrapalhar, mas não deve impedir ninguém de ser atleta. É um processo. Difícil no início, mas recompensador.".Antes dela nenhuma portuguesa tinha passado os 17.54 metros no peso. E apesar do recorde mundial ainda estar longe - 22,63 m de Natalya Lisovskaya (1987) - para Auriol Dongmo não há limites!.isaura.almeida@dn.pt