Nascida em Lisboa em 17 de novembro de 2001, Kika Nazareth é uma estrela em ascensão. Cresceu a jogar futebol no parque junto a casa, em São Domingos de Benfica. Aos 22 anos já conta com quatro títulos nacionais, num total de 12 (!) troféus conquistados no Benfica, antes de se mudar para a Catalunha para jogar na melhor equipa do Mundo. Quatro golos e sete assistências em 19 jogos até ao momento no Barcelona. Está a correr como esperava? Estar no Barcelona já é correr bem, mas estou aquém daquilo que posso fazer. Tem tudo para correr ainda muito melhor. É a melhor equipa do mundo e o jogo acaba por fluir naturalmente porque as jogadoras também são as melhores e é fácil. O Barcelona tem uma dinâmica engraçada. O plantel é tão bom que a equipa roda muito. Não há um onze titular. Sendo o mais honesta possível não estava à espera de jogar tanto já no primeiro ano e de começar tantas vezes no onze inicial, mas em termos de jogo exijo mais de mim. Eu gostava de chegar e já estar a fazer golos todos os jogos, mas isso acho que qualquer jogadora quer. Sou muito exigente. Gosto de elevar o patamar e confesso que quando vim para o Barcelona ainda que não quisesse criar expectativas, inconscientemente acabei por criá-las e tive um início tramado. Sou bastante consciente e sei que estas coisas levam tempo. .O início foi “tramado” a nível desportivo ou emocional... Em termos futebolísticos, acho que sempre tive um jogo parecido ao que dizem ser o jogo espanhol, por isso acho que me enquadro, não digo na perfeição, mas que me enquadro bem neste estilo de jogo. O mais difícil foi a adaptação fora de campo. Foi uma mudança um bocadinho radical. Estava habituada a um ambiente muito familiar, mesmo no Benfica, para uma vida de casa-treino-casa-treino... e sozinha. No início era tudo muito estranho, porque eu adoro falar, adoro expressar-me e quando me perguntavam se estava tudo bem, eu também não ia dizer, “olha, não, ontem tive um dia menos bom”. Essa foi a grande dificuldade, que aos poucos já está a ser ultrapassada pelas ligações que já comecei a ter dentro da equipa. Mas sem dúvida que eu jogo melhor se estiver feliz..O valor da transferência - 500 mil euros - e o facto de ser a segunda jogadora mais cara de sempre do futebol mundial pesa? Pesa, pesa. Agora já não tanto... fui-me libertando, com ajuda, com conversas, com os conselhos de colegas, pais, treinadores, mas no início dizia para mim: “Estou na melhor equipa do mundo, com as melhores jogadoras do mundo, o que vão achar de mim, se eu falho um passe? Vem o dinheiro à conversa?” As coisas estão a ser desconstruídas aos poucos. Interiormente, acho que estou a fazer um trabalho bem feito. Sei porque estou aqui, portanto, se falhar um passe, um golo, seja o que for ... lembro-me que os melhores também falham. Só preciso dizer mais vezes: “tu mereces”..E como é jogar no Barcelona, uma equipa que tem 13 vitórias em 13 jogos na liga espanhola. O início foi bem assim, “uau”. Eu chegava a casa, metia as mãos na cabeça e sorria e ria sozinha e pensava "isto não é real". Mas é, jogo no Barcelona. Agora as coisas começam a ser um bocadinho mais normais, embora jogar com uma Alexia Putellas ou uma Aitana Bonmati seja de outro Mundo, mas já é mais normal, já é o meu dia a dia. O Barça não é só o Barça, há uma atmosfera brutal à volta desta equipa. Eu já sentia isso no Benfica, mas aqui é um absurdo. Às vezes parece que ainda não caí em mim, que jogo no Barcelona, que é a grande potência mundial do futebol feminino atual..Joga com as melhores do Mundo dos últimos quatro anos, Alexia Putellas e Aitana Bonmatí. Pensa ver a cerimónia do The Best sem ser pela televisão... Penso. Penso. Sei que tenho qualidade para chegar lá, estar na cerimónia e ser candidata. Quero sempre ser a melhor em tudo que faço, seja a jogar às cartas ou pingue-pongue com o meu pai. Aqui tenho a sorte de poder querer ser a melhor no meio das melhores. E adoro esta competição que há entre todas. Ainda tenho muitos anos e muito suor pela frente. Acredito porque posso acreditar e porque sei aquilo que valho. É fazer para que aconteça. .FOTO: FC BARCELONA.Então, a realidade está a ser melhor do que o sonho de criança? Sim. Começando pelo simples facto de em criança nem sequer ter isto como sonho. Ser jogadora não era sequer conversa que tivesse. Quando me perguntavam o que queria ser quando fosse grande, não dizia “quero ser jogadora de futebol”, dizia que queria ser atleta profissional e ir aos Jogos Olímpicos. O futebol nem era opção. Só mais tarde, aos 15/16 anos tive essa conversa e aos 17/18 anos, já jogadora do Benfica e da seleção, é que comecei a perceber que se calhar era possível fazer do futebol profissão. Na infância era tudo muito vago, portanto, sim, o que estou a viver vai para lá de qualquer sonho de criança. Agora faço do futebol vida e os estudos são um plano B. .E qual é a primeira memória que tem do futebol? Jogar com o meu pai. Vivia a metros da escola e do parque. Saía da escola, ia a casa buscar uma bola e ia para o parque. Eu liderava o parque, já conhecia pessoas, era eu que fazia as equipa... Os meus pais controlavam-me da janela. A minha mãe, ao início, não achava muita piada, mas sempre tive muita liberdade para jogar. O meu pai via-me feliz e jogava comigo. Na rua, as pessoas mandavam bocas boas, do género -“tens de ir para o 1.º Dezembro, tens de ir para o Fofó”-, que tinham as melhores equipas. Portanto, a minha primeira memória do futebol é muito boa, mas foi sempre sem pensar no futuro, sem fazer planos e acho que sem ter sonhos, eu simplesmente jogava. .E como é que a mãe foi sendo convencida? Da forma mais natural possível. Mãe é mãe e gosta de me ver com um sorriso na cara. A minha mãe nunca me disse para não jogar, mas agora sei que dizia ao meu pai que não lhe agradava muito. Ao início ainda havia muito aquele preconceito: é futebol, é masculino. O tempo foi passando e quando as coisas começaram a ficar mais sérias e assinei um contrato com o Benfica, começou a perceber que se calhar estava a conseguir ultrapassar ou deitar abaixo algumas barreiras que ainda existiam. Sem desvalorizar aliás, as outras gerações que tiveram um trabalho importantíssimo no derrubar barreiras. Hoje a mãe é fã número um, incondicional..Era daquelas miúdas que achava que era a única rapariga que jogava tão bem ou melhor que os rapazes... Mesmo. Na altura eu jogava no parque e depois passei para a equipa da escola, a equipa de futsal [Os Torpedos] e só jogava com rapazes. Era a única menina. De vez em quando enfrentava uma ou outra equipa que também tinha uma menina. Aos 13 anos fui a um treino no Fofó e nunca tinha visto nada assim. Fiquei de boca aberta a ver a Ana Lúcia e a Andreia Jacinto só a dar toques e eu a pensar "wow, incrível, espera, vou ter aqui alguma competição". Lembro-me de chegar a casa e falar com os meus pais da minha reação. Depois tive o privilégio de jogar com elas na seleção e contei-lhes como me impressionaram. Sou muito transparente e elogio sem problema..Consegue imaginar o tempo em que as jogadoras não tinham balneários para se equiparem, o treino era sempre fora de horas e os jogos ao domingo de manhã a troco de um sumo e uma sandes? Eu ainda vivi isso, mas não ao nível das histórias que ouço da Sílvia Rebelo, da Carolina Mendes ou da Dolores Silva. Sinto-me tão privilegiada... Hoje, a minha cabeça mudou, a perspectiva mudou porque as minhas experiências também mudaram, mas eu era uma miúda de 16 anos que só queria jogar, era-me completamente indiferente se tinha de ir comer ou tomar banho a casa. O futebol para mim sempre foi felicidade. Fui muito privilegiada e continuo a ser. Na altura do Fofó (2016-17), por exemplo, eu treinava com as sub-17, com as sub-19 e com as seniores no mesmo dia. Eu ficava quatro horas, até à meia-noite, a treinar e tinha aulas do dia a seguir. E no domingo de manhã, mais depressa se chateavam os meus pais que me tinham de ir levar e ir buscar ao local dos jogos do que eu. .E aconteceu tudo muito rápido. Estreou-se pelo Benfica aos 16 anos e pela seleção aos 17 ... O Benfica é o meu amor. Estou no Barcelona porque brilhei no Benfica. Ainda agora saí e estou a começar a carreira, mas voltar um dia é quase uma obrigação. Estive no início do projeto do futebol feminino do Benfica, clube que me deu todas as condições para eu poder evoluir, conquistar troféus, ser feliz em campo. E isso não se esquece, da mesma forma que recordarei para sempre a primeira internacionalização [frente a Itália, no Mundialito do Algarve, a 4 de março de 2020]. Representar a seleção, vestir a camisola do nosso país é muito bonito..Como foi esse jogo em que a seleção bateu o recorde de assistência - 40.189 - num jogo de futebol feminino? Tivemos alguma preparação mental para esse jogo no Estádio do Dragão [dia 29 de novembro, diante da Rep. Checa (1-1)]. Houve conversas a avisar que iam estar muitas pessoas, que íamos viver um ambiente que nunca tínhamos tido em Portugal e para não nos deixarmos afetar pelo ambiente do estádio, mas dá tanto gozo jogar com o estádio cheio. Nota-se que as pessoas já não vão ver os jogos porque a sobrinha joga... já há paixão em ver os jogos e isso é brutal. Lembro-me há dois/três anos me pedirem bilhetes para ver o Benfica e eu dizer, "não consigo, mas também são três euros", e ouvia "ah, dar três euros para um jogo de futebol feminino". No Barcelona vendem-se bilhetes a 25 euros e o estádio os enche. Há jogos maus, há jogos bons, há jogos péssimos, mas o produto em si já se vende e é brutal com 22 anos poder fazer parte desta mudança..A presença da seleção em europeus e mundiais ajudou... O futebol feminino em Portugal evoluiu muito nos últimos tempos e as barreiras foram quebradas mais rapidamente na última década. As coisas estão a ser bem feitas. Hoje existe a preocupação de dar condições, de fazer com que se evolua não só a nível dos clubes, também ao nível das seleções. Eu era uma Kika antes e outra depois do Mundial de 2023. As pessoas já me reconheciam, já sabiam quem nós éramos, mas, vou falar por mim, depois do Mundial aterrei em Lisboa, fui para o Algarve passar a férias e de repente era uma celebridade e tinha pessoas a dizer: “Acordei às sete da manhã para ver o jogo”. Uau. Claro que é uma responsabilidade acrescida, mas é uma responsabilidade boa..Em 2025 , Portugal vai jogar mais um europeu, o terceiro da história da seleção. Acho que o próximo Europeu [2 a 27 de julho] também vai atingir patamares que nós não estamos à espera, mas se calhar devíamos aceitar que isto, vai ser o normal. Que ver pessoas com as camisolas da seleção com os nossos nomes vai ser uma coisa normal... .Portugal ficou no grupo de Espanha, Bélgica e Itália. Como vai ser enfrentar a campeã mundial... A Espanha é sempre aquele jogo que ninguém quer jogar (risos). Mas tirando isso, acho que é sempre possível porque estamos numa fase final de um Campeonato da Europa. A partir desse momento, ainda que haja favoritos, tudo pode acontecer. O futebol é incerto e isso é o que me dá gosto. Acho que tivemos muita sorte em ter calhado no grupo B porque cruzamos com o grupo A..Já está a pensar na fase a eliminar, depois da fase de grupos... Acelerei um bocadinho (risos). Temos de pensar que vamos ganhar. O Mundial mostrou isso mesmo. Acho que é possível. O Mundial e aquele jogo com os EUA (0-0) ficou atravessado. Podíamos ter ganho e passado. Mostramos que temos capacidades. É sermos nós no Europeu. Vamos jogar na Suíça que é como jogar em casa. Os dias podem ser giros e podemos sair com o sorriso na cara dos jogos e da fase de grupos. .isaura.almeida@dn.pt