“A amizade é o que guardo com mais carinho. A amizade e o prazer que tive em fazer aquilo que gosto. Foi muito tempo, mas foi muito bom.” A frase de Carlos Godinho, quando foi agraciado com o troféu Quinas de Ouro, na gala da Federação Portuguesa de Futebol, já dava a entender o adeus a uma casa que foi sua durante 50 anos. O team manager da seleção nacional nos últimos 33 anos despediu-se do cargo em Split, no empate (1-1) de Portugal com a Croácia, e deixa a FPF no final deste ano. .Após cumprir o serviço militar, o então jovem Carlos Godinho que adorava desporto, mas tinha pouco jeito para o praticar, respondeu a um anúncio de jornal que pedia funcionários para a FPF, longe de saber que lá iria passar 50 anos de uma vida dedicada a servir as quinas. Entrou em 1974 e viveu muitos “25 de Abril” do futebol português. O mais antigo colaborador da federação começou a trabalhar diretamente com as seleções nacionais em 1984 e passou a integrar os quadros da seleção principal em 1991 pela mão de Carlos Queiroz. .Tinha acompanhado o então selecionador nacional sub-20 nos títulos mundiais de 1989 e 1991 e acompanhou-o depois na passagem para a seleção A, como secretário do departamento técnico. Estreou-se no banco nacional no antigo Estádio das Antas, no dia 4 de setembro de 1991, num jogo de preparação que Portugal empatou 1-1 com a Áustria. Esteve em 390 partidas, oito fases finais de Europeus e de seis Mundiais, sempre na sombra..Esteve na origem dos cursos de treinadores, na autonomização das seleções, na profissionalização da logística associada à equipa das quinas, como estágios, viagens, hotéis, etc. Assistiu de perto à ascensão da chamada Geração de Ouro, de Figo, Rui Costa e companhia, e à estreia de Cristiano Ronaldo (a 20 de agosto de 2003 diante do Cazaquistão, em Chaves) e de centenas de outros internacionais. .Luís Figo (a par de Pauleta) foi o jogador que mais o marcou. Ao DN o antigo capitão da seleção confessou que “Carlos Godinho foi como um pai”, que o recebeu com carinho, quando chegou miúdo e com sonhos às seleções jovens: “ Vivemos muitos episódios, muitas histórias, muitas alegrias, algumas tristezas, mas sem dúvida que eu o tratava como um apodo de presidente. Só por isso se pode ver a qualidade não só profissional, mas também humana do que é o Carlos Godinho.”.Por isso, Figo considera a saída do team manager “uma perda enorme para a seleção nacional”, porque ele “já fazia parte da família”. Desejando ainda as maiores felicidades e os maiores êxitos ao “amigo”, que considera também uma “referência dentro da Federação”. .Da final perdida do Euro2004 ao título no Euro2016.Esteve na organização da candidatura portuguesa à organização do Euro 2004 e no memorável percurso da seleção liderada por Luiz Felipe Scolari até à final, perdida para a Grécia (0-1). O título europeu de 2016, conquistando diante da França (1-0), em Paris, valeu por muitos. O golo de Éder foi determinante na final, mas o experiente team manager fez a diferença nos bastidores. Godinho entrou em campo muito antes dos jogadores sequer conseguirem a qualificação, acreditando que Fernando Santos iria apurar a equipa das quinas garantiu um dos mais desejados centros de estágio, o CNR de Marcoussis, que o selecionador nacional viria a considerar determinante para o desfecho vitorioso, dada a facilidade logística e a proximidade com a comunidade portuguesa, que permitiu aos jogadores sentirem-se em casa. .Carlos Godinho tornou-se insubstituível num mundo onde as substituições são regra. Foi um descomplicador de problemas e um facilitador de vitórias. Satisfez as exigências de 10 seleccionadores sem deixar de ter voz própria: Carlos Queiroz, Nelo Vingada, António Oliveira, Humberto Coelho, Agostinho Oliveira, Luiz Felipe Scolari, Paulo Bento, Fernando Santos e Roberto Martínez. Aquele com quem foi mais fácil trabalhar e com o qual desenvolveu uma amizade sólida foi Felipão. .O menos bom também esteve presente na sua longa carreira. Viu Portugal falhar o Euro1992 e o Mundial1994, viveu a tormenta do Caso Paula (presença de prostitutas no hotel de estágio da seleção), além do célebre soco de João Vieira Pinto ao árbitro argentino Ángel Sánchez no adeus ao Mundial da Coreia/Japão, marcaram-no negativamente. Na altura, o então presidente da FPF, Gilberto Madaíl, saiu em sua defesa: “Enquanto estiver na FPF, Carlos Godinho será intocável.”.E foi. Mas sem deixar de lutar pelo que achava correto. Um certo dia, resolveu pedir a Luís Figo, Fernando Couto, Pauleta e companhia para que ajudassem a profissionalizar a estrutura da seleção. Melhorar a comunicação, abolir a regra dos quartos partilhados e privilegiar a recuperação física - foi nesse ano que começou a colaboração de António Gaspar, que ainda hoje se mantém nos quadros da FPF - foram medidas sugeridas pelos jogadores e acatadas pelo team manager nacional..No início do ciclo de Fernando Gomes na liderança da FPF, Amândio de Carvalho, que tinha sido vice-presidente na direção de Madaíl e também estava da saída, recomendou mantê-lo no cargo. “Carlos Godinho é um dos pilares da organização da seleção, é nele que tem estado assente toda a logística. É um excelente profissional, conhece todos os meandros das seleções”, afirmou na altura o já falecido dirigente à RR..Em 2016, levantou o Troféu Henri Delaunay e em 2019 festejou a conquista da Liga das Nações. Faltou-lhe um Mundial. Esse é o legado que deixa, porque quem o conhece bem sabe que ele não espera reconhecimento pelo que fez, mas espera que alguém faça melhor em nome da sua paixão, a seleção nacional..isaura.almeida@dn.pt