A arte de projetar estádios. Os monstros citadinos que Rita Ochoa ajuda a transformar em espaços democráticos

Sempre que dava um jogo de futebol na televisão, Rita Ochoa mudava de canal. Hoje é uma das maiores referências na arquitetura de recintos desportivos. Trabalha na AFL Architects, em Manchester, e tem 11 projetos em andamento, incluindo o King Abdullah Economic City, na Arábia Saudita, que irá receber o Campeonato do Mundo de futebol, em 2034.Tanto quanto sabe, é a primeira mulher a desenhar um estádio em Portugal. Integra o consórcio do projeto vencedor para a reabilitação do Estádio Nacional, além de ter coordenado o projeto do Estádio José Alvalade (propriedade do Sporting) e de ter feito a conceção e coordenação de projeto do Estádio Lusail, no Qatar, que recebeu a final do Mundial2022. Entre os projetos nomeados/premiados mais recentes estão o Brentford Community Stadium e o Hull Arena, em Inglaterra, bem como o Estádio Olímpico do Turquemenistão.Rita acredita que não gostar de futebol permite-lhe olhar para os recintos desportivos como espaços sociais, que vão ser usados por pessoas e não apenas por adeptos: “Perceber ou tentar perceber o comportamento humano das multidões é a minha missão. Fascina-me criar espaços de grande alegria e grande revolta também. Um estádio é o espaço mais democrático que existe, um sítio onde cabem todas as classes e géneros... para ver futebol, râguebi, um espetáculo da Taylor Swift ou serem abrigos massivos em situações de emergência.”Para a arquiteta, “os estádios são um dos três grandes monstros nas cidades” e é preciso antecipar como afetam a vida das pessoas. “Ao contrário dos hospitais e dos aeroportos, os estádios são menos sustentáveis, trabalham uma ou duas vezes por semana e não podem ser elefantes brancos para os clubes ou para as cidades. Cabe a nós, arquitetos, fazê-los o mais flexíveis possível para terem aspetos comerciais”, explica a portuguesa nascida em Lisboa em 1976.Cada projeto envolve centenas de pessoas para dar uma resposta arquitetónica artística, técnica e humana aos sonhos dos clientes, dentro do orçamento e do prazo predefinido. Ouvir o pulsar da comunidade é o segredo para um projeto vencedor: “Os arquitetos e arquitetas desenham para comunidades diversas. A melhor forma de as servir é compreender essa diversidade, algo que se torna mais fácil quando cada um traz experiências de vida e perspetivas distintas para o mesmo projeto. Por isso, defendo fortemente o trabalho em equipa e incentivo a diversidade da mesma. Com mais mulheres, e outros géneros, na Arquitetura, teremos obviamente cidades e edifícios mais inclusivos”.E apesar de “não notar” distinção em termos de talento, abordagem ao trabalho ou gestão de equipas entre arquitetos homens e mulheres, Rita observa que, “em geral, as mulheres que lideram equipas tendem a partilhar mais a responsabilidade pelos sucessos, desvalorizando, por vezes, o próprio talento”. No seu caso, o reconhecimento tem sido progressivo. Esteve nomeada para os BD Female Architectural Leader of the Year em 2019 e, em 2023, integrou a restrita lista, na categoria Modelo Mais Inspirador, dos Inspire Awards, que celebra o que há de melhor em diversidade e inclusão na construção, engenharia e habitação do Reino Unido.. De Lisboa a Manchester em plena criseFilha de um operador de câmara, Rita adorava tudo o que era imagem e gostava de ter seguido cinema, mas seguiu o conselho do pai e escolheu “uma profissão com mais futuro”. Como desenhava bem e sempre se interessou pelo mundo das Artes, cursou Arquitetura - a paixão pela imagem e cinema ficaram e tem hoje algumas curtas metragens exibidas e premiadas nos melhores festivais, como Lisboa, Vila do Conde, Berlim e Las Vegas.Ainda no estágio de arquitetura participou no projeto da Estação de Metro das Olaias, um mundo de cor que a fascinou e prendeu ao método criativo. Desenhar algo e vê-lo a ganhar vida, ser construído, “foi e é das coisas mais emocionantes” que experienciou. Trabalhou 12 anos no gabinete de arquitetura de Tomás Taveira e esteve diretamente envolvida nos projetos de três estádios para o Euro2004: o Estádio José Alvalade (1.º lugar em concurso de design e primeiro Estádio UEFA 5 estrelas), o Municipal de Aveiro e o Magalhães Pessoa, em Leiria. Depois do Euro2004 dar 10 novos campos a Portugal, ela sabia que teria de emigrar para continuar a fazer o que melhor sabia e gostava.Em 2013, em plena crise económica, enquanto a troika se instalava em Portugal, Rita enviava currículos para uma empresa inglesa que angaria profissionais na área da arquitetura. Entre as 23.00 e as 08.00 da manhã seguinte recebeu oito convites! “Fiz oito entrevistas e fui convidada para todos os gabinetes. O que em Portugal seria impensável. Escolhi a AFL Architects, de Manchester, onde ainda estou hoje”, contou a professora convidada nas universidades de Milão, Bath, Salford e Lisboa, onde é coorientadora de uma tese de mestrado. Porque acredita que “melhores arquitetos desenharão um mundo melhor para todos”.Inspirada por Álvaro Siza Vieira, que, segundo ela, inspirou uma geração inteira e “contribuiu para elevar o reconhecimento da qualidade da arquitetura portuguesa, tanto no país, como no mundo”, admira igualmente obras de Peter Zumthor, principalmente o hotel/spa, na Suíça, construído em 1996, com pedra local, madeira e água, que resultou numa “autêntica viagem sensorial, fruto de um design extremamente cuidado”.Agora está a “desenhar” o primeiro guia de arquitetura dedicado a estádios de futebol feminino. Um pedido da Women’s Professional Leagues de Inglaterra. “Um documento que irá ajudar os clubes e os arquitetos a desenharem estádios inclusivos, maioritariamente dedicados a equipas femininas. Estamos a falar de uma nova tipologia de arquitetura. Os balneários serão diferentes, haverá zonas para as jogadoras poderem amamentar e deixar os filhos enquanto jogam, por exemplo”, argumentou a arquiteta, lembrando que os clubes não conseguem colocar as equipas femininas nos campos principais.Rita Ochoa confessa que nutre uma admiração especial pela funcionalidade elegante do Johan Cruijff Arena, a casa do Ajax, que a inspirou para vários projetos. E se tivesse de atribuir um Prémio Pritzker a um recinto desportivo seria dado ao Estádio Municipal de Braga, obra da autoria de Souto Moura. Mas Rita Ochoa consegue ver arte no mais simples e inócuo pormenor, como o túnel de acesso ao relvado do pequeno Millerntor-Stadion, em Hamburgo, que é casa do St. Pauli.A sustentabilidade está presente em todos os seus projetos, mesmo que isso obrigue a encontrar soluções desafiantes ao nível dos materiais. “Desenhei um estádio para o Japão (ainda é confidencial). Pediram-me um edifício muito sustentável e usei para as fachadas a madeira queimada - yakisugi -, que se usava muito na arquitetura mais antiga e que é súper sustentável. Impecável. Agora não temos orçamento. E como é que dou a volta a esta narrativa? Tenho de ter em conta que um estádio tem o prazo mínimo de 50 anos e todos os materiais têm de ter uma garantia ou uma durabilidade de meio século.”. Respeitar a história do monumentoFaz parte do consórcio liderado por Aires Mateus, que venceu o concurso de ideias para a reabilitação do Estádio Nacional, juntamente com os arquitetos José Maria Gonçalves Vieira e Tomás Cruz. “É um desafio superinteressante. O Estádio Nacional tem 81 anos e o significado histórico do recinto é de uma importância extrema e nunca iríamos querer destruir aquelas fachadas ou o que quer quer fosse”, confessou, lembrando que o projeto final pode ser “um pouco diferente” do projetado. Tudo depende do cliente.O caderno de encargos era muito prescritivo, por causa do processo de classificação como Património Nacional, mas não foi entrave à criatividade, segundo Rita Ochoa. “Os arquitetos precisam de limites e fronteiras” e, seja ou não um momento classificado, o património existente é sempre para respeitar: “Houve tempo em que se pensava que reabilitar era reconstruir, tentar imitar. A tendência agora, e com a qual concordo perfeitamente, é criar um contraste para que quem usufruir do espaço perceba o que é antigo e o que não é.”Foi essa a estratégia no Jamor. “Preservar aquela fachada, não lhe tocar, tem um tempo, tem uma simbologia. Agora, vamos acrescentar algo que é claramente desenhado em 2025, porque não só a forma é muito mais purista e muito mais minimalista, mas porque a engenharia o permite também. Estamos a marcar uma época. Daqui a 30 anos, 40 anos, as pessoas vão olhar para trás e ver que a cobertura é do início dos anos 2000, diferente do edifício”, disse a arquiteta, que também tem em mãos outro estádio português, do qual ainda não pode falar.isaura.almeida@dn.pt .Novo Jamor idêntico ao velho, mas com mais segurança e conforto (veja as fotos)

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