Logo a abrir temos cadeiras de veludo vermelho já gasto viradas para um ecrã, como no cinema, onde passam imagens de vários filmes antigos realizados a partir dos anos 1960, sobre a vida do povo argelino e o combate político anticolonial. As imagens passam com as suas imperfeições, “riscadas, desvanecidas, apagadas”, transformando-se nalgumas passagens em verdadeiras abstrações. Nesta primeira “cena” de um conjunto de quatro, Zineb Sedira “evoca a fragilidade e a descontinuidade da memória e dos seus suportes, e a vulnerabilidade dos arquivos, nomeadamente dos arquivos de cinema argelinos”. E foi nos arquivos da Cinemateca de Argel que a franco-argelina mergulhou para criar a instalação Standing Here Wondering Which Way to Go que ocupa agora o Espaço Projeto do Centro de Arte Contemporânea (CAM) da Gulbenkian, em Lisboa. Nesse processo de pesquisa, Zineb Sedira encontrou uma película que se tornou o tema central desta obra. “Cruzei-me com este filme, do William Klein, de 1969, sobre o Festival Pan-Africano de Argel, que foi comissionado pelo Estado da Argélia. O festival era muito sobre a cultura popular, por isso eu estava interessada naquele festival, a cultura popular é muito importante especialmente para países colonizados, para voltarem às raízes e encontrarem a sua identidade”, disse Zineb Sedira, na apresentação desta exposição. . O projeto tinha sido encomendado pelo CAM em colaboração com outras três instituições (Jeu de Paum de Paris, IVAM de Valencia e Bildmuseet de Umeå, Suécia) e o Festival Pan-Africano encaixava nas suas preocupações artísticas. “Quando fui convidada, em 2018, 2019, já estava interessada em como a arte e a cultura são usadas como uma ferramenta, ou uma arma, para combater guerras, sejam elas quais forem. Mas, neste caso, era o anticolonialismo, porque o meu background vem dos meus pais que viveram a colonização da Argélia pela França”. Para este grande evento que juntou música, dança, cinema, teatro e arte foram chamados países africanos, mas a participação foi mais abrangente: “O que é interessante no Festival Pan-Africano, é que foram convidados não só os países africanos, como os movimentos de libertação no mundo que estavam a lutar contra o fascismo ou o colonialismo. Tínhamos, por exemplo, o movimento de libertação irlandês, os espanhóis e portugueses que lutavam contra o fascismo, baseados em Paris, tínhamos os Black Panthers, o movimento de libertação do Chile, do Vietname, a Fatah, da Palestina, muitos movimentos”, explica. . O Festival tornou-se não só uma grande celebração da cultura popular, como também um espaço de debate político. “Apesar de ser pan-africano, o festival abriu-se a muito debate antifascista, antirracista, a muita discussão numa altura em que muitos países se estavam a libertar do colonialismo ou prestes a libertar-se”, sublinha a artista que vive entre Londres e Paris. Rita Fabiana, a curadora, diz que as quatro cenas ou momentos da exposição “partilham, de certa maneira, deste espírito de celebração, de festa, de solidariedade, fraternidade, muito contextualizado pelos movimentos de luta, de libertação”. E sublinha as ligações que se estabelecem com Portugal: "A Argélia está intrinsecamente ligada à nossa própria história, porque estavam em Argel um grupo de portugueses antifascistas e anticolonialistas que lutaram pela democracia em Portugal”.Nesta mostra incluiu-se também um conjunto de fotografias sobre as ex-colónias portuguesas. “Em Lisboa temos um grupo muito especial de fotografias, inédito, de Boubaker Adjali, realizadas em 1970 em Angola e Moçambique, mas também um conjunto de documentação que vem enriquecer, como o pequeno núcleo à saída da exposição com edições portuguesas dos anos 70, de luta e de libertação dos povos", aponta Rita Fabiana. .A exposição inclui a recreação da sala de estar da casa da artista em Brixton, Inglaterra (Way of Life), e os murais For a Brief Moment the World was on Fire e We Have Come Back, o primeiro com fotomontagens de revistas, recortes de jornais, capas de discos de vinil e objetos pessoais da artista, e o segundo com capas de vinis da coleção de Zineb Sedira, de música de intervenção dos anos de 1960, como Archie Shepp, Miriam Makeba, Nina Simone ou Victor Jara. . “Trabalhando nos arquivos, encontrei muitos documentos e decidi usar algum do material e pô-lo nas colagens. E a isso juntei as minhas próprias coleções de objetos. Coleciono muitos objetos dos anos 60, gosto de roupa dos anos 60, portanto, trouxe a minha coleção de objetos, a minha coleção de vinis, e inclui-os nas fotomontagens.”Zineb Sedira diz que no seu trabalho “é muito importante combinar o pessoal e o político. É importante pela minha própria história de colonização, dos meus pais a viver em França, eu a crescer em França, nos anos 60. Poder misturar a minha história pessoal com a dos meus pais na história maior da Argélia”. . A sua sala de estar cria relações com o Festival Pan-Africano a vários níveis, além do facto da decoração ser “completamente dos anos 60”. A artista explica: “Brixton, em Londres, é uma zona muito militante, porque nos anos 60, os Black Panthers britânicos estavam sediados lá. Brixton era um hub de muitos movimentos anticolonialistas e antirracistas. E por isso era ainda mais pertinente trazer a minha própria sala de Brixton para aqui. Também era uma forma de trazer a minha identidade britânica, porque fala-se sempre de eu ser francesa e argelina, mas eu vivo sobretudo no Reino Unido”. Os móveis vieram mesmo da sua casa e o resto, como as estantes, quadros, etc., são foto colagens. “A sala de estar era uma metáfora interessante para o festival. Porque na minha sala de estar eu danço, como, bebo, canto, debato com amigos, convido amigos para jantar ou beber um copo, é um espaço de convívio, de hospitalidade, por isso era uma boa analogia para o festival, porque faço nesta sala do que o se vê no festival.”A pandemia e as obras de remodelação do CAM atrasaram a apresentação deste projeto de Zineb Sedira, no entanto, ela considera que a temática “continua muito pertinente, sobretudo com a política que está acontecer no mundo. Penso que este projeto fala ainda mais agora, ao contexto particular dos dias de hoje, do que em 2019”. No final da apresentação da exposição à imprensa, entre um café e uma fatia de bolo, Zineb Sedira respondeu a perguntas do DN. A memória histórica é central no seu trabalho?Muito do meu trabalho é encontrar eventos ou histórias da Argélia, que tenham sido negligenciadas, ou são desconhecidas. Eu encontro estas histórias e depois tenho de as partilhar. Por isso, é sobre transmitir. É sobre como a memória sobrevive. É sobre lembrar e arquivar histórias. Então, o Festival Pan-Africano, é claro que na Argélia toda a gente sabe sobre isso, mas internacionalmente as pessoas não percebem. Alguns países africanos sabem, mas como aconteceu há muito tempo, as pessoas esqueceram o que aconteceu. Para mim foi importante trazer isso de volta. E essa ideia do pan-africanismo também é uma ideia de amizade entre as pessoas do continente africano. Portanto, todos os meus trabalhos são sobre encontrar histórias que ninguém conhece ou que foram negligenciadas, às vezes, pelo Estado da Argélia, às vezes simplesmente pelo tempo, às vezes por erosão, ou o que for, e trazer isso de volta e compartilhar as histórias. Esta instalação foi encomendada em 2019, mas ganha um novo significado hoje tendo em conta os acontecimentos mais recentes da política internacional?Acho que é relevante hoje porque há um aumento do fascismo em toda a Europa. Eu moro entre Londres e Paris, e eu sei que em Londres e Paris a extrema direita está a tornar-se muito forte. E também na Itália, aqui, etc., etc. Nós pensávamos que nos tínhamos livrado disso nos anos 60 e 70, porque havia a esquerda, os comunistas e os partidos socialistas a lutar contra o fascismo. Na verdade, está a voltar agora. Acho que olhar para trás, para o que aconteceu antes, mesmo que muitas dessas ideias tenham falhado, é muito importante. Voltarmos para aquele momento, repensarmos, para vermos o que aconteceu, e para refletirmos e criarmos novos modelos. Os anos 1960 e 1970 foram um momento muito criativo, politicamente criativo, em que as pessoas estavam a tentar encontrar novas maneiras de lutar contra o fascismo. E nalguns casos funcionou, noutros não funcionou tão bem, mas isso não significa que hoje não possamos voltar a isso, analisar como podemos levá-lo para a política atual. O que está a acontecer em Gaza, no Sudão, o que está a acontecer em muitos, muitos países... Há ainda lugares que colonizam outros lugares. Isso não acabou, e podemos perguntar-nos por que não acabou, depois do momento muito forte do colonialismo dos anos 60. Temos que aprender alguma coisa com esse período.O que gostaria que o visitante levasse desta exposição?Que pensem sobre esta consciência política, sobre o que aconteceu então e porque é hoje menos forte, e talvez também porque hoje não podemos voltar a pensar daquela maneira. Foi realmente um momento de solidariedade, um momento em que todos, quer fossem americanos, ou argelianos, éramos todos contra a guerra do Vietname. Não era preciso ser do Vietname para lutar contra a guerra, porque todos sabíamos o que era certo. Não é preciso ser palestiniano para lutar contra o genocídio. Então, por que não nos tornamos mais internacionais em termos da nossa política? . Como disse, vive entre Londres e Paris. Nunca pensou viver na Argélia? Precisa da distância?Eu acho que a distância é importante e, como artista, eu não seria capaz de fazer todas as coisas que estou a fazer se estivesse na Argélia, simplesmente por causa da acessibilidade dos materiais. Porque eu faço muitos filmes, faço muitos filmes analógicos, de 16 mm, e na Argélia este médium, esta película, não existe. O que a atrai nesse meio?Para mim a linguagem fílmica é importante porque eu faço muitas entrevistas a pessoas. O melhor meio para gravar histórias é o filme ou vídeo. Foi por isso que comecei a usar o vídeo, porque eu estava a gravar os meus pais a falar sobre a guerra da Argélia, sobre a imigração para a França, e outras coisas. E esse era o melhor meio. E depois posso mostrá-lo e compartilhar a história com as pessoas. Eu não podia fazer isso com a fotografia.Se não fosse artista seria historiadora?Não, isso seria aborrecido. E gosto de trabalhar com materiais, e embora muitos elementos da minha arte estejam ligados à História, como artistas temos sorte, porque podemos pegar no arquivo, nos documentos, e torná-los mais desafiantes em termos de uso. Porque usar um arquivo pode ser assustador, é preciso ter cuidado, é muito precioso. Os arquivos são tão rígidos, especialmente os oficiais. Como artistas podemos pô-los numa parede, cortá-los, etc., etc.Vai ter uma exposição na Tate Britain em maio. Pode adiantar-nos o que está a preparar? Estou a preparar um projeto grande sobre o cinema africano, usando a Cinemateca de Argel, porque a Cinemateca de Argel foi a primeira a ser criada em África, nos mesmos moldes da Cinémathèque française, em Paris. Foi a primeira em Argel e no mundo árabe, em 1965, e foi o hub de todos os filmes africanos, não só africanos, mas todos os cineastas militantes anticolonialistas foram convidados a mostrar os seus filmes, os cubanos, a Jugoslávia, o presidente Tito da Jugoslávia estava muito envolvido em fazer cinema. E é por isso que se vê a Cinemateca completamente conectada com o Festival Pan-Africano também. Continuo com as mesmas histórias, mas através do cinema africano dessa época. Haverá filmes e muitos elementos, como nesta instalação aqui..Galeria Graça Brandão inaugura exposição de Maria José Palla.São Carlos já teve outras cores. Obras revelam camarote com papel verde sobre parede original