Ainda mal recuperámos da notícia da morte de Diane Keaton, e eis que chega às livrarias o primeiro romance do amigo Woody Allen, com quem ela protagonizou no grande ecrã alguns dos filmes mais marcantes da vasta narrativa cinematográfica de Nova Iorque. Sem espanto, e em jeito de vénia secreta a tais memórias, é mesmo esse imaginário urbano com “banda sonora de Rodgers and Hart” que Allen evoca na prosa articulada de Que Se Passa com o Baum?, com chancela portuguesa das Edições 70 (tradução de Miguel Martins), que antes também lançou por cá a autobiografia de Allen, A Propósito de Nada, e a coletânea de textos intitulada Gravidade Zero. O novo livro, sendo então a estreia do cineasta americano como romancista, quase a completar 90 anos (dia 30 de novembro), não vai surpreender os leitores/espectadores que conhecem de trás para a frente as leis do seu universo. O que, entenda-se, é um enorme regozijo: ninguém consegue ser mais Woody Allen do que o próprio, e aí reside o génio de vários momentos deste romance cujo prazer perdura volvidas as suas 200 páginas.Portanto, quem é o Baum? Poder-se-ia atalhar a questão dizendo simplesmente que é... Woody Allen. Mas tal como todas as suas personagens alter ego, afigura-se, antes de mais, um judeu com “óculos de aros negros da Foster Grant”, neurótico, hipocondríaco e claustrofóbico, sempre pronto a citar Kant ou Kierkegaard para coisas corriqueiras.Depois desse modelo fixo, vêm as especificidades: Asher Baum é um jornalista que se tornou romancista e dramaturgo, estando agora a atravessar uma crise existencial, ou molecular, num corpo já de si dado à ansiedade. Acontece que Baum não só começou a falar em voz alta com os seus botões, levantando suspeitas de demência, como a sua carreira parece ter perdido força, sobretudo na comparação com a do enteado, um escritor principiante cujo sucesso o faz revirar os olhos.Junta-se a isto o arrefecimento da relação com Connie, a sua terceira esposa, que o obrigou a ir viver para o Connecticut (note-se que Woody Allen, e por inerência Baum, detesta cenários campestres), iniciando-se um recapitular de memórias do seu primeiro amor, indissociável das ruas e lugares de Manhattan, que embate, a certa altura, na ameaça presente de uma acusação de assédio sexual... Com refinada provocação e humor característico, Allen, vestindo a pele de Baum, aborda aqui a escala contemporânea da “verdade” e o tribunal da opinião pública.Metalinguagem e nostalgia radiofónicaÀ semelhança de Crescer em Manhattan, o conto que encerrava o seu livro anterior, Gravidade Zero (2022), sente-se que o texto romanesco em Allen é feito para um qualquer ecrã no interior da nossa mente. Durante a leitura de Que Se Passa com o Baum?, é possível que recuemos a outras personagens interpretadas pelo próprio – o Alvy Singer de Annie Hall ou o Isaac Davis de Manhattan – como se elas se renovassem dentro da mesma lógica citadina desses filmes iluminados pela presença de Diane Keaton. Não é por acaso que, mais ou menos a meio, a ação centra-se num dia inteiro passado em Nova Iorque, naquela típica divagação íntima, suspensão nostálgica, entre refeições, museus e parques, na companhia de uma bela jovem.Outra das preciosidades de Que Se Passa com o Baum? é a sua metalinguagem. Perde-se a conta das vezes em que Woody Allen usa o romance para refletir sobre o próprio conflito entre “profundidade” e “diversão” no ato da escrita, para além das suas inquietações filosóficas, desta feita, como escritor: “Tinha dificuldade em criar personagens, as quais, com demasiada frequência, eram meros veículos para as suas ideias. Eu conheço este homem, queria ele que os leitores sentissem em relação às suas personagens. Ele sou eu. Ele partilha os meus anseios, os meus temores”. Já agora, não podia falhar também o desenho intelectual de Baum: é um devoto de Dostoiévski e Kafka.Finalmente, sublinhemos a arte com que Woody Allen descreve – como se o fizesse de olhos fechados – um estado permanente de ansiedade. Só as primeiras cinco páginas de Que Se Passa com o Baum? são um concentrado de perturbações suscetíveis de se transformar numa escultura ou num certo quadro de Edvard Munch (atente-se na capa do romance). Mas o que importa isso, os buracos negros e outras fontes de pânico face à beleza de um dia de outono em Manhattan? “Matamos o tempo até que o tempo nos mata. Ao passear pela baixa naquele dia de outono inimaginavelmente bonito, [Asher Baum] teve tempo para pensar, para cantarolar «I’m wild again, beguiled again» e desfrutar das ruas de Nova Iorque”. Ao som de Rodgers and Hart, Cole Porter, George Gershwin e Irving Berlin, com cocktails imaginários à mistura..Que Se Passa com o Baum?Woody AllenEdições 70204 páginas