Wolf Hall: o drama histórico no seu elemento
Num tempo em que se procuram as abordagens históricas mais picantes e com aparência de fruta fresca, há um certo prazer em voltar ao básico na ficção de pequeno ecrã - não o básico no sentido do desinteressante, mas o básico que respeita um sentimento de época, que confia plenamente nos atores e trabalha a complexidade de um protagonista sem histriónicos efeitos de luz. É essa a impressão imediata e segura de Wolf Hall, a série britânica de seis episódios escrita por Peter Straughan a partir dos dois primeiros romances da trilogia de sucesso de Hilary Mantel, Wolf Hall e O Livro Negro (em Portugal editados pela Presença), pelos quais a autora conquistou dois Man Booker Prizes.
Uma série produzida em 2015 pela BBC, vencedora de um Globo de Ouro e dois BAFTA, e só agora chegada aos nossos ecrãs caseiros, cortesia do TVCine Edition (esta quarta-feira, 22:10). Porquê estreá-la neste momento? Porque a segunda parte, Wolf Hall: O Espelho e a Luz, será lançada ainda este ano pela BBC.
Estamos então num território cuja inteligência e sobriedade nasce da literatura de Mantel, a escritora britânica que quis olhar a figura de Thomas Cromwell para lá do conhecido retrato pintado por Hans Holbein, o Jovem, e do vilão de Um Homem para a Eternidade (1966), de Fred Zinnemann.
Escreveu ela, em 2012, num texto publicado no jornal The Guardian, que a sua atenção sobre essa personagem histórica nada tinha que ver com uma vontade de reabilitá-la, antes com um desejo de sondar as próprias nuances da vilania: “Fui movida por uma curiosidade poderosa. A ser um vilão, seria um vilão interessante, certo? As minhas primeiras pesquisas desafiaram os meus preconceitos fáceis. Alguns leitores acham que fui muito suave com Cromwell - na verdade, é possível escrever uma versão da sua carreira em que ele seja, na pior das hipóteses, o fiel servo de um mau patrão.” E acrescenta que, antes de se atirar à escrita, viu o primeiro livro como “um cenário lento e rodopiante”.
Ora, é justo dizer que esta breve descrição serve também a série. Situando-nos no período compreendido entre 1529 e 1536, Wolf Hall começa com o descontentamento do rei Henrique VIII, sem herdeiro após 20 anos de casamento com Catarina de Aragão, e termina com a execução de Ana Bolena, a segunda esposa desse mesmo rei. Um panorama que, ao contrário de produções como Os Tudors, se explora, lá está, a partir da ação de bastidores de Thomas Cromwell... Eis a principal diferença dentro de uma história muito revisitada.
O arquiconspirador discreto
Assim, vamos conhecer o Cromwell de Mark Rylance ainda como secretário do cardeal Wolsey (Jonathan Pryce), que o considera um “homem de muitos talentos”, sem a malícia identificada mais tarde pelo rei (“Mantenho-te comigo porque és uma serpente”, diz-lhe).
E o certo é que Cromwell, esse modesto filho de ferreiro, foi leal a Wolsey até à queda do mentor, ocasião crítica, acentuada por uma tragédia familiar, que o fez passar para o lado de Henrique VIII, tornar-se o seu conselheiro e envolver-se na intriga de corte sobre a anulação do primeiro casamento do monarca, que queria unir-se com Ana Bolena, merecendo a oposição do Papa e da generalidade da Europa.
Cromwell emerge então como um homem de “imperturbável competência” (foi também nestes termos que Hilary Mantel o definiu), com uma habilidade política, entre leis e reformas, que não pode ser dissociada das suas qualidades como observador.
De resto, Wolf Hall, na sua notória contenção dramática, tira partido dessa perícia: são vários os momentos em que acompanhar a intriga corresponde a seguir a direção do olhar de Cromwell, seja num banquete, do cimo de uma janela ou na confusão da corte.
Digamos que, através da expressão de Mark Rylance, a personagem incorpora tudo o que molda a própria série, desde as movimentações “tranquilas” à cadência metódica. Na sua quietude vigilante, que combina com o facto de não ter o hábito de levantar a voz, Cromwell vai lidando com as crises em silêncio, à luz das velas (as cenas noturnas só têm mesmo essa iluminação de interiores) e numa postura um tanto misteriosa que, em jeito de hierarquia invisível, o põe acima das criaturas demasiado legíveis que o rodeiam...
Rylance é simplesmente fascinante, quase na medida de uma pintura, com a modernidade a espreitar no seu sorriso discreto, enquanto as trevas daquele tempo, a espaços, não deixam de pesar-lhe no rosto.
Mas quem elogia Rylance reconhece também a força do restante elenco. De Damian Lewis (Henrique VIII) a Claire Foy (Ana Bolena), passando por um jovenzinho Tom Holland, que interpreta o filho de Thomas Cromwell (note-se: isto é Holland pouco antes das aventuras do Homem-Aranha), a ficção televisiva com carimbo BBC tem destas coisas: acredita nos atores como elemento essencial de uma estética narrativa.
Entretanto, a moda continua
Em sentido inverso, por estes dias chegou à Prime Video uma série que se junta à tendência atual do histórico “pouco verídico”. Também baseada num best-seller, neste caso de três autoras - Cynthia Hand, Brodi Ashton e Jodi Meadows -, My Lady Jane imagina uma realidade alternativa na monarquia inglesa em que Jane Grey tivesse reinado mais do que os nove dias que lhe deram a fama, de 10 a 19 de julho de 1553.
São oito episódios com uma heroína (Emily Bader) tão pop como a banda sonora, uns pozinhos de aventura e contos de fadas a piscar o olho à Disney, e uma leveza nítida que não engana quanto ao público-alvo: os jovens. Ou melhor, os jovens que precisam de alguns estímulos e manobras coloridas para revisitar cenários de época. Resta saber se a fantasia se aguenta firme. A única certeza é de que a História está sempre na moda.