Maria do Céu Guerra: “Vou mais devagar, mas vou. Não devemos faltar ao respeito à energia que nos mantém”
Já passa das sete da tarde e Maria do Céu Guerra chega atrasada ao renovado Teatro Variedades, no Parque Mayer. Entra na sala de espetáculos - que cheira a novo - e olha para o palco onde está um banco de baloiço encarnado à frente de uma cortina preta. O banco tem de ir mais para trás, a cortina também não está no sítio certo. São instruções que dará aos técnicos que estão para chegar. E a iluminação, será preciso acertar a iluminação. A fundadora da companhia de teatro A Barraca levará à cena naquele espaço a peça Amor é um fogo que arde sem se ver, que estreou na festa do Avante em setembro do ano passado, andou em digressão pelo país e que entra em fim de carreira neste teatro em Lisboa, com um espetáculo diário até domingo, 16 de março.
Vem de um dia longo de trabalho, que começou pelas sete da manhã com gravações para a telenovela A Protegida, da TVI, onde representa a personagem de Benedita. Aos 81 anos, Maria do Céu Guerra continua a fazer televisão e teatro e nos palcos não se limita a representar. “Gosto de escrever e gosto de acompanhar o Hélder [Mateus da Costa], que é um grande, talentosíssimo dramaturgo que tem escrito sobre a história de Portugal e sobre a contemporaneidade”, diz ao DN, já sentada numa das confortáveis cadeiras da sala. “Há uns tempos para cá tenho colaborado com ele na escrita. Eu gosto de fazer dramaturgia e gosto de fazer trabalhos sobre literatura dentro do teatro”.
Grande admiradora do poeta Luís de Camões, cujo quinto centenário se comemora este ano, Maria do Céu Guerra quis mostrar aos portugueses um outro Camões, sob uma luz que considera mais verdadeira. “O ensino mostrou-nos um Camões boémio, bêbado, pouco sério, foi preso três ou quatro vezes, e só namoradeiro, sedutor. Um homem que começou a escrever à volta dos 20 anos, a escrever com alguma importância, e que morreu com 50 e tal, teve 30 anos. Se fosse esse homem boémio, galdério, apaixonado e aventureiro, não teria tido tempo de escrever o que escreveu. Não teria tido tempo de estudar o que estudou. De mostrar, por dentro, o que é um grande, grande escritor”.
Para a atriz e encenadora, “ele é o grande navegador da língua portuguesa. Ele é o homem que, como os portugueses que aprenderam cientificamente como eram os ventos, como é que devia ser a navegação, ele aprendeu a escrita. Não houve outra epopeia assim em Portugal, não houve”.
A peça começou a ser preparada em 2021 e demorou dois anos a ser concluída. “É um verdadeiro aprofundar de tudo o que se escreveu de mais recente, já fora da influência do Estado Novo, já num país sem censura, num país sem mentiras oficiais na sua própria história. E, portanto, temos um Eduardo Lourenço, temos um Hélder Macedo, muita gente que escreveu e reescreveu e trouxe novas luzes à leitura de Camões”.
A peça Amor é um fogo que arde sem se ver “vai à Figueira da Foz ainda, mas vai acabar a sua carreira de voltas pelo país. E depois, para o ano, vamos tentar realmente que os professores deem à peça de Camões a mesma importância que dão às nossas peças de Gil Vicente, de Saramago”, adianta Maria do Céu Guerra. Isto, porque as escolas não aderiram a este espetáculo como a atriz antecipava.
“O serviço educativo está atingido com os maus tratos que têm dado aos professores. Também os desanimam. Fizemos centenas de cartas a anunciar que íamos fazer o serviço educativo em Camões. E, pelo menos no ano do seu centenário, as escolas não vieram”.
A atriz gosta do novo Teatro Variedades que agora a recebe e ao qual regressa, com o seu aspeto “clean”. Pisou os palcos do Parque Mayer pela primeira vez em 1970/71, aos 27 anos, quando se estreou no teatro de revista no ABC com a peça Alto lá com elas e depois no Variedades com ...E o Zé faz tudo!.
“Este teatro tinha 700 lugares, ou 800. E para uma atriz que vem do Teatro Experimental de Cascais, que era um teatro experimental, ouvir 700 ou 800 pessoas a rir ao mesmo tempo é um abalo, é um sismo. É a glória”.
Mas Maria do Céu Guerra não é saudosista. Tal como não quis dar uma entrevista de vida ao DN, mais virada que está para o futuro do que para o passado - “já fiz muitas” -, o que lhe deixa mais saudades é mesmo o que o Parque Mayer representava para o mundo artístico.
“Ter estado ou não ter estado ligada a este teatro, em determinada altura, não é tão importante para mim como este local todo, o que isto significava do ponto de vista cultural, como as pessoas sentiam que bons autores, bons atores, bons diretores, estavam a trabalhar para elas, para elas público. Eu penso que o teatro sofreu durante algum tempo um divórcio muito grande do público. O público não pode estar tão atrás dos criadores, não pode ser ignorado”.
Considera que o Estado Novo abandonou as pessoas culturalmente, e que não basta a democratização do ensino para reverter o mal feito. Reconhece que “agora vem muita gente ao teatro, o que não quer dizer que o teatro seja suficientemente múltiplo, variado”.
Apesar das suas oito décadas de vida, a atriz e encenadora prepara outras peças, novos projetos não faltam à Barraca. “Continuo ativa, às vezes mais cansada, outras vezes menos cansada”, diz Maria do Céu Guerra, mas o corte de financiamento público à companhia que fundou há 48 anos está a deixar marcas. “Às vezes não com o mesmo entusiasmo, não. As relações com o poder magoam-me. Desgastam-me. Acho que a Barraca tem sido vergonhosamente injustiçada”.
Seja como for, não para. “Não, não abrando, porque... é como quando me dão a mão para subir uma escada e eu digo ‘daqui a um tempo eu peço para vocês me levarem ao colo’. Deixem-me estar, eu vou mais devagar, mas vou. Porque acho que a gente não deve faltar ao respeito à energia que nos mantém”.