Esta história começou por ser uma canção. O que é que o género romance lhe permitiu dizer que a canção não? Aquilo que o romance me deu é tempo. Deu-me tempo para estar com estas personagens, deu-me mais personagens. Porque há sempre personagens secundárias, pessoas que têm que entrar no romance, porque na vida temos muitas personagens secundárias também. Deu-me isso e deu-me tempo, tempo para aprofundar os sentimentos, tempo para brincar com as palavras. Mas ao longo do livro há uns pequenos pensamentos, que vêm sempre antever aquilo que vai acontecer depois, uns excertos, que eu acho que são a minha maneira de continuar a escrever canções, ou excertos de canção, durante o livro. Alguns são muito poéticos.Sim, ao início eram poemas, depois decidi que não queria ficar presa na estrutura de poema e que queria fazer aquilo que me apetecesse.Não se sentiu constrangida por nenhuma regra?Não, até porque eu venho de um sítio que não é o romance. Então posso brincar com o que eu quiser, toda a gente pode, mas as minhas leituras dos últimos anos têm-me feito ver que tudo é válido, que tudo se pode fazer. Eu tinha medo de não encaixar, fiz um curso de escrita criativa porque queria escrever mais prosa, e pensava, bolas, a minha prosa vai sempre para a poesia, até perceber que essa é a minha voz. Mas foi preciso eu ler muitos autores que faziam isso também, para perceber que isto é válido, eu também posso ir por aqui. Eu estava a tentar fugir à poesia na prosa, sem perceber que, se calhar, isso é até aquilo que me distingue.O livro tem ilustrações de plantas no início dos capítulos. Elas aparecem porque estão relacionadas com a personagem principal, ou também por interesse da Luísa pela botânica?Também tenho interesse, mas não, isto tudo nasceu desta história, desta pessoa que existiu, que se chamava Maria Feliz, o nome dela era alemão, não sabemos qual era, sabemos só que ela mudou-o para Maria Feliz, e esta pessoa era apaixonada pelas plantas. Vivia em Vila Real, é uma pessoa real - real de Vila Real - e ela era bastante conhecida lá. Era ermita e tratava as pessoas com as plantas, e era muito querida das pessoas por causa disso, sabia muito sobre plantas, tinha um herbário. E então, quando esta personagem, esta pessoa, me caiu nas mãos, isso foi uma das coisas que me fascinou sobre ela, essa paixão pelas flores, tinha de fazer parte, era uma grande parte do livro. A ideia nasceu de uma notícia que lhe enviaram sobre a morte do casal.Do casal Feliz. Os Felizes, como eles lhes chamavam.O livro é uma história sobre o que poderia ter sido a vida dessas duas pessoas antes de se isolarem em Portugal?Sim, mais dela do que dele. Eu mudei muita coisa, mas eu tinha quatro verdades que depois usei, que era o final dela, a parte das plantas, a parte de ela vir da RDA [República Democrática Alemã], e sabia que na vida dela, algures, houve um amor em Itália. Eu sabia isto. Também não quis saber mais, porque não era sobre ela. Ela era o meu ponto de partida. Eu não queria que me condicionasse demasiado.O livro não é sobre a Maria Feliz, como disse, é sobre o quê?É sobre duas mulheres, esta de que estamos a falar, a Maria Feliz, que é a M. no livro, e a Emmi, e são duas mulheres que vivem na mesma altura, apesar de uma ser mais velha, mas elas acabam por partilhar esta experiência da RDA, e têm uma ilusão muito grande, que acaba depois por se desmoronar, ou seja, têm em comum essa desilusão que acaba por definir o resto da vida delas.Há uma mensagem que quer passar?Eu não pensei nisso, nem na minha música eu tenho isso, não tenho um objetivo quando vou escrever. Tenho duas canções no meu último disco, uma sobre a guerra na Ucrânia e uma sobre os direitos das mulheres, mas eu não escrevi essas canções a dizer ‘vou escrever sobre os direitos das mulheres no Afeganistão’, não, eu escrevi porque senti uma necessidade enorme de falar sobre este assunto, para mim, para eu resolver. A mesma coisa com este livro, não tenho bandeiras. Mas - lá está, são coisas que eu depois penso a seguir - aborda a liberdade, que é um assunto que, apesar de não ter sido um objetivo falar sobre a liberdade neste momento, considero que é muito importante falar sobre ela, porque estamos com a extrema-direita em crescimento muito rápido em vários países da Europa, e é muito importante voltar a falar sobre períodos em que não houve liberdade, para que as pessoas não se esqueçam deles. Eu não falei sobre isto por causa disso, esta personagem levou-me ali, mas se eu for tirar um fim importante, é revisitar estes períodos em que vivemos numa ditadura. A história passa-se na antiga RDA, a partir dos anos 1930, num tempo e num espaço bastante distantes da sua realidade.Sim, quando o muro caiu eu tinha dois anos.Esse facto não a amedrontou? Foi tão assustador que eu escrevi dez páginas e parei, porque comecei a sentir-me demasiado condicionada com a história e senti que não tinha liberdade, eu não podia pôr as pessoas a dizer coisas que não diziam na altura, a vestir coisas que não vestiam na altura, a comer coisas que não comiam na altura e pensei ‘porque é que eu estou a fazer isto a mim mesma num primeiro romance?’ Escrevi dez páginas e parei. E depois, passado um tempo, eu disse numa entrevista que estava a escrever um livro. E recebi uma mensagem de uma editora que ouviu dizer que eu tinha um livro e a perguntar se não queria partilhar. E eu disse, ‘pois, não sei se é bom, já não vou lá há algum tempo.’ Mas pensei que, se calhar, era um sinal para eu ir ver se era bom ou não. Então voltei a essas dez páginas e pensei, ‘eu estou a gostar disto, vou continuar, vou ver onde é que isto me leva’’. E foi aí que o meu marido me ofereceu um retiro de escrita de três dias, porque eu tenho quatro filhos pequenos, é muito difícil eu, de repente, entrar num processo de criação e deixar-me ir, quando tenho tantos afazeres familiares. Pode parecer pouco, mas foi o suficiente para eu só viver e respirar esta história.A Luísa disse, no último episódio do seu podcast O Avesso da Canção, que a modéstia não leva a lado nenhum e que aprendeu isso nos Estados Unidos. Sim, mas aí é na música, isto é outra coisa. Não partiu para o romance com essa confiança? Não. Uma coisa que dizia muitas vezes a mim própria era ‘eu quero acabar este romance para mim’. E no fim é que vou decidir se ele é bom o suficiente para outras pessoas o lerem, mas tornou-se um objetivo. Quando eu comecei, as tais dez páginas fizeram-me sentir que não era capaz. Depois, quando voltei, comecei a sentir outra vez que era capaz. E quando acabei, senti-me muito feliz. Quando eu falei com a Maria do Rosário Pedreira, que foi a minha editora, mandei-lhe o livro - eu já a conhecia e sabia que ela ia ser aquela pessoa que me ia dizer se o livro era bom ou não. Porque eu também sei que, fazendo parte da música, não é assim tão difícil lançar um romance. Eu sei que, se calhar, ele será um livreco para algumas pessoas, mas eu não queria ter um livreco. Então, pensei, se eu mandar à Rosário, ela vai ser sincera comigo, porque a Rosário é muito pragmática, é muito direta. Enviei-lhe e ela mandou-me uma mensagem, ali perto do Natal, a dizer ‘ainda só li metade, mas já sei que quero publicar’. E isso deixou-me super feliz. Ainda por cima é a D. Quixote, ou seja, nem é daquelas editoras que nós sabemos que editam os livros um bocado pelos autores, é uma chancela conceituada. Que percurso é que gostava que este livro seguisse?O que é que eu gostava a curto prazo? Primeiro, gostava muito de chegar ao Brasil, porque sei que já tenho pessoas que seguem a minha música no Brasil, recebo algumas mensagens a pedir o livro no Brasil e, como é a mesma língua, nem sequer é aquela coisa de ter que ser traduzido, e eu gostava muito que me lessem como eu escrevi. Depois, outro sítio onde a minha música chega muito é a Espanha e também achava interessante ser traduzida para o espanhol, também é uma língua que eu falo e conseguiria ler. Mas vê como o início de uma carreira também na literatura?Sim, posso dizer que sim, porque eu já estou muito avançada num segundo projeto. Fiquei um bocadinho viciada nisto. Eu acabei o livro e depois cheguei a pensar gostei tanto disto, mas se calhar nunca mais vou ter uma história. E durante um tempo fiquei a pensar, o é que pode ser uma história? Esta não é uma história real, esta fui eu que criei, mas a ideia veio ter comigo naturalmente. E então comecei a escrever e está a dar-me muito prazer. Pode adiantar um pouco da história? Eu faço voluntariado, vou cantar aos paliativos de 15 em 15 dias e esta experiência de quase-morte e de lidar muito com a morte mudou muito a minha vida. E eu queria muito poder pôr isso numa história. Queria muito fazer o que, por exemplo, os livros da Valérie Perrin fazem comigo que é fazer-me não temer algumas coisas. Ela tem um livro que fala sobre um lar de idosos e eu, de repente, ao entrar naquele lar de idosos com ela, entendi melhor o que é a velhice. Ao entrar num cemitério com ela, entendi melhor o respeito que devemos ter pelos mortos e pela vida que eles tiveram. O meu objetivo é que as pessoas entrem comigo neste espaço e que comecem a ver a morte com a naturalidade que eu fui vivendo ao longo deste ano. Nesse último episódio do seu podcast a sua amiga Márcia diz que o superpoder da Luísa é conseguir colocar-se na pele de outros. Isso é o superpoder mais espetacular do mundo! Eu nem me lembrava que ela tinha dito isso. Mas escolho esse ao de voar. Quando está a escrever e a criar as personagens sente o que elas estão a sentir? Sim, por isso é que é um bocadinho mais agressivo emocionalmente do que uma canção. Porque, por exemplo, quando escrevi a canção sobre os direitos das mulheres no Afeganistão, escrevi na primeira pessoa e tentei sentir que era uma mulher afegã, chorei imenso a escrever essa canção. Mas passei um dia a trabalhar nela. Aqui são dias e dias que eu passo com estas pessoas. Ao início custou-me um bocadinho, porque eu não estava habituada a um processo tão demorado. Não havia um fim à vista. E isso angustiava-me imenso. Eu sentia o coração a bater rápido, acordava angustiada. Foi um processo doloroso. Agora já sei fazer de outra forma. Já sei afastar-me um bocadinho mais. Mas a verdade é que estas personagens iam para a cama comigo, dormiam comigo, acordavam comigo e às vezes tinha dificuldade em perceber que elas não eram reais.Qual é a personagem que está a conviver consigo atualmente? Agora, como parei um bocadinho o livro que estava a escrever, só estou a conviver comigo. Mas quando estava a escrever o livro que estou a escrever agora, é ele, o Armando, que é a personagem principal. Ele é que estava comigo a toda hora. A Luísa é uma ávida leitora e fala sobre as suas leituras mensais no Instagram. Quais são os autores que estão a ter mais impacto na sua escrita neste momento? Uma leitura que fiz há pouco tempo e que me fez perceber que também se pode ser poético na prosa foi a Carla Madeira, por exemplo. Li os três livros dela e senti isso. Com ela e com vários autores brasileiros, até novos. Por exemplo, há pouco tempo li a Aline Bei, e a Aline Bei não só é super poética na escrita dela, como também joga com as palavras de uma forma estética. E cada vez que leio um livro assim penso ‘também se pode fazer isto’. E tudo isso são pequenas portinhas ou janelas que se abrem na minha cabeça de possibilidades. Porque na música sempre pensei que tudo era possível. E na literatura também acho, enquanto leitora, mas enquanto escritora é outra coisa. Gosto muito da escrita da América Latina e dos africanos, porque eles têm a língua em segunda mão. E isso dá-lhes um desprendimento, eles usam a língua com imensa liberdade. Nós agora já estamos numa fase diferente da literatura portuguesa, assim como no cinema e tudo o mais, em que já não sentimos a necessidade, eu acho, de parecermos super intelectuais. Eu lembro-me que tinha um bocado de medo de entrar neste mundo dos escritores, porque pensava ‘isto é muito intelectual para mim, eu não quero ser esta pessoa, fingir que li’, essa coisa um bocado do pseudo intelectual. Está a preparar um novo disco?Sim, vou lançando canções. Decidi que não tinha espaço mental e tempo, nem queria bem essa coisa de fazer um disco. Então o que eu estou a fazer agora é lançar canções, cada canção vai sair com uma capa que é um pormenor de uma capa grande. Porque depois, no fim, elas vão todas fazer parte do mesmo disco. Vou lançando canções, quando me apetecer, com produtores diferentes. Ainda só tenho uma. Está lá perdidinha, à espera de colegas. Mas não quero sentir-me apressada a fazer coisas. Já senti muito tempo isso e não me dá liberdade. A Luísa Sobral será cada vez mais uma artista multidisciplinar?Não sei. Se eu agora quisesse ser astronauta, se calhar era estranho. Mas acho que as artes todas fazem sentido umas com as outras. Por exemplo, o facto de eu gostar de fotografia tem a ver com eu ver a simetria, a beleza nas coisas. Assim como eu escrever um romance não é assim tão diferente. No fundo, as palavras fizeram sempre parte da minha vida. É só uma estrutura diferente. Eu também quero muito escrever uma peça de teatro. Eu sempre gostei muito de representar. Mas isso também tem a ver com aquilo que eu faço em palco. Então todas elas têm a ver umas com as outras. Na verdade, é sempre uma expressão daquilo que eu sinto. .Do encontro no Chiado à última viagem a Veneza: memórias de mais de uma década a viver com Julião Sarmento.“A coleção do Estado não pode ser só representativa dos primeiros momentos de um artista”