Pedro Calapez, no seu atelier, junto de um dos painéis em alumínio, ainda inacabado.
Pedro Calapez, no seu atelier, junto de um dos painéis em alumínio, ainda inacabado.Foto: Paulo Spranger

“A coleção do Estado não pode ser só representativa dos primeiros momentos de um artista”

O pintor Pedro Calapez tem obras na Coleção de Arte Contemporânea do Estado e em várias instituições nacionais e estrangeiras, como na Gulbenkian, Serralves e Centro de Arte Reina Sofia, em Espanha.
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Pedro Calapez realizou a sua primeira exposição individual em 1982, depois de ter trocado o curso de Engenharia, no Instituto Superior Técnico, pela Faculdade de Belas Artes, e desde então nunca mais parou. O pintor recebeu-nos no seu atelier na Graça, na mesma rua onde vive, e onde trabalha desde 2017, numa antiga padaria de 1903, que renovou. O artista plástico, que também tem obras públicas no currículo - como as portas e painéis em bronze da Basílica da Santíssima Trindade, em Fátima - fala-nos dos seus mais recentes trabalhos - que podem ser vistos na Galeria Miguel Nabinho, em Lisboa, até 22 de março, e na Galeria Fernando Pradilha, em Madrid, até 12 de março -, e também do futuro, que pode passar pela incorporação da Inteligência Artificial nas suas obras.

A sua exposição intitula-se A Posição e o Movimento. Como surgiu esta ideia?

É o princípio da incerteza de Heisenberg, segundo o qual é impossível simultaneamente saber a posição e o movimento de uma partícula. Isso não está no princípio, mas está como uma ideia que surgiu quando eu estava a pintar e a certa altura tenho aqui uma cor que se está a movimentar e que está a deixar um rasto diferente para trás. Portanto, esta cor já não é a que era quando eu a comecei a pintar e isso em espaço de centímetros. E, portanto, daí a posição ser determinante na questão da pintura. Se for ver os títulos das minhas exposições, ou são versos de poemas que me interessaram, ou são alguns temas que têm a ver com o olhar. E têm a ver com a permanência do olhar e com as questões da visibilidade e da invisibilidade. Portanto, havia a questão da posição e do movimento que eu estava a fazer.

Mas não é um conceito prévio à realização dos trabalhos?

Não. Aquilo é um movimento da mão.

Quando pinta a mente não entra?

A mente entra porque há construções que estão na minha cabeça, que se vão estruturando, e em que eu vou pensando, e que depois se materializam, ou nos desenhos no papel, ou nos desenhos no computador, ou nas manchas que faço, tanto no computador como no iPad, como com aguarela, ou depois com tinta no papel.

Mas não é pintura conceptual, não quer transmitir, à partida, nenhuma mensagem.

Não há uma pintura conceptual. Mas não é uma pintura puramente expressiva. Também tem a ver com esta questão da posição do movimento, a velocidade que, por vezes, aparece, é uma velocidade que não corresponde à realidade visual dela. Ela pode ter sido feita lentamente, uma parte pode ter sido feita depois um bocadinho rápido, e depois ser lenta outra vez. E, portanto, há muito pensar a composição, e há um pensar visual em o que é que se pretende? O que se pretende, de uma maneira muito simples é um jogo de formas e de cores. Só que as formas evocam outras formas, evocam outras situações. Há mesmo alguns desenhos que têm referências quase antropomórficas, porque nós vamos lá descobrir a nossa cabeça, uns descobrem os corpos, outros descobrem...

E cada um vê o que vê...

A minha intenção é sempre tentar descobrir relações entre formas e cores que eu não tenha visto antes, ou que possa acrescentar alguma coisa ao que já vi antes, e que, com isso, tenha essa ilusão de que estou a criar uma situação que pode ser interessante para quem tenha o mesmo tipo de referências e que possa dizer, ah, aqui ele fez diferente...

Pedro Calapez, no seu atelier.
Pedro Calapez, no seu atelier.Foto: Paulo Spranger

E porque é que começou a usar o computador na sua arte?

Porque é muito mais rápido, muito mais rápido. O meu primeiro computador foi um Commodore Amiga que usava um processador da Apple, mas era mais barato que a Apple. E tinha um programa de desenho. E eu lembro-me de ir à loja e a certa altura - ele tinha uma prancheta gráfica -, desenhei uma espécie de um gato e estavam pessoas ao lado. Ele está a desenhar um gato no computador! E eu pensei, bom, posso fazer aqui alguma coisa, posso usar isto. E tem uma vantagem muito grande, porque faz-se um desenho e ele pode transformar-se muito rapidamente, além de que o trabalho do artista é um trabalho de escolha verdadeiramente, nós o que estamos sempre a fazer é a selecionar uma coisa qualquer. Há um tempo que é pôr uma cor e não pôr outra, pôr uma forma e não pôr outra. É claro que eu tenho uns caderninhos onde faço os primeiros esboços. Mas depois percebi, fiz várias experiências com formas, que não eram bem retângulos, e fiz outras com a geometria mais definida, e a certa altura essa era a melhor solução e o computador acelera. Eu quando falo do Commodore Amiga, falo em 1980, 1982, que comecei a usar o computador. Eu gosto também de tecnologia. Como escreve Marshall McLuhan, a máquina é o prolongamento da mão.

A inteligência artificial é uma ameaça para os artistas ou pode ser uma oportunidade?

Acho que pode ser uma oportunidade. Aliás, já comecei a trabalhar. No outro dia, no ChatGPT - o profissional, que é mais elaborado, que já tenho ali -, mandei fazer um quarto com duas janelas e uma mesa. Depois mandei fazer um quarto com duas janelas e uma mesa em estilo egípcio. Tenho andado a experimentar o que é que isso dá. E supondo que algumas dessas formas me interessam, eu depois vou usar numa pintura. Estou a utilizar a inteligência artificial como um instrumento. Isto é uma opção totalmente diferente da de Leonel Moura, que trabalha em inteligência artificial há vários anos. Ele estabelece um conjunto de princípios e depois há um computador que os vai reorganizar segundo determinado tipo de... os famosos algoritmos, não é? Que são funções matemáticas com determinado parâmetros. Mas alguém teve que lá pôr esses parâmetros. Se ninguém pôs, foi Deus que pôs. Portanto, esse lado de que os objetos constroem objetos e a nossa mão não está lá, eu não acredito nisso. Eu vejo como um prolongamento, mas nós temos que estar em controlo.

Os painéis em alumínio que tem em exposição eram para ser monocromáticos. Porque é que depois não avançou por esse caminho? 

Eu comecei a pensar em fazer quatro conjuntos de painéis, cada um tinha seis painéis. Todos os painéis tinham dimensões diferentes, com a mesma profundidade.  E eu resolvi escolher seis cores e parti do RAL, que é o processo técnico que há para se transmitir as cores em arquitetura e engenharia, para fazer a cor. E cada um desses painéis foi pintado com uma cor diferente. Os painéis tinham depois quatro organizações diferentes. Tinham todas as mesmas cores, mas as cores situavam-se em painéis diferentes. O que era um quadrado azul, era um retângulo azul no outro painel. E com isso construí quatro painéis. A base desta exposição são os quatro painéis grandes que estão na sala principal.

Mas essa ideia não funcionou para si? 

Montei-os aqui no ateliê e estive muito tempo a olhar. Estive muito tempo a fazer pintura. Sem fazer nada. Só estava a olhar para eles. E estive sentado a olhar para eles imenso, imenso tempo. E fotografei-os. E depois imprimi as fotografias e pus umas ao lado das outras. E a certa altura tive um...não um déjà vu, mas a ideia de que já está tratada esta questão do monocromático. Eu adianto muito pouco relativamente ao que já foi feito neste tipo de situações de formas geométricas, já lhes estou a arredondar os cantos, já não são formas retangulares, são objetos diferentes, objetos mais doces...E as cores, não escolho cores vivas, escolhi uma paleta mais ou menos pastel, umas cores mais escuras outras mais claras, já pensando que as organizaria criando distância e profundidades.  

E um dia chego ao atelier e penso assim:  ‘Tenho uns painéis a mais, vou estragar um’. E, portanto, pego num painel – e essa é a suprema liberdade do artista,  ter a força suficiente para destruir aquilo que acabou de fazer, destruir ou refazer aquilo que acabou de fazer, que achou que era alguma coisa, mas quis-lhe pôr outra coisa por cima.

No momento em que põe outra coisa lá, aquilo transforma-se. Estes estavam uniformes, e no momento em que fiz um rasgo de cor numa delas, disse, ‘ah, mas isto...estava por aqui um problema novo’. E o problema novo é que este contraste entre os painéis está-se a dar entre uns que estão pintados, pode-se dar com uns que, além da perda da sua pintura uniforme, têm uma intervenção da mão. Porque eles eram demasiado mecânicos para mim.

Pedro Calapez, no seu atelier.
Pedro Calapez, no seu atelier.Foto: Paulo Spranger

Não conseguiu evitar perturbar estas superfícies, como já disse sobre este trabalho?

Não sei se tive medo. Ainda não percebi, porque a exposição em Espanha também tem painéis monocromáticos. Mas a superfície tem muita espessura de tinta. Uns são mais lisos que outros. Fiz um aglutinante especial para dar relevo ao próprio pigmento. E, portanto, eu não sei se… O que eu sabia era que eles todos monocromáticos não estavam completos. Portanto, é meu objetivo para o futuro conseguir, com essa limpeza de meios, uma vibração, um deslumbramento. Eles, de facto, não me deslumbravam. Eu preciso de ser deslumbrado.  

Disse ao seu galerista Miguel Nabinho que lhe interessa todo o processo de fazer coisas industrialmente e depois ir lá interferir. E falou também noutros projetos que já tem em vista, como a utilização de purgas de plástico. Que conceito é esse?

Estou a fazer um projeto, mas não sei se se vai realizar. Uma pessoa amiga ligada à história da Ciência está a organizar uma exposição e pediu-me para fazer uma intervenção que é a fachada do museu onde essa exposição irá ser, mas isto ainda é um processo em construção.

Qual é o museu?

É o Museu do Calçado, que é um museu em São João da Madeira. É uma exposição sobre plásticos, e eu fui a uma fábrica de plásticos e deparei-me com umas peças que são as tais purgas – eu adoro o nome, porque é realmente aquilo que se deita fora. Ora, o que acontece é que ao fazer um tubo de plástico, a máquina, quando para de trabalhar, fica com o plástico lá dentro e quando começa a trabalhar novamente o plástico é empurrado e sai uma amálgama de plástico que depois eles cortam e vai para triturar para ser reaproveitado. E eu vi essas peças e pensei que havia dois elementos que me interessavam imenso que era, por um lado, as cores que elas tinham, neste caso era amarelo e preto ou era azul e preto, e a sua expressão, que era completamente aleatória, tinha a ver com o estar numa máquina, todas eram diferentes. E eu pensei trabalhar com esses restos. E esse trabalho está a ser construído.

Mas isso será então para um trabalho muito específico.

Mas pode ter consequências, porque já me aconteceu.

Quem compra Pedro Calapez? Interessa-lhe saber?

Interessa. Proporciona-se ao artista conhecer compradores das suas obras. O mais natural é quando é uma instituição, nós somos um país muito pequeno com muito poucas instituições, com muito poucas compras institucionais. E é preciso dar apoio a muita gente, nesse sentido há uma função que o Estado pode ter que é analisar aquilo que se está a fazer e ir comprando e constituir um património que é o destino de uma época. Mas há muitos compradores que são individuais, que querem um quadro para pôr na sua casa, e têm todo o direito de o fazer.

Em 2018 subscreveu uma carta entregue ao governo, juntamente com outros artistas, que apelava a mais compras de arte pelo Estado e falava numa “geração perdida” de artistas. A situação mudou entretanto, com a criação da Comissão para a Aquisição de Arte Contemporânea?

O Estado por si só ter uma coleção, para mim não faz muito sentido. Deveria ter, de facto, um museu, uma estrutura por trás para organizar-se, poderia proporcionar representações à arte portuguesa no estrangeiro, fazer a tal internacionalização da arte portuguesa. Trabalho que, de certo modo, foi feito antes, ou era feito antes pela Gulbenkian. Eu não sei o que é que eles compram, o que estão a comprar, eu não estou perto do processo.

Mas tem obras na coleção do Estado.

Eu tenho obras na coleção do Estado, que vieram da SEC [coleção de arte contemporânea criada Secretaria de Estado da Cultura em 1976] . Mas dá-se isso comigo, como com muitos outros artistas, que é assim: há um momento...eles também estão a comprar artistas jovens, como eu fui comprado muito jovem para a Gulbenkian, para a SEC, mas depois nunca mais compraram.

E faz sentido ser assim, o Estado apostar mais nos novos artistas?

Por exemplo, é uma pena, no outro dia estava com o Óscar Faria [crítico de arte], que me dizia que estão em leilão uns quadros do Lapa, extraordinários, e a coleção do Estado não vai lá comprar. Porquê? Aquilo era material ótimo para a coleção do Estado. A coleção do Estado não pode ser vista como atividade paternalista de estar a ajudar sempre aqueles que estão a começar. Não, tem que ter uma visão mais larga, seja mortos ou vivos - já há alguns mortos de que há pouca representação nesta coleção do Estado. Essa coleção tem que ser representativa e não pode ser só representativa dos primeiros momentos de um artista. Eu não estou com isto com dor de cotovelo. Simplesmente acho que é importante, como acontece quando se vai a alguns museus no estrangeiro, ter um panorama de obras de um mesmo artista, do princípio da sua carreira até a fim da sua carreira. Consegue-se ver o que é que ele foi encontrando, o que é que ele foi variando, como é que ele foi desenvolvendo a sua criatividade.

Isso também acontece relativamente às obras públicas ? Privilegia-se os artistas emergentes?

Não, nas obras públicas é mais natural, e eu acho que é o que tem acontecido até agora, sobretudo nas obras mais significativas, são artistas que estão a meio da carreira, ou já há um longo período de trabalho cimentado atrás delas. Geralmente, são obras em que os artistas que são convidados não vão a um concurso. São convidados pelo seu prestígio, pelo que fazem e, portanto, essa é a garantia da obra, que passa a ter um outro âmbito, porque está fora, está em confronto com o ambiente.

Há alguma obra pública sua que tenha gostado particularmente de fazer?

Talvez a mais impressionante foi ter respondido ao desafio...Houve um concurso para a Basílica da Santíssima Trindade em Fátima e o arquiteto Alexandros Tombazis, que já faleceu, ganhou o concurso. As obras encomendadas são uma coisa que eu gosto de fazer, porque nós temos que dar a volta àquilo que estão a pedir, podendo expressar os nossos momentos, as nossas inquietações, numa formatação de outra pessoa. E isso é muito desafiante. E então, essa obra - era uma outra entrevista -, mas essa obra foi de tal modo que eu não pus a assinatura na obra. São quatro portas, cada uma tem dois metros por oito metros de altura, em bronze, e depois tem os painéis, que são os Mistérios do Rosário, que são vinte, e têm a ver com situações da vida de Jesus e de Maria. Eu nem assinei os painéis, nem assinei as portas. E na parte lateral do santuário há um painel, onde estão todas as pessoas que participaram. Está lá o meu nome, e das pessoas que trabalharam comigo na realização daquele trabalho. Há esse anonimato, que é um pouco o que se vê numa catedral gótica. E a obra passa a pertencer ao espaço, à natureza, ao ambiente, às pessoas. Portanto, o nome deixa de contar para alguma coisa, não é? E eu estava perto da porta e veio uma pessoa que lhe veio fazer uma festa...

Pedro Calapez, no seu atelier.
Pedro Calapez, no seu atelier.Foto: Paulo Spranger

Vai fazer 73 anos. Um artista nunca se reforma?

Tenho projetos marcados para os próximos três anos.

São exposições que já estão agendadas?

Umas mais importantes que outras, não interessa, todas elas são importantes. Uns sítios mais conhecidos que outros. Não sou um artista de dimensão mundial.

A minha dimensão, de facto, desenvolve-se ao longo dos anos entre Portugal e Espanha. Tenho muitos colecionadores espanhóis e muitos colecionadores portugueses. Vou continuando a trabalhar. Tenho muitas ideias. Podia dizer-lhe aqui dez ideias diferentes. Coisas que outros já fizeram e que eu não fiz, e que eu queria ter feito, como trabalhar no Dante, ou como trabalhar sobre a palavra, que é uma coisa que me vai pôr problemas, porque parece que alguma pintura abstrata não tem a palavra por trás. Mas pode ter. Portanto, trabalhar sobre a palavra.

Escrever mais...Eu escrevo muito pouco. Escrever alguma coisa sobre os meus trabalhos e sobre o ato de olhar. São reflexões, muitas vezes em resultado de leituras que fiz. São ensaios que não são verdadeiramente, excecionalmente ou especialmente inovadores. Mas são reflexões que eu preciso de escrever. Não são como as reflexões do Matisse, nem como os livros do Kandinsky ou do Paul Klee. Mas quero escrever mais e queria escrever mais poesia do que escrevo.

Pedro Calapez, no seu atelier.
Pedro Calapez, no seu atelier.Foto: Paulo Spranger
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