Fevereiro de 1982, Lisboa, diário de Helena Vasconcelos: “Engraçado como, quando é preciso, toda a gente se volta para o Julião. Será que no futuro se lembrarão do que Julião fez pelos artistas e pela Arte em Portugal?”. A autora de O que está para vir: Uma vida com Julião Sarmento, escritora, crítica literária e dinamizadora de clubes de leitura, vivia nesse ano há oito com aquele que se tornaria um dos mais internacionais artistas plásticos portugueses. Agora, quase quatro anos após a sua morte, Helena Vasconcelos publica um livro em que regressa a esses 14 anos de relação com o artista, entre 1974 e 1988, cruzando memórias pessoais com a cena artística do pós-25 de abril e anos 1980, época de rutura com o passado e abertura ao mundo. Julião Sarmento, que se internacionalizou vivendo e trabalhando sempre em Portugal, morreu no dia 4 de maio de 2021. “Nós tínhamos uma relação tão próxima, durante os 14 anos que vivemos juntos, que foi complicado para mim assimilar a ideia da morte dele”, revela Helena Vasconcelos ao DN. “É que ele foi tão importante, não só para mim, pessoalmente, mas a nível da cena artística, da criatividade”, sublinha. Muito se tem escrito sobre a obra de Julião Sarmento, mas Helena Vasconcelos vem acrescentar uma perspetiva mais pessoal, circunscrita aos anos em que com ele viveu, primeiro no apartamento da Rua Nova do Almada, no coração de Lisboa, e mais tarde na Rua de Inglaterra, no Estoril. “Ele ficará para sempre na história da arte. Há tanta coisa escrita sobre ele no sentido artístico, nos catálogos, nas revistas, nos livros que se têm publicado sobre ele, mas eu queria mostrar aquele lado mais pessoal dele. E isso também gostaria que ficasse”. O livro, no entanto, não é sobre o artista, é sobre a vida de Helena Vasconcelos e de Julião Sarmento naqueles anos de grande dinamismo cultural e social. “Naquela altura as redes sociais éramos nós, nós é que tínhamos que nos encontrar, que ir para os copos à noite, que fazer jantaradas, tínhamos que discutir tudo aos gritos, não era no Facebook nem no Insta, éramos nós a rede”, lembra Helena Vasconcelos, frequentadora assídua do Frágil, bar no Bairro Alto que marcou uma geração. Ao longo das páginas do livro ficamos a saber como os dois se conheceram, como conviveram e como acabaram a relação. Isto numa altura em que Helena Vasconcelos trabalhava como tripulante da TAP e estava muitas vezes ausente, e Julião Sarmento se afirmava como artista cá dentro e lá fora, impulsionando e participando em eventos emblemáticos da história das artes plásticas em Portugal, como as exposições Alternativa Zero, em 1977, e Depois do Modernismo, em 1983. “O Julião era uma pessoa que fazia tudo sozinho, quer dizer, ele não pedia subsídios ao Estado, criou uma espécie de rede, naquela altura não havia internet, não havia nada dessas coisas, mas ele era um homem extremamente informado e culto e, para além disso, com uma capacidade de trabalho inacreditável, ele era um workaholic completo na sua arte. Criava contactos com diretores de revistas, com curadores fora de Portugal, porque Portugal nessa altura era quase um deserto”.A autora destaca como Julião Sarmento “foi generoso” para com outros criadores que estavam a começar a suas carreiras artísticas. “Esta ligação entre galerias, os curadores, os críticos de arte, era principalmente fora de Portugal. Ele trouxe isso tudo para Portugal e conseguiu aqui subitamente criar uma movida a nível da criatividade e, para além disso, juntava pessoas de todas as áreas”. Helena Vasconcelos recorda as jantaradas que juntavam artistas das áreas mais diversas. “Em nossa casa, no Estoril, tínhamos jantares com pessoas da moda, do teatro, do cinema, principalmente da fotografia, da dança e toda esta gente juntava-se para criar projetos”.Contrariando a imagem “do artista romântico que sofre imenso e que se fecha”, Julião Sarmento “mostrava os trabalhos, as pessoas gostavam imenso dele, pois ele falava perfeitamente inglês, francês, italiano, e nunca tinha aquela posição de subserviência, era uma pessoa que estava perfeitamente integrada nessas grandes movimentações artísticas. Podia ser em Nova Iorque, em Munique, em Londres, ou em Paris, e depois foi em Madrid também. Portanto, ele tinha a consciência do seu valor, do valor do seu trabalho”, diz a escritora que foi companheira do artista em muitas dessas viagens. “Nesses anos eu costumava documentar. Como o acompanhava muitas vezes nas inaugurações, eu ficava de lado e ia escrevendo. E fui recuperar muitos desses diários, até coisas de que eu já nem me lembrava. Mas a partir daí comecei a construir o livro, fiz capítulos muito curtos para não maçar as pessoas. E fiz uma espécie de percurso desses anos”, explica Helena Vasconcelos. Escrever este livro, diz, “foi uma forma de encontrar um ponto em que me reconciliei com toda essa época. Que a certa altura começou a cansar-me um bocado”. .“A coleção do Estado não pode ser só representativa dos primeiros momentos de um artista” .Luísa Costa Gomes: “As coisas eram mais sofridas. Hoje não escrevo a dançar e a cantar, mas libertou-se o prazer”