Vivemos sob o jugo cultural das telenovelas. Temos sido (des)ensinados a considerar que o realismo seria aquele espontaneísmo mecânico dos atores, invariavelmente iluminados por uma luz de noticiário televisivo, e também aquela montagem mecânica das imagens... Que dizer, então, a propósito da estreia do prodigioso Verdades Difíceis, do inglês Mike Leigh? Apenas o mais simples: o fulgor do realismo britânico mantém-se intacto.Poderá discutir-se a pertinência da palavra “realismo” a propósito da obra de Mike Leigh, ele que terá tido os seus períodos de maior projeção graças a Segredos e Mentiras (Palma de Ouro, em Cannes, no ano de 1996) e Vera Drake (Leão de Ouro de Veneza, em 2004) — isto sem esquecer títulos como A Vida é Doce (1990), Nu (1993) e Raparigas de Sucesso (1997) que podem ser vistos num miniciclo proposto em Lisboa pelo cinema Nimas, a partir de amanhã, em paralelo com o lançamento de Verdades Difíceis.Acontece que a marca realista surge mais frequentemente associada à obra de outro brilhante autor inglês, Ken Loach, sem dúvida por causa das conotações imediatamente políticas das suas histórias (por exemplo: Eu, Daniel Blake, 2016). Ora, Mike Leigh não é nem “mais” nem “menos” político do que Loach, mas é-o, sem dúvida, de modo diferente.Atentemos na personagem central de Verdades Difíceis, Pansy, interpretada pela genial Marianne Jean-Baptiste (uma das atrizes principais de Segredos e Mentiras). Ela é uma mulher negra de uma família em tudo e por tudo marcada pelo seu comportamento pouco caloroso: primeiro em permanente conflito com o marido, o filho e praticamente toda a gente com que se cruza; depois, a pouco e pouco, enclausurada numa pose cada vez mais depressiva... O realismo começa no tratamento dramático das infinitas nuances do seu comportamento, não na cor da sua pele. E se tal elemento não é estranho à compreensão do seu lugar social, o certo é que Leigh não fez um filme para satisfazer os esquematismos moralistas dos arautos do politicamente correto — Pansy é negra... porque é negra, não para servir de “símbolo” do que quer que seja.Pansy é alguém que nunca “encaixa” num modelo dramático estável e definitivo, seja ele familiar ou social. Mesmo na relação com a sua irmã, Chantelle (Michele Austin), sem dúvida a pessoa de quem ela, apesar de tudo, se sente mais próxima, Pansy é sempre um enigma — para os outros e também, por certo, para si própria.Aquilo que Mike Leigh expõe é esse desconhecimento que faz com que haja um ser todos os instantes a combater uma guerra sem inimigo definido, guerra que se renova no interior do seu próprio silêncio. Daí a irredutibilidade de Pansy: raras vezes vimos representada uma tão extrema agressividade afetiva contra os outros humanos, sem que isso nos impeça de reconhecer o sofrimento atroz de todos os momentos da sua existência.Tão longe, tão pertoTudo isto acontece num cinema de tocante proximidade. É uma proximidade emocional, sem dúvida, mas também eminentemente física, ou não fosse Mike Leigh um talentoso artífice dos grandes planos. No seu cinema, o grande plano não é, como nas novelas, apenas a imagem mais “próxima” de um trabalho sem escala nem sentido do espaço: o grande plano existe, isso sim, como apoteose de uma visão em que, paradoxalmente ou não, mesmo nos planos mais afastados, vemos sempre, e podemos sentir, a singular vibração de cada corpo.Enfim, para não nos ficarmos pelo cinema como bandeira seja do que for, lembremos que a carreira de Mike Leigh tem as suas raízes no mundo do teatro. E que o seu realismo, alheio a qualquer ilusão pueril de espontaneidade, não renega as virtudes da teatralidade. Registe-se, por isso, o calendário de Verdades Difíceis: a rodagem durou seis semanas, mas antes houve 14 semanas de ensaios..'Apocalipse nos Trópicos'. Para compreender a política brasileira.'Corações Partidos'. Com saudades de algum cinema francês