Um festival com estrelas voltadas de costas para a imprensa. É este o tema, a teima, do Festival de Veneza edição 81. Depois de no ano passado a greve dos atores também ter tirado star power à Mostra, agora é a tendência dos atores não darem entrevistas, apenas limitam-se à passadeira vermelha e à formalidade da conferência de imprensa. Há duas razões fortes: a primeira: o custo exorbitante de hotéis de cinco estrelas em Veneza - quanto menos tempo estiverem pelo Lido menos as majors de Hollywood têm despesas; a segunda: alguns dos filmes ainda não estão comprados e os produtores não estão para pagar do seu bolso as despesas de promoção. Resultado: imprensa descontente e protestos com comunicados com queixas e interrogações. Afinal, que raio de festival é esse que traz George Clooney, Lady Gaga, Daniel Craig, Michael Keaton, Angelina Jolie, Nicole Kidman e Brad Pitt e ninguém os pode entrevistar?.Mas a edição 81 de um festival que quer ser maior do que Cannes tem trunfos, muitos trunfos, mesmo quando se percebe à entrada que há uma competição oficial desequilibrada, um número exagerado da prata de casa - Veneza está estupidamente condescendente com o cinema italiano - e uma vénia excessiva às séries de televisão: as novas de Joe Wright, Nicolas Widing Refn e Alfonso Cuarón passam como se fossem filmes em prime-time da competição. Ou seja, no caso de Disclaimer, do cineasta mexicano, pede-se aos acreditados que vejam os sete episódios da série da AppleTv+ em duas sessões que roubam muitas horas e tantos outros filmes de outras secções. É caso para se pensar se Veneza não deveria ser mais comedida neste flirt aos produtos do streaming e da televisão..O filet mignon americano.Ainda assim, os pratos fortes são os filmes americanos, como quase sempre no reinado do diretor Alberto Barbera, o verdadeiro responsável por Veneza estar tão na mó de cima e numa lua-de-mel com streamers como a Netlfix e a Apple, coisa que em Cannes o governo francês não permite. Um prato que trará aos canais locais gente como Julianne Moore, Tilda Swinton, Joaquin Phoenix, Brad Pitt, George Clooney, Kevin Costner, Daniel Craig, Nicole Kidman e tantos outros. A nível de estrelas não está nada mal mas há algum pé atrás com alguns dos filmes propostos. Será que faz sentido Joker - Loucura a Dois, de Todd Philipps estar na competição, sendo uma sequela? Ao que parece faz mais do que sentido: o estado de graça do primeiro filme permite créditos e este, assumindo-se como musical, é filme claramente de prestígio de grande festival. .Dúvida legítima, porquê Justin Kurzel em competição? Será que os anteriores fiascos Nitram e Assassin’s Creed já não o deviam ter excomungado destas lides? E também é de desconfiar do norueguês Dag Johan Haugerud, que em Love parece estar na competição principal apenas para cumprir a quota nórdica. A desconfiança vem do facto de no ano passado ter havido deceção com Terra Prometida, de Nicolaj Arcel..Ainda assim, expectativas no limite para Queer, de Luca Guadagnino, Maria, de Pablo Larrraín, Ainda estou aqui, de Walter Salles, Baby Girl, de Halina Reijn e, sobretudo The Room Next Door, de Pedro Almodóvar, a sua primeira longa em inglês, com Julianne Moore e Tilda Swinton. A quota do mediatismo é cumprida por Lobos Solitários, de Jon Watts, comédia de ação que passa fora-de-competição, em especial para trazer a dupla George Clooney/Brad Pitt, filme, que, por sinal, já não estreia nos cinemas fora dos EUA - no final de setembro chega globalmente à AppleTv+, mas também com documentários sobre Yoko Ono, John Lennon, a terra daqui a uma décadas, cortesia de Asif Kapadia, os Pavement e a China de hoje por Wang Bing, neste caso na segunda parte da trilogia iniciada em Cannes por Primavera..Abertura com fantasmas dos anos 80.A abrir o festival, obviamente fora-de-competição, a comédia fantasmagórica de Tim Burton, Beetlejuice Beetlejuice, uma sequela do êxito dos anos 80 a tentar capitalizar a nostalgia dos fãs agora bem adultos. Mas Burton parece ter feito um filme a piscar o olho aos fãs do novo terror, não sendo por acaso que a estrela jovem é Jenna Ortega, a Wednesday de Wednesday, a série fenómeno da Netflix. Será sobretudo um momento para as redes sociais quando o realizador desfilar no tapete com a estrela italiana Monica Bellucci - eles são o casal da moda e aqui, a atriz interpreta a vilã. Uma abertura gótica que poderá ter problemas de estar um nadinha requentada e cuja estreia para a semana já poderá ser julgada pelo público português nas salas de todo o país..Cinema feminino português.Do cinema feito em Portugal, na secção Dias de Autores, destaque para Sempre, de Luciana Fina, a partir da sua instalação feita sobre o 25 de Abril na Cinemateca. Acaba por ser um filme sobre imagens, de ficção e documentais, de uma memória que hoje é combustível de uma ideia de resistência e ativismo - a realizadora italiana integra filmagens dos nossos dias de manifestações de causas diversas. Cinema militante? Dir-se-ia antes cinema exploratório a tentar edificar pontes entre a moldura do passado e a ação de um presente que personifica o futuro. Dentro desse conceito do “filme de arquivo”, Sempre está antes mais perto do chamado “filme de arte”, mesmo quando serve de serviço público para não nos fazer esquecer de uma revolução que nos livrou do fascismo mais criminoso. Mas Luciana Fina, por estar entre Portugal e Itália, correlaciona o fascismo português com o italiano, não sendo por acaso que pelo meio surja uma frase de Nanni Moretti que convoca Otelo Saraiva de Carvalho..Também na mesma secção e fora-de-competição, uma curta de Cláudia Varejão, Kora, crónica de mulheres refugiadas em Portugal a partir das suas dores. Sob a música de Joana Gama, a câmara segue-as através das palavras das suas memórias e de retratos. Tudo a preto & branco, tudo com a mais correta das éticas do retrato daqueles que não têm visibilidade. Será exibido já esta sexta-feira..Cláudia Varejão A princesa do Lido.Dois anos depois de Lobo e Cão, Kora é o filme que marca o regresso de Cláudia Varejão ao Lido. Uma curta para dar visibilidade a refugiadas que parecem invisíveis nesta Lisboa de hoje..Orlando Almeida / Global Imagens.Veneza funciona como um talismã para o seu cinema? É mais uma coincidência. Lobo e Cão teve uma seleção natural nos Dias de Autores. Quando o terminei não me apeteceu muito entrar no sistema mais comum dos festivais, ir para a competição e tudo o mais. Preferi antes que fosse fora de competição, que tivesse uma atenção mais serena em função da temática. Portanto, apenas enviei o filme para a diretora da secção Dias de Autores com quem tinha mantido uma boa relação. Há pouco referi coincidência mas não, quis mesmo tentar que um filme que fala sobre questões humanas mais elevadas não se sujeite a esse esquema mais clássico do festival que nos põe todos a competir. Enfim, uma outra sensatez..O que há de comum nestas mulheres refugiadas? Diria que para além do carimbo de serem refugiadas serão as memórias que provavelmente vão atravessar para sempre as suas vidas. Isso e dor e trauma. São mulheres que tiveram de sair à força do sítio onde nasceram, cresceram e onde queriam continuar. Não foi uma escolha sair e as emoções que essa obrigação traz estão comuns na vida de todas elas..Para onde sente que o seu cinema está a ir, sobretudo depois de Lobo e Cão? Estou num momento de reflexão e a trabalhar para uma próxima longa, não sei ao certo. Tenho dois compromissos, isso sei. Um é com as mulheres, o outro é eventualmente com pessoas queer que não vivem nos centros normativos das sociedades. E aí, claro, não podemos deixar de falar das questões de direitos humanos. Isso irá acompanhar para sempre o meu trabalho. Como a vida não é muito longa, estes vão ser provavelmente os focos do meu trabalho. .Em Veneza